Motorista na Vila Madalena, em São Paulo: durante a pandemia houve um aumento no número de motoristas e cobradores com transtornos psicológicos, provocados pelo medo que eles têm de levar o vírus para casa, e também de serem demitidos CREDITO: EGBERTO NOGUEIRA_2021_ÍMÃ FOTOGALERIA
O medo é constante, chefe
A rotina perigosa dos motoristas e cobradores de ônibus urbanos durante a pandemia
Tiago Coelho | Edição 180, Setembro 2021
Quando a Covid-19 começou a se espalhar em São Paulo, o motorista Renato Galdino logo entendeu que corria grande risco por conduzir, durante oito horas diárias, um ônibus urbano com janelas vedadas, sem abertura para a circulação do ar. Ele passou a sair de casa com máscara de tecido e um frasco de álcool em gel. Apesar das restrições sanitárias, o ônibus continuava cheio de trabalhadores que, assim como ele, não tinham a opção de aderir ao home office.
Cada vez que o motorista de 41 anos ouvia alguém espirrar ou tossir dentro do veículo, a apreensão dele aumentava. “Todo mundo respirando o mesmo ar, eu pedia a proteção de Deus, né?”, ele conta. “É sufocante dirigir com a máscara sem ter ar circulando. Se Deus não estiver ali, meu amigo, o negócio é feio.” A maioria dos passageiros seguia a regra de viajar de máscara, mas, quando um desavisado ou um negacionista aparecia com o rosto descoberto, Galdino advertia que, naquele ônibus, a pessoa não ia entrar. A aflição do motorista aumentava quando ele via um idoso embarcando. “Eu dizia: ‘Meu Deus, por que não fica em casa?’ Mas o idoso falava: ‘Eu não tenho filho nem neto, tenho que pagar as contas.’ Com aquela multidão no ônibus, e ele lá dentro, chefe.”
O maior receio de Galdino era levar o vírus para sua casa na Vila Liviero, na região sudeste de São Paulo, e contaminar a mulher, a filha e quatro parentes que vivem com ele. À medida que os meses passavam e a Covid-19 seguia matando sem parar, a ansiedade do motorista só aumentava, produzindo nele reações contraditórias, entre o extremo cuidado e o descuido. Uma dessas reações foi o medo constante de tocar em qualquer coisa que não estivesse nos limites de sua casa. Outra, a vontade compulsiva de comer. Quando parava no sinal e algum vendedor ambulante se aproximava, ele comprava não importa que produto lhe oferecessem: chocolate, biscoito, batata frita… “Como alivia essa pressão? Comendo bastante. Eu viajava comendo e com medo. O medo é constante, chefe.” Ao tirar a máscara para comer no ambiente fechado do ônibus, ele se esquecia dos riscos, se esquecia da Covid.
Segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), de março a junho de 2020 cerca de 30 milhões de passageiros deixaram de embarcar diariamente nos 107 mil ônibus que atendem as cidades brasileiras. Em alguns municípios, se houve linhas que passaram a circular com poucos passageiros, outras continuaram lotadas. “No início da pandemia, acho que teve uma queda de 30% da frota. Agora, deve estar em 12%. Mas o ônibus sempre esteve cheio. Até hoje. A minha linha é como uma mãe para os empresários, vive lotada”, disse o motorista, em meados de julho passado. Galdino conduz o ônibus que parte do Metrô Saúde, na Zona Sul de São Paulo, rumo à Vila Liviero. Percorre cerca de 25 paradas em cada trecho, ao longo de quase 8 km. Durante o expediente de oito horas, ele transporta cerca de seiscentos passageiros.
Filho de um motorista e de uma cobradora de ônibus urbano, Galdino iniciou na profissão há dezenove anos e hoje é ligado ao Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano em São Paulo (SindMotoristas). Ele chega à garagem ainda de madrugada, às 3h50. Às 4h10, começa a primeira viagem. Em 7 de maio de 2020, teve dores no corpo e muito cansaço. No dia seguinte, apresentou sintomas de gripe e perda do paladar. Seu maior medo tinha virado realidade: ele contraíra a Covid-19. “Não havia outro lugar pra eu ter sido infectado: foi dentro do ônibus”, avalia. Sua mulher também foi infectada, mas teve sintomas leves.
