O manto tupinambá é um ninho na escuridão do mundo
Edimilson de Almeida Pereira | Edição 157, Outubro 2019
RODA-VIVA
Um carro atravessa o pátio aos golpes,
corpos adoecem o sótão, outros tecem na grade,
traficam-se poemas num país onde o sol
oculta os cadáveres.
Alguém abre túneis ao sul e ao norte,
sem esperança suas mãos esculpem a pélvis.
Na terra de ninguém (tua cabeça), a coragem
atrás dos óculos. Devastam o arco-íris ao gosto
de quem fabrica mortos.
Há um sinal na testa de quem não contesta.
Os atentos estão mudos.
Um mesmo sol alenta o riso contra as sombras
do passado: o futuro. A memória traça o rastro
a que tudo se reduz, vertigem: o azul turva o fogo
de quando éramos humanos.
Carnaval, não importa o país que habitas,
a matéria escura sob o peito rege como um vigia
o mundo. Os vagões torcidos na gare
recordam a oxidação que desfila em tuas fibras.
Não há, em meio à alegria, uma célula
atenta à própria morte, mas e a consciência, essa
agulha que deseja, às vezes, o fundo da caixa?
Mascarados têm humor, o rosto sob a máscara,
nem sempre – a euforia pesa,
a explosão de Ítaca espalhou corpos por todos
os lugares – e mesmo assim a banda toca.
O país que adoece seus felinos não merece figurar
no mapa: nascidos para conter o sopro que passa,
a vida os impede de aceitar o que a torna breve.
É sobre seixos, galáxias, orcas que se trata quando
um rosto se desmascara e obtém algum poder.
Por que não aprender deles o que crava
em nós o alvo dos seres findos? Polvos pulsam,
apesar das grades e seus nomes saqueados,
têm menos sede – se movimentam sob as barbas.
Um país que adoece mata suas árvores não merece
senão afogar-se em seus coldres: o que esperar de
quem tropeça nos calcanhares?
Os vagões no país oxidado arrastam o monstro
pela gare escura – quem pode
embarca a qualquer hora, mas não há viagem
onde um homem justo não se demora no velório
dos seus sonhos. Carnaval – os gêmeos fogem
à estrela da manhã. Onde quer que habites,
o mundo não é a nave que os tiranos lubrificam
em dias nacionais. Sábado – o Carnaval – o sol –
os arlequins são corpos – grávidos explosivos.
DE VOLTA AO SOL
O manto tupinambá ganho comprado furtado, quem saberá?
– sabemos, é um ninho preso às paredes de outro continente.
Depois de séculos, apesar do vidro que lhes tira o oxigênio,
o vermelho sangue do guará e o azul oceano da araruna
segredam algo que excede o museu nacional de copenhague.
Todo algodão e envira, o manto tem a dimensão da mata
– vale pagar o ingresso para ver o vidro, jamais o espírito
que incendeia o egoísmo do alarme? O manto rol de esferas
arde de tanta memória. Seu lugar não é aqui, será, quem sabe?
no limo que molda todos os corpos. Imagine se insuflado no ar
rarefeito o manto se abrisse. Que tese posta à mesa explicaria
os mortos, vivos enfim, em resposta ao rapto das almas?
O manto quer voar para casa. A morte de seus filhos torna
inútil sua permanência. É preciso que ele se perca
para acusar os assassinos. Ante essa inominável memória
algo será reiniciado – a raiz do que já não é árvore, mas
frutifica – o rugido do que não é onça, mas afia as garras –
a umidade do que não é chuva, mas afoga a mão criminosa.
Exilado num continente onde avós, para irem ao cinema,
colam os netos à sombra, o manto reflete sua natureza – ágil
urna em território de neve. Ao redor do vidro, línguas tecem
em silêncio por respeito ou desprezo, não sei – sabemos.
Entre aqueles que fiaram o manto, um canto se alonga
alheio ao seu sequestro. Sobre a terra desolada um pássaro
voa. Num filme etnográfico chama os culpados pelo nome.
Haverá, diante disso, ossos suficientes para serem atirados
contra o vidro? O manto tupinambá é um ninho na escuridão
do mundo – respira num oceano de espelhos a sua ira.
JAM SESSION
Homens à beira do abismo, na falta do diálogo,
enviam sinais indecifráveis. Falam águas–vivas.
Mortificam-se.
não
os homens
certos homens cavam o abismo, incineram em
sua profissão de fé a pérola e o oceano. Com a
palavra enviam a virilha ao exílio. De todos, são
os piores, sucateiam a alegria, não são humanos.
sim
o arco-íris cobre o centro e a beira da praça. Sob
ele cabem turistas e quem buscando um país não
sabe o norte de si. Estendo as mãos e sinto a rosa
decifrada no asfalto. Uma frágil rede nos anima,
acolhe em berço uma a uma essas vidas, cultiva
o sal e a música entre as ranhuras
sim
ao som do exilado, à noite festival. Sob a tenda,
os pés gelam, a luz vermelha traz um estampido
de longe. A neve cai. O trompete sobe à altura
dos edifícios e sufocando o grito nos parecemos
todos – um policial encosta os ombros no som.
Seria bom se fosse sempre isso, nenhum aperto,
intenso o ritmo, uma nota chamando pela outra
e o mergulho entre os corpos querendo-se.
Poemas do livro poesia + (antologia 1985-2019), a ser lançado pela Editora 34.