Ricardo Salles foi à Amazônia pela primeira vez na vida em fevereiro, onde visitou uma plantação – que era, porém, ilegal. Foi fotografado a bordo de uma colhedeira, ao lado da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e do ruralista Nabhan Garcia FOTO: TCHÉLO FIGUEIREDO_SECOM/MT
O meio ambiente como estorvo
A guerra aberta e a guerra velada entre o governo Bolsonaro e as forças que resistem ao desmatamento
Bernardo Esteves | Edição 153, Junho 2019
O MINISTRO
Em meados de março, marquei um almoço em Brasília com um funcionário do Ministério do Meio Ambiente num restaurante do Plano Piloto. Ao chegar, ele avaliou que o lugar não era reservado o bastante e sugeriu que sentássemos em uma mesa mais ao fundo. Durante a refeição, volta e meia sondava o ambiente, para ver se alguém o observava. Tinha o olhar preocupado. O servidor falou do desânimo de colegas que estavam em secretarias com a agenda parcialmente paralisada e do clima de intimidação que agora havia no ministério. Contou que consultava obsessivamente o Diário Oficial da União para acompanhar as nomeações e exonerações na pasta. Pediu para não ser mencionado na reportagem. Ao se despedir, recomendou que eu o contatasse apenas por meio de um aplicativo que apaga as mensagens após a leitura.
Os funcionários andam preocupados com o que compartilham e curtem nas redes sociais. Temem estar sendo monitorados pela equipe do ministro Ricardo Salles. Ouvi relatos de telefones grampeados, conversas de WhatsApp vazadas e olheiros infiltrados em reuniões de servidores. O clima de vigilância percebido por alguns foi reforçado por um ofício assinado no fim de março pelo chefe de gabinete do ministro, o coronel do Exército Antônio Roque Pedreira Junior. O documento determinava que equipes do ministério trabalhassem de persianas abertas, sob o pretexto de que a luminosidade seria “um dos pontos mais importantes no ambiente de trabalho”. “Dessa forma, garantiremos o bem-estar e produtividade de todos os servidores”, completava o ofício.
Num sábado de abril, Ricardo Salles visitou o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, uma unidade de conservação no litoral sul gaúcho. Estava acompanhado do líder da bancada ruralista no Congresso, o deputado Alceu Moreira, do MDB-RS. Ao microfone, o ministro do Meio Ambiente quis saber se havia na plateia funcionários do ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, responsável pela gestão daquela e de outras áreas protegidas. Como não havia nenhum, Salles determinou a abertura de um processo administrativo disciplinar contra os servidores. No entanto, eles não sabiam do evento, realizado fora do horário de trabalho. Salles “foi ardiloso, falacioso e grosseiro com os servidores”, nas palavras da Ascema, uma associação de funcionários da área. Depois do episódio, o presidente e três diretores do ICMBio pediram demissão de seus cargos.
Desde que assumiu o cargo, Salles agilizou a tramitação de antigos processos administrativos que culminaram na demissão de servidores; restringiu tanto a participação dos funcionários do ministério em eventos no exterior como os afastamentos para fazer cursos de pós-graduação; determinou ainda que sejam encaminhadas ao ministério demandas da imprensa dirigidas ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao ICMBio, duas autarquias vinculadas, mas não subordinadas à pasta – medida que foi recebida como uma mordaça. “O ministro fala mal da gente e não podemos nos manifestar”, me disse um fiscal do Ibama, que também pediu anonimato.
Entrevistei 58 pessoas para esta reportagem. Entre elas, 29 funcionários ou ex-funcionários do governo federal. A maioria preferiu não se identificar. O argumento, com pequenas variações, era sempre o mesmo: o medo de represálias. Um dos poucos que se dispôs a falar em on foi José Olímpio Augusto Morelli, o fiscal do Ibama que, em 2012, flagrou Jair Bolsonaro pescando numa área marinha protegida na baía de Angra dos Reis, no litoral fluminense. Bolsonaro, então deputado federal, não pagou a multa de 10 mil reais lavrada na ocasião; em vez disso, apresentou um projeto de lei que propunha desarmar os fiscais ambientais, embora defenda flexibilizar o porte de armas para a população. Em dezembro passado, o processo voltou à estaca zero no Ibama por recomendação da Advocacia-Geral da União, que entendeu que o acusado não teve direito à ampla defesa. No fim de março, Morelli foi exonerado do cargo de chefia que ocupava à frente do centro de operações aéreas do Ibama.
O servidor viu o gesto como uma retaliação. “Fui punido por ter feito minha obrigação”, ele me disse na ocasião. O presidente Bolsonaro manifestou recentemente a intenção de liberar por decreto a pesca submarina na estação ecológica na qual foi multado – pretende transformar numa “Cancún brasileira” a região que tem que abrigar por força de lei uma área de proteção ambiental, pois está no entorno de usinas nucleares.
Morelli é um engenheiro agrônomo mineiro de 56 anos que se especializou em direito ambiental. Entrou por concurso em 2002 no Ibama, o órgão que tem poder de polícia ambiental em âmbito federal. Semanas depois de sua saída, num encontro que tivemos em Brasília, ele me disse que o governo estava exonerando servidores que ocupavam cargos de diretoria e haviam sido nomeados por governos anteriores. “São técnicos que não têm vínculo político e vinham fazendo um bom trabalho”, afirmou. “Desde Sarney, todos os presidentes sempre puseram gente com capacidade técnica no Ibama, e com pouca interferência política.” Morelli entende que está em curso “uma tentativa de desmonte de uma experiência bem-sucedida de combate aos ilícitos ambientais no país, construída com erros e acertos”. Quando lhe perguntei se não tinha receio de se expor, o fiscal disse que vivia lendo a lei nº 8112/90, que regulamenta o serviço público federal, e que não via sua atitude como falta disciplinar. “Não falo em nome do Ibama e não ataco a minha instituição, faço comentários sobre políticas públicas implantadas por gestores.”