Como começou a ter dificuldades para respirar, Galdino procurou um hospital. Ao chegar, o médico verificou que ele estava com baixa saturação de oxigênio e o internou. O motorista passou a respirar com a ajuda de uma máscara de oxigênio. No quarto do hospital, ao seu lado, havia um senhor idoso intubado. Galdino teve medo de morrer. Mas, três dias depois, ele foi autorizado a voltar para casa, onde passou duas semanas isolado no quarto. Em seguida, voltou ao trabalho, e agora toma cuidados redobrados para não levar o vírus para casa outra vez, pois sua mulher está grávida.
A lembrança mais triste de Galdino dos meses de pandemia não é a internação, mas a morte dos colegas de trabalho. “Perdi muitos amigos: o PT, o amigo Letrinha, o companheiro Jojo, o João Carlos. Muitos foram embora, chefe. Só na minha garagem, uns vinte, entre motoristas e outros profissionais”, conta. Quando se lembra de amigos de infância que morreram, sua voz fica embargada. “Tevez era moleque novo, tinha 38 anos, era a estrutura da casa dele. E o Bil também, que morava no mesmo bairro que eu e era motorista na mesma linha em que eu trabalho. Começamos todos moleques no transporte. A gente jogava bola junto.”
A categoria dos motoristas de ônibus urbanos ocupa a nona posição entre as profissões que mais registraram desligamento do trabalho por morte entre janeiro e abril deste ano, com 636 casos, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Entretanto, quando se comparam os dados do primeiro quadrimestre de 2019 com os do mesmo período neste ano, a ocupação de motorista de ônibus foi a que teve a segunda maior alta entre as profissões que mais tiveram desligamentos do trabalho por morte (191 casos em 2019 e 636 em 2021), depois dos motoristas de caminhão (560 casos em 2019 e 2 074 neste ano). O SindMotoristas informou que 195 motoristas de ônibus urbanos morreram em São Paulo de março a junho.
Os motoristas de ônibus também foram classificados – junto com os cobradores e os motoristas de táxi e aplicativos – como a segunda categoria de profissionais que corre mais riscos de infecção por Covid-19. A primeira categoria são os profissionais da saúde, segundo um mapeamento feito entre março e abril de 2020 pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Muitos motoristas de ônibus não têm medidas de proteção, como barreira física para evitar o contato com outras pessoas, das quais ficam muito próximos. Em algumas cidades, eles são os próprios cobradores da passagem”, diz o pesquisador Yuri Lima, que comandou o estudo no Laboratório do Futuro da Coppe, avaliando os riscos de 2 539 ocupações. “Os veículos viajam cheios, sem circulação de ar, e os usuários, muitas vezes, não usam máscara. Houve uma série de problemas que não foram resolvidos ao longo da pandemia, acumulando muito risco para os motoristas.”
Os riscos começam nos terminais de ônibus. Uma pesquisa feita em fevereiro deste ano pelo Instituto Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de Pernambuco, constatou que, no Recife, era naqueles locais que havia a maior incidência de Covid-19. A pesquisa recolheu quatrocentas amostras em diversos pontos onde há grande circulação de pessoas – dos 97 locais onde o vírus foi identificado, 47 eram terminais de ônibus. “Embora nosso estudo tenha sido realizado no Recife, acredito que o que vimos aqui se repita na maioria das metrópoles do Brasil”, afirma o pesquisador Severino Jefferson Ribeiro da Silva, que liderou o levantamento. “O número de pessoas que passam e se aglomeram nos terminais é absurdo. Nós avaliamos apenas o ambiente externo, mas no ambiente do ônibus, onde os motoristas e cobradores estão confinados, a capacidade de transmissão é também muito alta.”
Yuri Lima, da UFRJ, avalia que faltou coordenação do governo federal para determinar as profissões de risco que deveriam ter prioridade na vacina – e os motoristas de ônibus não estavam na primeira leva. “Encaixar determinadas profissões entre as prioridades dependeu de fatores como representação política de determinada categoria no Congresso, pressão de sindicatos fortes e capacidade de mobilizar a mídia. Quem conseguiu foi quem fez barulho mais forte. Prevaleceram questões políticas, e a ciência ficou para trás.” Em vez disso, deveria ter sido feita a identificação planejada dos grupos de risco e dar prioridade a eles, o que era perfeitamente possível, segundo o pesquisador. “Mas o governo não teve essa coordenação, como não teve em outros aspectos.”
