ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O lutador cordial
A arte de apanhar sem revidar
Luiza Miguez | Edição 135, Dezembro 2017
Agitado, Vitor Miranda pulava e socava o ar. Alongava o corpo pendulando o pescoço para os lados e dava rolamentos no chão de uma academia na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Treinava naquela terça-feira de outubro para uma luta marcada para dali a dois meses no Canadá. Ao lado dele, outro lutador repetia a rotina de aquecimento. Com semblante sério, os dois não se falavam. Permaneceram em silêncio enquanto o treinador espalhava vaselina em suas testas para protegê-los dos golpes que levariam a seguir.
Os colegas apelidaram Miranda de Lex Luthor, “por causa da cabeça careca e da pele muito branca”, conforme ele explicou. Aos 38 anos, o lutador é atleta da Team Nogueira, academia fundada em 2009 pelos gêmeos lutadores Rodrigo Minotauro e Rogério Minotouro. Com 1,86 metro de altura, Miranda iniciou-se no esporte jogando basquete em Joinville, Santa Catarina, sua cidade natal. Começou a lutar aos 21, quando um amigo o estimulou a praticar o muay thai, também conhecido como boxe tailandês.
Em oito meses, ele já lutava profissionalmente. “A primeira luta que fiz foi contra um cara com dez anos de experiência e já ganhei por nocaute”, gabou-se Miranda, que tem o costume de falar sorrindo. O atleta ganhou títulos no Japão e na Europa, e por cinco anos foi considerado o melhor lutador de muay thai do Brasil em sua categoria. Em 2007, a um passo de disputar o maior evento do mundo de combate em pé – rótulo que abrange as modalidades em que se luta na vertical, como o boxe –, o destino lhe passou uma rasteira: o torneio foi cancelado por dificuldades financeiras.
Desmotivado e com quase trinta anos, idade em que a maior parte dos atletas já passou do auge, o catarinense resolveu trocar o muay thai pelo MMA. Em alta no Brasil, as “artes marciais mistas” combinam técnicas de combate em pé e lutas de chão, como o jiu-jítsu. Pedro Rizzo – o veterano que introduziu Miranda à nova modalidade –, convidou-o para ser seu sparring, nome dado ao oponente de um atleta nas lutas preparatórias para os combates oficiais.
O sparring ideal é um lutador com características semelhantes às do adversário a ser enfrentado, de forma a permitir a prática de técnicas de ataque e de defesa em ambiente controlado. Um atleta grande e corpulento como Miranda, capaz de emular um peso-pesado, era coisa rara em sua academia, onde predominam lutadores mais leves. Por isso, ele era um sucesso entre os colegas. “Além disso, os caras gostavam de mim porque eu não machucava ninguém”, completou.
Contratado pela Team Nogueira, Miranda virou sparring de Minotauro e Minotouro, estrelas da casa. Enfrentava os gêmeos – que pesam cerca de 100 quilos cada – cerca de três vezes por semana, às vezes no mesmo dia. O sparring comparou Minotauro a um tanque de guerra, com estilo firme e resistente; seu irmão, vice-campeão pan-americano de boxe, não fazia por menos. “Sofri muito”, relembrou.
Vitor Miranda também serviu de sparring a outros lutadores estrelados, como Anderson Silva e o campeão croata Mirko Cro Cop. Mas o vento virou: há três anos, o catarinense ganhou projeção e começou a lutar no UFC, maior torneio mundial de MMA. Agora é ele quem recorre a um sparring em seus treinos. Naquela manhã, preparava-se para enfrentar Julian Marquez – o “Míssil Cubano” – em sua sétima luta pelo UFC, agendada para 16 de dezembro.
Para interpretar o oponente, Miranda reuniu colegas destros com formação no boxe. Juntos, assistiram a vídeos do adversário para estudar suas estratégias e falhas. “O Marquez não é muito bom na luta no chão”, avaliou o catarinense. “Ele vai lutar em pé, que é onde tenho mais chance de ganhar.”
O treinador zerou o cronômetro e abriu a gaiola do ringue para os lutadores. De celular na mão, uma pequena multidão de atletas da academia cercava o octógono. Miranda e o sparring trocaram um cumprimento mal-encarado e logo estavam atracados em socos, trocadas de perna e chutes vigorosos. Da plateia, os colegas incitavam o lutador aos berros. “Mete um gancho na barriga”, alguém sugeriu. “Bate mais”, urraram, enquanto Miranda pressionava o colega na grade do ringue.
“Explosão!”, gritou o técnico, quase rouco. Miranda aproveitou a deixa para distribuir sucessivos socos no rosto e chutes nas pernas do colega. Dando sinais de cansaço, o sparring cambaleou para trás. Com um rasgo largo de cima a baixo, seu calção parecia já nocauteado.
Em países como os Estados Unidos há sparrings profissionais, mas no Brasil é comum que lutadores tarimbados se revezem com os colegas no papel de saco de pancadas. Miranda hoje é um lutador de sucesso, mas ainda incorpora o adversário de colegas de academia.
“Um treino com sparring já é 80% da luta”, explicou o catarinense naquela manhã. “Vou com força mesmo, só tiro a maldade do combate.” Quando machuca o adversário com um golpe, o lutador evita acertá-lo de novo naquele local. “Senão fico sem a pessoa para treinar.” Os sparrings também têm sua própria ética, e se seguram para não colocar muita força nos golpes. “Mas tem sempre aqueles boçais meio doidos que precisam que a gente puxe a rédea”, disse o catarinense.
O uso de sparrings é controverso entre os praticantes de MMA. Os críticos evocam o alto número de acidentes durante as simulações, que podem ser tão violentas quanto as lutas para valer. Em 2006, o campeão americano Robbie Lawler decidiu que não faria mais simulações depois de ser atingido por um soco certeiro de um sparring – o incidente deixou-lhe com uma vertigem severa que durou semanas.
Quando o cronômetro da Team Nogueira sinalizou o final do terceiro e último round, o treinador entrou para afastar os oponentes. Exausto, Miranda saiu de cima do colega e desabou no chão, cuspindo longe o protetor dentário. O adversário não tinha aliviado a barra por se tratar de uma simulação, mas isso não parecia incomodar o lutador. “Sparring não é só dar carinho”, ponderou. De sua orelha – já bastante deformada por hematomas de lutas passadas –, escorria um filete de sangue.