No fim de abril, foram excluídos do site do Ministério do Meio Ambiente dados sobre as áreas e as ações prioritárias para a conservação da biodiversidade no país. Preparados ao longo de mais de um ano por uma equipe técnica do ministério, os dados seriam usados para fundamentar o licenciamento de empreendimentos, a criação de unidades de conservação e a definição de ações e políticas públicas ambientais. Ricardo Salles alegou que as informações haviam sido retiradas momentaneamente do ar para a correção de erros, mas não disse quando voltariam a ser publicadas. Até o fechamento desta edição, seguiam fora do ar. Mas podem ser acessadas em alguns sites, graças à iniciativa de servidores que armazenaram as informações em HDs pessoais.
Gestos de resistência institucional também afloraram em outras esferas. Servidores vazaram para a imprensa documentos que antecipavam medidas planejadas pelo governo, como a minuta de um decreto que revê o sistema de multas ambientais ou o pedido para que o ministério anule uma portaria que proíbe a pesca de peixes ameaçados de extinção. As associações de funcionários da área ambiental se articulam para contestar medidas do governo na Justiça, e uma delas vai contratar uma agência de comunicação para produzir material de mobilização para as redes sociais. Encontrei um funcionário que disse se esforçar para tocar os projetos de sua secretaria sem usar expressões como “mudança do clima” ou “povos indígenas”, malvistas na nova gestão.
Em meio à guerra, ora aberta, ora velada, entre Salles e os funcionários de carreira ligados ao ministério, soou como um ato falho o erro tipográfico registrado no Diário Oficial da União no ato que nomeou pregoeiros oficiais para a superintendência do Ibama na Bahia. “Esta Porcaria entra em vigor na data de sua publicação”, determinou o ato. A porcaria era uma portaria, como foi corrigido depois.
Uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro era extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e entregar a gestão ambiental para uma secretaria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A proposta subordinava os interesses da conservação ambiental aos da produção agropecuária e suscitou críticas não só de ambientalistas, mas de setores do agronegócio. O presidente recuou e manteve o MMA, mas confiou-o a um representante do ruralismo: Ricardo de Aquino Salles, um advogado paulistano de 44 anos, que foi diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira e fundou o movimento Endireita Brasil.
Defendendo ideias liberais, Salles candidatou-se a vereador, deputado estadual e federal por São Paulo, mas nunca se elegeu (no ano passado obteve 36,6 mil votos disputando um lugar na Câmara dos Deputados pelo Partido Novo). Foi secretário particular do então governador Geraldo Alckmin e, por um ano, esteve à frente da Secretaria do Meio Ambiente do governo tucano em São Paulo. Com medidas que favoreciam produtores rurais, empresários e mineradores e restringiam o espaço das ONGs junto ao governo paulista, sua gestão em muitos aspectos ofereceu uma prévia do que faria em âmbito federal.
Salles foi o último ministro anunciado para o gabinete de Bolsonaro. (Dentre as especulações feitas na imprensa sobre os possíveis ministeriáveis para o Meio Ambiente, surgiu até o nome da atriz Maitê Proença.) Dez dias após a indicação, foi condenado por improbidade administrativa durante sua gestão como secretário do Meio Ambiente. O paulistano havia sido denunciado pelo Ministério Público por beneficiar empresas de mineração ao alterar os mapas e a minuta do decreto que definiam o zoneamento do plano de manejo da Várzea do Rio Tietê, uma área de proteção ambiental. Salles foi multado em 200 mil reais e teve os direitos políticos suspensos por três anos. Como a decisão foi em primeira instância, ele pode recorrer sem sofrer as consequências da pena.
Em meados de maio, Edson Duarte, ministro do Meio Ambiente no final do mandato de Michel Temer, falou pela primeira vez em público sobre o período de transição entre a eleição e a posse de Bolsonaro. Contou que sua equipe elaborara um documento detalhado sobre o ministério e os órgãos a ele vinculados, incluindo informações estratégicas sobre os programas e parcerias em andamento. Segundo ele, a equipe que se preparava para entrar negou-se a visitar o ministério e desconsiderou o dossiê. “O material que preparamos ficou sobre a mesa. Não foram buscar”, afirmou Duarte numa entrevista coletiva. “Não houve transição, e isso é muito grave.”
A reforma na estrutura do governo federal promovida em 2 de janeiro esvaziou parte das atribuições que o MMA tinha até o ano passado. A Agência Nacional de Águas, antes vinculada à pasta, foi transferida para o Ministério do Desenvolvimento Regional; o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pela gestão das florestas públicas do país, agora responde ao Ministério da Agricultura. O SFB também é o gestor do Cadastro Ambiental Rural, uma base de dados sobre as propriedades rurais brasileiras e sua cobertura vegetal. Criado pelo Código Florestal de 2012, o cadastro permite verificar a adequação dessas propriedades à lei ambiental. A entrega do instrumento de fiscalização para um ministério comandado pelos grandes produtores foi criticada por ambientalistas. Para dirigir o Serviço Florestal Brasileiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, nomeou o ex-deputado federal Valdir Colatto, um ruralista do MDB catarinense. Em 2016, ele foi autor de um projeto para revogar a lei de crimes ambientais e liberar a caça no Brasil.