Galdino conta que só em maio a vacina foi aplicada nos motoristas em São Paulo. “Perdemos muitos amigos até ela chegar. E só chegou por pressão do sindicato. Somos nós que levamos nos ônibus o policial, o professor, o enfermeiro. A gente não é linha de frente?”, perguntou o motorista, antes de fazer um apelo: “Eu peço a vacina também para os mecânicos, funileiros, o pessoal do escritório das empresas de ônibus que estão com a gente no dia a dia e estão morrendo por não serem considerados prioritários.”
“Na época em que fiquei doente de Covid-19, metade dos meus colegas já tinha sido infectada pelo vírus”, conta Júlia, nome fictício de uma cobradora de ônibus de Brasília, que não quis se identificar por receio de perder o emprego. Com 42 anos, Júlia trabalha em uma linha que passa perto de cinco hospitais e foi contaminada no ano passado. “Eu sabia do risco que estava correndo e que não demoraria a pegar. Para você ter ideia, um dia, um senhor idoso entrou no ônibus tossindo muito e passou mal lá dentro. Tivemos que parar e chamar o Samu.”
A cobradora já tinha se curado da Covid-19 quando começou a sentir os sintomas novamente. “Foi tanta falta de ar que corri para o Hospital Anna Nery.” Lá, deparou-se com um colega de trabalho deitado no chão. “Ele estava com Covid, só que não tinha lugar no hospital, estava lotado.” Ela foi examinada, mas daquela vez era apenas uma crise de ansiedade, provocada pelas tensões no trabalho, que não cessavam, inclusive por causa dos passageiros. “Uma vez, para evitar o contato, pedi à passageira que colocasse o dinheiro da passagem em cima da gaveta onde a gente faz o troco. A mulher ficou possessa, gritou que não estava infectada, cuspiu no dinheiro e colocou sobre a gaveta.” Ela já ouviu mais de um caso de motoristas em Brasília que foram agredidos pelo passageiro por ter exigido o uso de máscara dentro do ônibus. O que não ocorreu apenas no Distrito Federal: há relatos semelhantes em várias cidades do Brasil.
Todo dia, logo depois de acordar, Júlia olha imediatamente as mensagens do grupo de motoristas e cobradores no WhatsApp com notícias de internações de colegas. “Às vezes, é a foto de um companheiro que morreu. A gente tem que se controlar e ir trabalhar com isso na cabeça.” Por causa do estresse, ela tem tentado marcar consulta com um psiquiatra do plano de saúde, mas até meados de agosto não tinha conseguido. “É muita gente”, diz.
Uma outra cobradora de Brasília, Antônia (nome fictício), que tem 38 anos e também pediu para não ser identificada com receio de demissão, reclamou da negligência de sua empresa em fornecer materiais básicos de cuidado aos funcionários. Ela diz que, desde o início da pandemia, só recebeu duas máscaras. “E o álcool, sou eu que levo de casa. A cada viagem, borrifo a gaveta, os corrimões próximos e até o dinheiro. Levo também meu sabão líquido, porque não tem sabonete no banheiro da empresa.” A sua maior preocupação, no entanto, são os ônibus cheios. “As empresas alegam que tem menos usuários, mas os carros continuam lotados. Os passageiros reclamam muito. E aumenta nosso desespero ver o ônibus assim.”
A psicóloga clínica Célia Maria da Silva diz que houve um aumento expressivo do número de motoristas e cobradores com transtornos psicológicos e psiquiátricos durante a pandemia. Ela atua no Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest Senat), de Teresina, no Piauí, entidade que oferece serviços de desenvolvimento profissional e apoio aos trabalhadores do setor. O problema mais comum, segundo a psicóloga, é a ansiedade. “Especificamente o transtorno de estresse pós-traumático, por causa da perda de colegas de trabalho e do medo intenso de se contaminarem.”
Silva explica que a ansiedade aumenta devido à preocupação dos profissionais de levarem a doença para dentro das suas casas. “O medo não é nem tanto por si, mas pelos filhos, pela esposa, pelas pessoas que eles amam. E eles estão ali na linha de frente por amor, responsabilidade e compromisso.” As coisas ficam ainda piores quando se junta a esses medos o temor de perder o emprego. O resultado é que os profissionais acumulam queixas de cansaço, desânimo, tristeza, falta de esperança, fadiga mental e irritabilidade.