A Secretaria de Mudança do Clima e Florestas, na qual ficava o Departamento de Florestas e Combate ao Desmatamento, deu lugar à Secretaria de Florestas e Desenvolvimento Sustentável. A pasta do Meio Ambiente deixou de ter em sua estrutura divisões específicas voltadas ao controle e prevenção do desmatamento e à mudança climática. Dois temas que até então eram centrais na atuação do ministério desapareceram formalmente e tiveram seu conteúdo esvaziado.
Desmatamento e mudança do clima são dois problemas indissociáveis no Brasil. A derrubada da vegetação nativa na Amazônia e no cerrado emite duas vezes mais gases responsáveis pelo aquecimento global: quando retira a cobertura vegetal, liberando carbono estocado no solo, e quando a substitui por lavouras e pastagens, atividades que emitem dióxido de carbono, metano e outros gases. Juntos, o desmatamento e o setor agropecuário respondem por 70% dos gases que causam o aquecimento global emitidos pelo Brasil. Por isso mesmo, a principal proposta brasileira para reduzir suas emissões é acabar com o desmatamento ilegal.
Após a implantação de um plano interministerial lançado em 2004, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o país conseguiu reduzir em 84% a derrubada da cobertura florestal na Amazônia entre 2004 e 2012. Mas a taxa voltou a aumentar desde então. Entre agosto de 2017 e julho de 2018, durante o governo Temer, foram desmatados 7 900 quilômetros quadrados, o maior índice anual dos últimos dez anos.
Parte do sucesso na redução do desmatamento pode ser creditada ao monitoramento da Amazônia com imagens de satélite feito pelo Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. As imagens permitem identificar derrubadas que estão em curso e orientar ações de fiscalização do Ibama. Mas esse é apenas um dos eixos do plano, que segue em vigor e está em sua quarta fase. A estratégia previa também ações como a criação de unidades de conservação, iniciativas de regularização fundiária e de estímulo ao desenvolvimento de alternativas econômicas sustentáveis para a população que vivia da exploração ilegal da floresta.
O problema do desmatamento é complexo demais para que o MMA o resolva sozinho, por isso o plano envolve outros nove ministérios. A coordenação, feita inicialmente pela Casa Civil, cabe desde 2013 à pasta do Meio Ambiente. Ao diluir o tema na estrutura de seu ministério, Salles indicou que a orquestra terá que tocar sem maestro.
O MMA é também responsável pela execução da Política Nacional sobre Mudança do Clima, no âmbito de um comitê interministerial que ainda não se reuniu este ano. Perguntei a um funcionário do novo governo quem iria se encarregar dessa agenda, agora que o Ministério do Meio Ambiente parecia ter retirado o time de campo. “Essa bola não está com ninguém”, ele respondeu.
Ricardo Salles é um homem alto de olhos azuis, que usa óculos de aros redondos em tom avermelhado. O ministro deu duas entrevistas para esta reportagem, com duração total de uma hora e vinte minutos. A primeira aconteceu na sede do Ibama em São Paulo, de onde ele tem despachado ocasionalmente, e a segunda, numa padaria na Barra da Tijuca, bairro do Rio de Janeiro onde acabara de dar uma palestra sobre licenciamento ambiental num evento do setor de construção civil.
O ministro negou que o desmatamento tenha perdido importância em sua gestão. Disse que vai concentrar esforços no combate aos vetores que contribuem para a derrubada ilegal de florestas em vez de priorizar as ações de fiscalização na mata. O foco da estratégia que pretende pôr em prática será atacar a raiz das invasões de unidades de conservação e terras indígenas – seja por madeireiros ilegais, garimpeiros ou grileiros. “A ideia é secar a fonte econômica da origem, em vez de atacar o campo”, disse Salles. “Se der certo o que estamos estruturando, poderemos resolver o problema sem ficar na linha de frente.”
A estratégia do ministro não foi formalmente apresentada e não há informações sobre ela no site do MMA. Pedi mais detalhes sobre quando o plano seria posto em prática. “Vai começar em breve”, respondeu Salles. Enquanto isso, continuou, o modelo anterior de combate ao desmatamento segue em curso. “Não houve interrupção.”
O que Salles pretende fazer, no entanto, já vem sendo feito no plano de combate ao desmatamento, cujas ações foram traçadas para atacar os fatores na origem do problema. “O Brasil tem uma história de sucesso no combate ao desmatamento, especialmente entre 2004 e 2012, baseada no entendimento dos problemas que tínhamos e de como atacar cada um deles, inovando a cada ano”, disse o engenheiro florestal Tasso Azevedo, que dirigiu o Serviço Florestal Brasileiro na época da implantação da estratégia. “Não é por falta de reconhecimento da raiz do problema que não o atacamos.”
No fim de abril, Ricardo Salles postou nas redes sociais uma foto em que aparecia ao lado de cinco militares uniformizados que ele acabara de indicar para as secretarias do ICMBio. Eram todos oficiais da Polícia Militar Ambiental de São Paulo, a mesma instituição de onde veio o novo presidente do órgão, o coronel Homero Cerqueira (há representantes das Forças Armadas nos vários escalões do Ministério do Meio Ambiente e das autarquias). Servidores entraram com um mandado de segurança pedindo a anulação de três nomeações, alegando que os militares não têm formação ou experiência nas áreas que passariam a comandar. Nas redes sociais correu a piada que a instituição passaria a se chamar IPMBio.
A Secretaria de Florestas e Desenvolvimento, incumbida de tocar o plano de combate ao desmatamento, está sem diretor titular desde meados de março; no fim de maio, sete de seus dez cargos de direção e coordenação permaneciam vagos. Para a Secretaria de Biodiversidade, Salles só nomeou um diretor no começo de maio (ali havia outros oito cargos vagos no fim desse mês, conforme o site do MMA). Para a Secretaria de Ecoturismo, instituída no governo Bolsonaro, Salles nomeou Gilson Machado Guimarães Neto, que em 2016 recebeu uma multa ambiental do ICMBio por uma irregularidade na pousada que ele tem no litoral alagoano.
O ministro exonerou 21 dos 27 superintendentes regionais do Ibama, responsáveis pelo comando das ações de fiscalização nos estados; apenas quatro dos cargos de direção estadual estavam preenchidos no fim de maio. Roberto Cabral Borges, que coordenava as operações de fiscalização do órgão, também foi exonerado, no mês de abril. Comandante da tropa de elite do Ibama, um grupo armado de agentes treinados para operações especiais, Borges chegou a levar um tiro numa ação no Maranhão em 2015. Ao ser noticiada no Facebook, sua exoneração foi comemorada por seguidores do grupo Direita Progresso.
A vacância nos cargos de direção se reflete no dia a dia administrativo. Servidores foram postos à disposição do departamento de recursos humanos e dizem não ter o que fazer durante o expediente. Parceiros institucionais têm se queixado da falta de interlocução com o ministério. Funcionários temem pelo futuro dos projetos de cooperação que a pasta mantém com parceiros no exterior, responsáveis pelo aporte de recursos de valores superiores ao próprio orçamento do ministério.
Quando perguntei ao ministro sobre as exonerações e vagas não preenchidas, Salles minimizou o problema. Disse, sem entrar em detalhes, que as agendas estão sendo executadas pelos substitutos. Entre os funcionários, porém, a impressão é outra. “Está em curso um processo de desidratação do ministério”, me disse o biólogo Alexandre Bahia Gontijo, presidente da Asibama, a associação de servidores da gestão ambiental no Distrito Federal. “A pauta ambiental está morrendo por inanição.” Ouvi algumas vezes o argumento de que, se era para fazer isso, teria sido melhor extinguir o MMA. “Salles deixou o ministério de pé, mas está comendo tudo por dentro”, disse-me uma servidora. “Parece cupim.”
A gestão de Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente já foi objeto de editoriais críticos da Folha de S.Paulo, do Valor Econômico e do Estado de S. Paulo. Em artigos de opinião, Salles foi chamado de antiministro, comparado a Mefistófoles e acusado de fazer stalinismo ambiental.
No fim de abril, uma associação de promotores de Justiça e procuradores que atuam nos estados divulgou uma carta que enumerava medidas do governo Bolsonaro que lhes pareciam enfraquecer o arcabouço jurídico de proteção ao meio ambiente. Na mesma semana, 602 pesquisadores publicaram na revista Science um apelo para que a União Europeia condicionasse suas negociações comerciais com o Brasil à redução do desmatamento, ao respeito aos direitos indígenas e à proteção ambiental.
Quando mencionei as críticas à sua gestão, o ministro disse que não há retrocesso ambiental. “O que há é uma mudança de comportamento que atende ao que a sociedade brasileira exigiu nas urnas”, afirmou. Salles disse que o ICMBio havia sido destruído por seus antecessores. “Não recebi um ministério em ordem, e ele foi desmontado”, alegou. “Recebi um ministério absolutamente caótico e com muitos recursos direcionados para o terceiro setor, daí a ‘gritaiada’ toda.”
Perguntei ao ministro se havia de sua parte uma postura de enfrentamento em relação aos servidores. “Nenhuma, pelo contrário, faço várias coisas junto com os funcionários”, ele respondeu – tanto assim que participaria de uma operação de campo do Ibama na Amazônia, conforme anunciou, sem revelar detalhes. “Mas alguém precisa colocar freio numa minoria que abusa.”
A manifestação de maior peso contra a atuação de Salles foi uma declaração conjunta de oito dos nove ex-titulares vivos do Ministério do Meio Ambiente, responsáveis pela pasta nos últimos 26 anos. “A governança socioambiental no Brasil está sendo desmontada, em afronta à Constituição”, disseram, em coro, Rubens Ricupero (governo Itamar Franco); Gustavo Krause e José Carlos Carvalho (Fernando Henrique Cardoso); Marina Silva e Carlos Minc (Luiz Inácio Lula da Silva); Izabella Teixeira (Lula e Dilma Rousseff); José Sarney Filho (FHC e Michel Temer) e Edson Duarte (Temer). Reunidos na Universidade de São Paulo (com exceção de Krause, ausente por motivo de saúde), os ex-ministros alertaram para o risco de aumento descontrolado do desmatamento e lembraram o papel de liderança do país no combate às mudanças climáticas. “O Brasil não pode desembarcar do mundo em pleno século XXI”, afirmaram.
Na nota que divulgou para rebater o comunicado dos ex-ministros, Salles afirmou seu compromisso com o combate ao desmatamento ilegal e disse que o país não deixou de cumprir compromissos previamente assumidos. Citou operações recentes do Ibama e da Polícia Federal nas quais foram presas dezenas de pessoas, incluindo dois ex-superintendentes do Ibama que ele havia exonerado, acusados de envolvimento em fraudes na exploração ilegal de madeira na Amazônia. Alegou ser alvo de “uma campanha de difamação promovida por ONGs e supostos especialistas” e atribuiu a perseguição ao preconceito ideológico ou à “indisfarçável contrariedade face às medidas de moralização contra a farra dos convênios, dos eternos estudos, dos recursos transferidos, dos patrocínios, das viagens e dos seminários e palestras”. Evocou mais uma vez as fragilidades orçamentárias, de infraestrutura e de pessoal que herdou dos governos anteriores.