O sistema de ônibus rápido BRT (Bus Rapid Transit) começou a ser operado no Rio de Janeiro em junho de 2012. Foi uma alternativa menos onerosa para melhorar a mobilidade na época da realização da Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas, dois anos depois. O sistema conta com corredores exclusivos para os ônibus em três vias ligando a Barra da Tijuca às zonas Norte e Oeste da cidade.
Nos últimos anos, o BRT foi operado por uma concessionária de empresas de ônibus, mas a frota e os terminais entraram em processo de deterioração e sucateamento. A pandemia piorou a situação. Houve redução do número de veículos e funcionários foram demitidos. O contrato com a concessionária previa que a operação teria 413 ônibus, mas apenas 120 estavam circulando. No início de 2021, o prefeito Eduardo Paes, eleito no ano anterior, fez uma intervenção no sistema BRT para requalificar o serviço e aumentou a frota para 195 carros.
No ano passado, João (nome fictício), motorista do BRT que também pediu o anonimato com medo de perder o emprego, contraiu Covid-19, assim como sua mulher. Ela estava grávida, e o casal se desesperou com a possibilidade de o vírus afetar o bebê. O motorista e sua mulher tiveram apenas febre e dor no corpo durante uma semana. O bebê, para alívio dos pais, nasceu saudável. Com três crianças em casa, o motorista – que tem dez anos de profissão – cogitou pedir demissão, porque tinha receio de levar o vírus de novo para a família. “Minha esposa também ficou assustada. Só não larguei o emprego porque a pandemia estava piorando, o desemprego no setor rodoviário era grande, e com bebê em casa, continuei trabalhando. Com medo, mas continuei”, disse João.
Um ônibus do BRT é maior do que um ônibus comum, pois tem módulos articulados. A sua capacidade é em média de 140 pessoas sentadas e em pé, mas o motorista disse que em horários de pico, entre as 6 e as 8 horas, ou entre as 17 e as 20 horas, dependendo do turno, ele chega a transportar em torno de trezentas pessoas por viagem. “Apesar disso, a empresa nunca se preocupou com os nossos cuidados. A gente que se cuidasse no carro lotado e fechado, sem janela aberta, enquanto a pandemia rolava solta.”
Ao contrário do que ocorre na linha de Galdino, em São Paulo, na do motorista do BRT no Rio de Janeiro há grande número de pessoas que não usa máscara. “Lembro que, na época do prefeito Marcelo Crivella, queriam que o motorista parasse o BRT e pedisse ao usuário pra botar a máscara. Mas não existe isso. Como é que a gente vai parar o ônibus e obrigar alguém? A pessoa vai querer agredir a gente.”
João também se pergunta por que sua categoria profissional não esteve entre as prioridades da vacinação. “Uma pessoa que anda com duzentos, trezentos passageiros num carro não tem prioridade na vacina? Nosso trabalho é essencial. As pessoas precisam de transporte todo dia.” Em abril passado, a prefeitura chegou a incluir os motoristas de ônibus no grupo prioritário da vacina. Mas em maio o grupo foi retirado da prioridade, e cada profissional teve que se vacinar seguindo o critério de idade, como ocorreu com o restante da população. O motorista do BRT diz que três colegas seus que não conseguiram se vacinar morreram em julho em decorrência da Covid-19.
João conta que com frequência assume escalas de trabalho com turnos de dez horas. “Já teve dias em que entrei no trabalho ao meio-dia e só saí perto das onze da noite. Fiquei sem almoçar, sem jantar e ainda passei mais tempo exposto ao vírus.” O aumento da carga horária, diz ele, é decorrência das inúmeras demissões. E tudo isso tem deixado os colegas ainda mais deprimidos. “Teve um motorista que chegou no escritório da empresa aos berros para reclamar dessas escalas absurdas. Disse que aquilo estava uma bagunça e que faltava compreensão do responsável pela escala de trabalho. Essas coisas todas estão causando estresse na gente. Eu estou conseguindo me controlar, outros não.”
O período mais difícil do último ano foi quando teve que se afastar do trabalho por quinze dias e viu seu salário ser reduzido, em cumprimento à medida provisória do governo federal que instituiu o novo Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. A medida possibilita que as empresas suspendam temporariamente o contrato de trabalho ou diminuam a jornada com redução de salários a fim de aliviar as finanças do empregador. “Nosso salário é por volta de 3 mil reais. Com o afastamento, passei a ganhar a metade. Tive que contar com a ajuda dos meus pais, porque ficou tenso. Eu pago 700 reais de aluguel.”