A nomeação de Salles rompeu o relativo equilíbrio que havia entre os interesses de produtores rurais e as demandas dos ambientalistas no desenho das políticas públicas brasileiras. O Código Florestal, aprovado em 2012, é um retrato desse equilíbrio – que nenhum dos lados tenha ficado muito satisfeito com o texto final é um indicador das concessões feitas de parte a parte. A vitória de Bolsonaro mudou completamente essa correlação de forças. A titular da Agricultura, Tereza Cristina, foi líder da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o braço institucional da bancada ruralista no Congresso, que reúne 32 senadores e 225 deputados federais. Além dela, a FPA está representada no topo de outros dois ministérios (Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e Osmar Terra, da Cidadania, pertenciam à frente) e em cargos de alto escalão na Esplanada. “Esse grupo sempre atuou com poder econômico ou político dentro do Congresso, e agora foi levado para dentro da Presidência da República”, afirmou Marcio Astrini, coordenador de políticas públicas do Greenpeace Brasil. “Ele não negocia mais com o governo, ele é o governo.”
No fim de janeiro, uma comitiva da FPA foi ao Ministério do Meio Ambiente e levou a Ricardo Salles um documento com várias demandas. Estruturada em treze tópicos, a lista de reivindicações incluía a flexibilização do licenciamento de empreendimentos agropecuários, a revisão das multas ambientais e das áreas protegidas e a reestruturação do Conama, o Conselho Nacional do Meio Ambiente, que reúne representantes do governo, de empresas e ONGs e define normas ambientais a serem seguidas pelo mercado.
Salles foi pela primeira vez na vida à Amazônia em fevereiro deste ano, depois de ter recebido os ruralistas em Brasília. Seu destino foi a Terra Indígena Utiariti, em Mato Grosso, onde conheceu plantações mecanizadas de soja feitas pelos índios parecis. O ministro postou nas redes sociais uma foto em que aparecia de cocar e roupa social à frente de uma fila de parecis e celebrou a competência dos indígenas na agricultura, no texto que acompanhava a imagem. Foi fotografado também a bordo de uma grande colhedeira, ao lado da ministra Tereza Cristina e de Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e ex-presidente da União Democrática Ruralista. A ministra elogiou a iniciativa dos parecis e disse que eles estão promovendo uma revolução na agricultura.
Tratava-se, no entanto, de uma plantação ilegal. Uma lei de 2007 proíbe o cultivo de transgênicos – como a variedade de soja plantada ali – em terras indígenas. Por essas e outras irregularidades, no ano passado o Ibama embargou uma área de 22 mil hectares daquela terra indígena e aplicou multas de mais de 140 milhões de reais, na maior parte aos arrendatários brancos das terras.
Quando perguntei a Salles sobre a motivação da escolha do destino da sua primeira viagem à Amazônia, ele afirmou que pretendia averiguar se o embargo era procedente, e concluiu que não é. “A área já estava produzindo havia anos naqueles exatos termos, com a mesma prática, e de repente vira embargada”, disse. “Nada mudou para justificar o embargo, era uma situação já consolidada.” O ministro não se manifestou sobre a ilegalidade do plantio de transgênicos em terras indígenas. O embargo determinado pelo Ibama segue em vigor.
Mudança climática é um tema sensível no governo de Jair Bolsonaro, que é pai de céticos do clima – seus filhos Carlos e Eduardo já questionaram a existência do fenômeno nas redes sociais. Durante a campanha, Bolsonaro ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris, a exemplo do que fizera Donald Trump, com quem o presidente brasileiro está alinhado. Pressionado por setores do agronegócio que temiam ver suas exportações prejudicadas, Bolsonaro recuou. Por outro lado, nomeou para o Ministério das Relações Exteriores o embaixador Ernesto Araújo, para quem a mudança do clima – que ele prefere chamar de “climatismo” – é uma ideologia de inspiração esquerdista.
Ricardo Salles considera o aquecimento global um tema secundário para seu ministério e tem dito que vai priorizar problemas mais tangíveis. “O coitado que mora na comunidade de Tacopenoesgoto não está preocupado com a última reunião de acordo do clima na Hungria, num hotel cinco estrelas, ou com o último jantar de ambientalistas no Plaza Athénée, em Paris. Ele está preocupado com o esgoto em que ele está pisando, com a fumaça de caminhão que toma na cara no ponto de ônibus”, disse o ministro em entrevista à Jovem Pan, dois dias antes de uma forte chuva matar sete pessoas no Rio de Janeiro.
O ministro ignora, porém, a ligação umbilical entre o aquecimento global e os problemas ambientais urbanos, na avaliação do advogado Fabio Feldmann, um dos ambientalistas respeitados por Salles, como o ministro revelou em entrevista ao programa Roda Viva. “É um erro cuidar da agenda urbana e não cuidar do clima”, disse-me Feldmann, lembrando que um dos principais impactos do aquecimento global é a mudança nos ciclos hidrológicos, como se viu nas grandes chuvas que deixaram vítimas no Rio e em São Paulo.
Quando mencionei as críticas, Salles disse concordar com Feldmann quanto à preocupação em nos prepararmos para os impactos da mudança do clima. “A grande diferença é a maneira de se preparar e escolher as prioridades de investimento e ação.” O ministro já lançou programas para combater o lixo no mar e para eliminar lixões dos municípios. Mas o Ministério do Meio Ambiente tem um orçamento magro que é distribuído principalmente entre o Ibama e o ICMBio, e atribuições limitadas para tocar as pautas que Salles defende. A gestão do saneamento básico e da coleta de lixo cabe a estados e municípios e a outros órgãos da administração federal.
“O Ministério do Meio Ambiente não tem um único real para cuidar dessa agenda”, afirmou o deputado federal Rodrigo Agostinho, do PSB paulista, presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara. “O governo está desmontando a estrutura de conservação da biodiversidade, facilitando o desmatamento e a exploração de petróleo em áreas onde não deveria, e não está investindo em agenda urbana nenhuma.”
Perguntei a Salles o que estava ao alcance de sua gestão na agenda ambiental urbana. “Não é papel do ministério executar obras de saneamento, mas sim colocar recursos para mostrar caminhos e identificar oportunidades que melhorem o meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas”, respondeu. “O MMA nunca foi um ministério precipuamente de execução orçamentária, mas sim de formulação de políticas públicas e de fomento de discussões e tomadas de posição do governo.”
No começo de maio, Salles viu-se às voltas com uma decisão determinante para a qualidade do ar nas grandes cidades. Estavam em votação no Conselho Nacional do Meio Ambiente as normas para a emissão de poluentes das novas motocicletas. Um ponto em discussão era a durabilidade dos catalisadores, que agem como filtros para essas emissões. Ao fim de sua vida útil, os equipamentos perdem a capacidade de filtragem e passam a poluir a atmosfera. Para motos com velocidade de até 130 quilômetros por hora – o principal tipo usado em entregas nas cidades –, uma associação de fabricantes solicitou que a vida útil de 35 mil quilômetros, proposta originalmente para o dispositivo, fosse baixada para 20 mil quilômetros. Argumentaram que os catalisadores mais duradouros encareceriam seus produtos e ameaçariam sua competitividade no mercado externo. A posição da indústria foi defendida por Salles e outros representantes do governo no conselho (mas não do Ministério da Saúde). Com votos do MMA e do Ibama, a resolução apoiada pelo ministro ganhou a votação no Conama por 36 a 35.
Perguntei a Salles se defender os catalisadores mais duradouros não teria sido mais coerente com sua agenda de qualidade ambiental urbana. O ministro disse que não tinha sido uma decisão dele. “O Conama entendeu que não era o caso de dar uma solução à revelia do que os produtores entendem que é possível, uma vez que não ficou demonstrado que a solução de 35 mil quilômetros é factível do ponto de vista industrial.” Disse ainda que as motos usadas para entregas e outras atividades profissionais rodariam muito rapidamente tanto 20 mil quanto 35 mil quilômetros. “Não é isso que vai fazer diferença.”
No final de maio, um decreto presidencial alterou a composição do Conama, formalizando o esvaziamento do órgão, conforme Salles já havia sugerido em declarações. O conselho, que até então tinha cem membros, passou a ter 23 no novo arranjo. A sociedade civil teve sua participação reduzida, e o governo federal ganhou mais peso. O decreto também tirou do Conama a câmara que servia de instância final para o julgamento de multas do Ibama.
O PRESIDENTE
Entre as promessas eleitorais de Jair Bolsonaro estava o fim das multas ambientais, a diminuição das áreas protegidas e o combate às organizações não governamentais. Na transmissão ao vivo pelas redes sociais na noite em que venceu o primeiro turno, o candidato prometeu “tirar o Estado do cangote de quem produz” e “botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”. No campo, o discurso foi recebido como um passe livre para desmatar. Em novembro, mês seguinte à vitória de Bolsonaro nas urnas, a derrubada da Amazônia aumentou 406% em relação ao mesmo mês do ano anterior, segundo cálculos da ONG Imazon, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia.
Fiscais contaram ter encontrado pessoas que pareciam agir na certeza da impunidade, como se as infrações ambientais não fossem mais consideradas crimes. “Tá vendo meu carro?”, perguntou um fazendeiro a uma agente do Ibama, mostrando a caminhonete coberta por adesivos de Jair Bolsonaro. O encontro se deu em Poconé, em Mato Grosso, entre os dois turnos da eleição. O produtor disse à servidora: “No dia 1º de janeiro vou esperar você e sua equipe, porque agora vou ter arma. A fazenda é minha e desmato na hora que eu quiser.”
As ameaças dirigidas aos fiscais falam em decepar-lhes as mãos, queimar suas casas e carros, matar seus parentes. A lembrança do fogo que garimpeiros ilegais tocaram em prédios do Ibama e do ICMBio no interior do Amazonas, em 2017, assombra os servidores. Para alguns, é uma questão de tempo até que um colega seja alvo de violência. “Estão fomentando uma guerra no campo”, disse-me um fiscal.
No dia 6 de abril, agentes do Ibama, do ICMBio e do Batalhão de Polícia Ambiental da PM de Rondônia foram mobilizados para investigar uma denúncia de exploração ilegal de madeira na Floresta Nacional – ou Flona – do Jamari, uma unidade de conservação no norte do estado. A equipe encontrou um acampamento usado de base pelos infratores e apreendeu dois tratores, dois caminhões, duas motosserras e uma velha espingarda, além de 47 toras de madeira. Quatro homens foram presos em flagrante. De acordo com um fiscal do Ibama que participou da operação, estavam cortando árvores de vários trechos da Flona, inclusive de uma área sob concessão para uma empresa privada, a Amata, que explora madeira com autorização do Serviço Florestal Brasileiro.