A situação da frota do BRT é outra preocupação do motorista. “Tem ônibus que não tem condição nenhuma de trabalho, com pneu careca, porta quebrada. A grande maioria não tem ar-condicionado funcionando. Alguns estão até andando de lado, o que a gente chama de carro corrido.” A Prefeitura do Rio, por meio do Sistema BRT, afirmou que, quando assumiu a intervenção no início do ano, encontrou o serviço funcionando de maneira precária. Decidiu então intensificar a manutenção dos carros, contratou mais trinta motoristas e aumentou a frota para 195 ônibus BRT. Nas redes sociais, há várias imagens dos “carros corridos” do BRT, com problemas no eixo das rodas que fazem com que o veículo tombe para um dos lados, andando torto, às vezes com a roda alguns centímetros acima do solo.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – ainda não divulgado – aponta que nas últimas duas décadas houve redução do uso de transporte público urbano no Brasil e aumento do transporte privado (carros, motocicletas etc.), principalmente entre as famílias das classes média e baixa. “Quando a gente pega a inflação acumulada dos últimos quinze anos, o transporte privado ficou mais barato do que o transporte público, em termos relativos”, diz o pesquisador Rafael Pereira, que faz parte do grupo de estudos. “As tarifas dos ônibus e do óleo diesel utilizado no transporte coletivo cresceram num ritmo mais rápido, enquanto o combustível do veículo privado ficou praticamente estável. As políticas de controle do preço da gasolina, que duraram muito tempo, tornaram o transporte privado mais atraente para uma parcela considerável da população que antes andava de ônibus.”
Essa tendência levou à diminuição do número de usuários do transporte público. A fim de compensar a queda na arrecadação, as empresas de ônibus foram obtendo dos governos municipais aumentos progressivos no preço das passagens. “Mas, quando entra numa situação de crise econômica e de saúde pública, como a pandemia, isso é agravado: você tem uma queda ainda mais substancial do volume de passageiros, o que gera uma pressão inflacionária para aumentar o valor das tarifas. E, quanto mais cara a tarifa, menos passageiro. Quanto menos passageiro, mais cara a tarifa, e assim por diante”, afirma Pereira.
Outra medida de compensação tomada pelas empresas de ônibus consistiu em reduzir a frota, o que foi feito sem se levar em conta as diferenças sociais no uso de transporte público, segundo a pesquisadora Mariana Giannotti, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). O resultado foi a ampliação da desigualdade, fazendo com que as linhas de ônibus que cobrem a periferia ficassem ainda mais cheias.
“Aconteceu em São Paulo e se repetiu em outras cidades do Brasil: as pessoas de renda mais baixa tiveram que continuar no trabalho presencial para manter seus empregos. Mas a adequação da oferta de ônibus por causa da diminuição da demanda não levou isso em consideração. Gerou uma situação inversa: causou aglomeração em vez de reduzir. Aqueles que mais precisam do transporte público ficaram com o pior serviço”, diz Giannotti, que é também professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ela, são justamente essas pessoas mais pobres que sustentam o sistema de transporte público. “O pobre na periferia, usando o transporte de pior qualidade, paga para manter um sistema que não volta para ele com qualidade.”
Nas contas do presidente executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, Otávio Cunha, as empresas de transporte coletivo urbano acumulam prejuízos que passam de 16 bilhões de reais. De 2019 até hoje, o número de passageiros caiu 40%, e quase 80 mil postos de trabalho no setor foram extintos no Brasil. Ele enumera outros prejuízos causados pela pandemia nos últimos catorze meses: “Dezesseis empresas suspenderam suas atividades, seis encerraram suas operações, cinco contratos de concessão foram suspensos ou rescindidos, um caducou, sete sistemas sofreram intervenção do poder público local e nove empresas entraram em recuperação judicial.”
Cunha diz que as empresas têm atendido as normas sanitárias necessárias sem receberem nenhuma ajuda do governo federal. “O setor vem tentando mostrar ao governo a necessidade de uma ajuda emergencial para que possa continuar ofertando o serviço em volume adequado e seguro para os usuários”, afirma. Em dezembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto de lei aprovado pela Câmara e o Senado que previa um auxílio emergencial de 4 bilhões de reais para o sistema de transporte de municípios com mais de 200 mil habitantes.