Os detidos aceitaram a alternativa oferecida pelos fiscais de conduzir os veículos usados no crime ambiental até a sede da unidade de conservação. Os caminhões estavam em péssimo estado, não tinham placa nem número de chassi. Já era noite quando, no meio do lento cortejo pelo interior da floresta, um deles quebrou. Diante do imprevisto, os agentes decidiram destruí-lo para evitar que voltasse a ser usado na exploração ilegal de madeira, recorrendo a uma solução autorizada por um decreto de 2008. O fogo é o meio preferido pelos fiscais quando se veem nessa situação. Para queimar o caminhão, eles esvaziaram o tanque de combustível e embeberam com diesel os pneus e a cabine, de forma a facilitar a combustão. Cerca de meia hora depois, com as chamas já controladas, o grupo seguiu caminho.
Só chegaram à sede da Flona no início da manhã. Dali seguiram viagem para a Superintendência Regional da Polícia Federal em Porto Velho, a cerca de 100 quilômetros, onde os quatro criminosos foram detidos. O inquérito da pf que documenta o caso inclui multas de 5 mil reais aplicadas a cada um dos infratores. De acordo com os depoimentos dados à polícia, eram autônomos trabalhando para serrarias locais, que pagavam entre 500 e 1 800 reais pela carga de madeira de cada caminhão.
O inquérito registra também ameaças de morte ao agente que estava à frente da operação, ouvidas pelos fiscais ao sintonizarem um aparelho de rádio usado pelos infratores. “O pessoal estava bem exaltado, disse que tinha eleito um governo para acabar com o Ibama e que ia dar tiro nos fiscais”, contou o servidor.
Dias depois da apreensão, Jair Bolsonaro, num vídeo gravado ao lado do senador Marcos Rogério, do DEM de Rondônia, desautorizou os funcionários públicos que participaram daquela operação. Na gravação, o senador diz ao presidente que o Ibama vinha queimando caminhões e tratores nos municípios de Cujubim – onde fica a Flona do Jamari – e Espigão d’Oeste. Bolsonaro então afirma que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, abriria um processo administrativo para apurar o que havia acontecido: “Não é para queimar nada, maquinário, caminhão, trator. Não é esse o procedimento, não é essa a nossa orientação.”
Bolsonaro não explicou – talvez não soubesse – que estava apoiando criminosos que atuavam, inclusive, contra empresários que exploravam legalmente recursos da floresta. “O presidente empodera quem trabalha na ilegalidade e incentiva atos de violência contra os órgãos da administração pública que estão combatendo o crime ambiental”, disse-me o fiscal do Ibama.
Rondônia está entre os estados brasileiros mais afetados pelo desmatamento. Perdeu um terço da sua cobertura florestal entre 1985 e 2017, segundo o Mapbiomas, plataforma elaborada por uma rede de ONGs, universidades e empresas para descrever a ocupação do território brasileiro. Como no resto da Amazônia, a área desmatada foi ocupada sobretudo pela pecuária extensiva de baixa produtividade. As áreas de pastagem sextuplicaram em pouco mais de três décadas. A sucessão dos mapas de ocupação mostra o gado avançando sobre a área verde, que antes cobria quase 90% do território. Apenas unidades de conservação – como a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no oeste do estado, e duas florestas nacionais contíguas no norte, de Jacundá e do Jamari – resistiram relativamente intactas.
Criada em 1984, a Flona do Jamari ocupa 222 mil hectares nos municípios de Itapuã do Oeste, Cujubim e Candeias do Jamari. Foi a primeira floresta nacional oferecida à iniciativa privada em regime de concessão. A exploração de madeira naquela Flona já rendeu 14 milhões de reais aos cofres públicos desde que foi implementada, em 2010 (ali também há concessões para mineração, extrativismo vegetal, ecoturismo e pesca esportiva).
A Amata – uma das duas empresas que operam na Flona do Jamari – assinou um contrato de quarenta anos para uma área de 46 mil hectares. O terreno é dividido em 25 parcelas, e a cada ano uma delas é explorada, de forma que a floresta tenha tempo de se regenerar; no 26º ano, o ciclo se reinicia. A concessionária pode tirar até 22,5 metros cúbicos de madeira por hectare, o equivalente a extrair três árvores de médio porte de uma área igual à de um campo de futebol. Derruba de 3 mil a 3,5 mil árvores por ano, conforme me disse numa entrevista por videoconferência o engenheiro florestal Patrick Reydams, gerente de operações da empresa. A Amata atua num mercado segmentado de clientes dispostos a pagar o preço da madeira certificada e exporta mais de 90% do que produz. Nos períodos de colheita, chega a ter setenta funcionários diretos.
Nos últimos anos, a Flona do Jamari tem sido alvo de invasões para a retirada clandestina de madeira. A pressão maior é sobre a face sul da unidade de conservação, contígua ao município de Cujubim. É ali que fica a área de concessão da Amata, que decidiu concentrar suas atividades no norte, para garantir a integridade dos funcionários. “Se as invasões não pararem, teremos dificuldade para completar o ciclo de 25 parcelas”, disse Reydams.
Os fiscais se revoltaram com o vídeo em que Bolsonaro desautorizou a queima de equipamentos. “A serraria que rouba madeira e não paga nada pro Estado tem vantagem em relação às legalizadas”, afirmou um deles numa mensagem de áudio que circulou por grupos de WhatsApp. “O que o Ibama está fazendo não é só defender a natureza, estamos defendendo o comércio adequado e justo dos bens do Brasil.”