No dia 2 de agosto, segunda-feira, pouco antes das 18 horas, o fluxo de pessoas começou a aumentar no Terminal Alvorada, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. A plataforma de embarque mais lotada do BRT naquela noite era a da linha Alvorada-Pingo d’Água. Nas paredes e pilastras ali perto não havia nenhuma instrução sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras, o distanciamento ou qualquer outro cuidado anti-Covid. Mas, quando o ônibus chegou, um letreiro no painel luminoso frontal avisava, em letras bem grandes: “Use máscara.”
Apesar do aviso no ônibus, quatro funcionários que cuidavam de organizar as filas embaralhadas na estação estavam ou sem máscaras ou com elas penduradas no queixo, deixando a boca e o nariz desprotegidos. Nenhum deles pediu que os passageiros sem máscara colocassem a proteção. Quando as portas do veículo se abriram, as filas se desfizeram, e a multidão correu para o ônibus a fim de conseguir um assento. Em menos de um minuto, o veículo ficou tão lotado que as portas automáticas tiveram dificuldade para fechar. Os funcionários, ainda sem a proteção da máscara, pediram que as pessoas se espremessem dentro do veículo, para que as portas se fechassem e o ônibus pudesse partir.
Ao ser indagada sobre a falta de informações a respeito das medidas de proteção nos terminais de ônibus, a prefeitura disse que colocou cartazes nas estações pedindo o uso de máscara e álcool em gel, divulgou propaganda educativa nas tevês dentro dos ônibus e fez publicações nas redes sociais do BRT sobre os cuidados sanitários. Afirmou também que os encarregados que cuidam das filas não são seguranças e por isso não podem barrar o acesso de passageiros sem máscaras, mas que irá reorientar os funcionários sobre essa regra.
A secretária Ana Rodrigues, de 31 anos, estava naquela hora tentando entrar no ônibus da linha Alvorada-Pingo d’Água. Mas não conseguiu, teve que esperar o próximo. Ela trabalha numa empresa sediada na Barra da Tijuca e ficou pouco tempo em quarentena em casa no começo da pandemia. No ano passado, foi contaminada. “Provavelmente fui infectada dentro desses ônibus. Pago caro para ir todo dia igual a um bicho para casa”, reclamou. Rodrigues contou que uma vez teve que descer do ônibus porque o veículo pegou fogo no meio do trajeto. “Quebra, para, pega fogo, balaústres estão quebrados, não tem como segurar.”
Cinco minutos depois, outro ônibus chegou. As quatro portas se abriram, e Rodrigues saiu em disparada. Mas não teve sorte de encontrar um assento. Ficou em pé. O ônibus estava completamente cheio. Mais ou menos um quinto das pessoas não usava máscara. A de Rodrigues era de tecido, em duas camadas, com o elástico gasto.
Como é baixinha, a secretária precisou esticar bem os braços para segurar no balaústre. Eu fiquei encostado na porta. Era impossível se mover. O ônibus partiu do bairro rico da Barra da Tijuca rumo ao bairro pobre de Pingo d’Água, no extremo da Zona Oeste. Um rapaz magro e alto, com uma máscara com o escudo do Flamengo, também encostou em uma porta, cruzou os braços e tentou se equilibrar, enquanto a sua cabeça balançava para frente e para trás, pesada de sono. As tosses secas quebravam o silêncio e deixavam o ambiente tenso.
As torres dos prédios residenciais e os enormes shoppings da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes foram ficando para trás. As avenidas e ruas bem iluminadas também. Aos poucos, a paisagem lá fora mergulhou na escuridão. A noite escura fazia das janelas lacradas um espelho do interior luminoso do ônibus. Pelo reflexo, deu para ver Rodrigues com uma expressão sonolenta, a cabeça apoiada no braço esticado no balaústre.
O ônibus era semidireto, só tinha duas paradas. Chegou à estação Magarça, no bairro de Guaratiba, 45 minutos depois da partida. O rapaz alto despertou assustado e quase se desequilibrou quando a porta automática abriu. Ele desceu ali. Rodrigues ainda tinha um pequeno trecho a percorrer até o destino final, em Pingo d’Água.