A destruição cautelar de equipamentos usados em crimes ambientais é uma prerrogativa dos agentes de fiscalização. Está autorizada se os equipamentos puderem voltar a ser usados para crimes ambientais ou caso haja risco para a segurança da população e dos fiscais. É uma medida extrema, tomada em último caso pelos fiscais: apenas cerca de 2% das operações do Ibama envolvem a destruição de maquinário. Segundo o MMA, nos últimos dois anos o instituto lavrou onze termos de destruição ou inutilização de equipamentos usados em infrações ambientais. “Esse é um dos poucos mecanismos que temos hoje com alguma eficácia para combater o crime ambiental no país, porque tem prejuízo econômico imediato para o infrator”, disse o procurador da República Daniel Azeredo, que atua na área ambiental.
Perguntei a Ricardo Salles se ele endossava as críticas feitas por Jair Bolsonaro à queima de equipamentos em Rondônia. Salles respondeu que a manifestação do presidente visava conter os excessos cometidos por uma minoria de servidores, e que pretendia aperfeiçoar as normas do Ibama sobre a destruição de equipamentos. Indagado se houve excesso dos órgãos ambientais no episódio na Flona do Jamari, Salles não quis se pronunciar antes de o caso ser analisado. Observei que a atuação dos criminosos naquele episódio tinha prejudicado também a iniciativa privada que explorava a concessão florestal. “Não há dúvida de que qualquer ilegalidade tem que ser combatida, o que colocamos em causa é a extensão das punições”, disse Salles. “A atitude extrema de destruição só pode ocorrer em casos excepcionais e tem que ser justificada.”
Numa nota publicada em seu site, o Ibama anunciou no fim de maio que planejava ações de fiscalização em terras indígenas e unidades de conservação no sudoeste do Pará. O gesto atípico provocou reações irônicas na internet: até então o órgão mantinha em sigilo o local de suas operações.
O Ibama segue um plano anual de fiscalização aprovado em dezembro passado, mas terá que se virar com um corte de 24% em suas despesas não obrigatórias por determinação do ministro Ricardo Salles, que decidiu concentrar no órgão a maior parte do contingenciamento de recursos para sua pasta impostos pelo Ministério da Economia. O aperto será sentido numa instituição com déficit de pessoal e sem perspectiva de concursos. O Ibama tinha no ano passado 780 fiscais, uma redução de 40% em relação ao efetivo de 1 311 em 2010, segundo dados do próprio ministério.
De acordo com a advogada Suely Araújo, que presidiu o Ibama até janeiro, em 2018 o órgão empenhou 341 milhões de reais com despesas não obrigatórias – 62 milhões a mais do que o valor disponível para este ano. “Se o corte se confirmar e não houver liberação futura desses recursos, o cenário para o segundo semestre de 2019 será muito complicado”, ela prevê.
Números enviados à piauí pela assessoria de comunicação do MMA revelam que as ações de fiscalização caíram 39% em relação a 2018: entre 1º de janeiro e 13 de maio deste ano haviam sido realizadas 3 314 ações de fiscalização, contra 5 466 ações no mesmo período do ano passado. Já o número de multas aplicadas caiu 34% em relação a 2018, se considerado o intervalo de 1º de janeiro até 15 de maio – trata-se do menor índice para esse período nos últimos onze anos, conforme um levantamento do Observatório do Clima. Já as multas aplicadas pelo ICMBio, que não fez nenhuma operação de fiscalização em abril, caíram pela metade no período considerado.
Entre 2012 e 2018 o Ibama lavrou uma média de 15,8 mil autos de infração por ano, num valor total de 3,5 bilhões de reais em multas, conforme mostra uma tabulação dos dados disponíveis no site do órgão. Mais de metade delas foi paga, mas o valor arrecadado equivale a apenas 2,1% do total cobrado. Isso significa que as infrações de valor mais baixo são pagas, enquanto as de mais vulto são postergadas. Apenas 2,9% das multas emitidas no período foram canceladas.
O processo sancionador do Ibama é lento em todas as etapas, desde o início da tramitação – uma em cada cinco multas ainda aguardava a ciência da infração pelo autuado, conforme concluiu um relatório divulgado em abril pela Controladoria-Geral da União. O maior gargalo é o julgamento – no fim de 2017 tramitavam 126 mil processos lavrados desde 2008, na maior parte autos de valor superior a 100 mil reais que só podem ser julgados por funcionários em cargos de direção.
Quem recebe uma multa ambiental tem a prerrogativa de recorrer no próprio órgão ambiental e, se a infração for mantida, pode contestá-la na Justiça. A partir de outubro deste ano, o autuado terá também a opção de negociar a multa junto a um núcleo de conciliação ambiental instituído por decreto presidencial de 11 de abril, naquele que foi o principal gesto do governo Bolsonaro em relação à “indústria das multas”. À imagem e semelhança de um mecanismo similar instituído em São Paulo em 2014, o decreto prevê a realização de uma audiência de conciliação – presencial ou por meio eletrônico – entre o infrator e o novo núcleo, que incluirá um servidor do órgão responsável pela multa. Ao final da audiência, o núcleo terá o poder de anular a infração caso seja constatada alguma irregularidade no processo.
Salles aposta na medida como forma de agilizar o processo sancionador – em São Paulo, dois terços das 25 mil audiências de conciliação realizadas no ano passado terminaram com um acordo firmado, segundo uma reportagem do Valor Econômico. Ambientalistas e fiscais do Ibama veem na medida um mecanismo para fragilizar os autos de infração e estimular a impunidade. O ministro discorda. “Tudo que é feito na presença do autuado e do autuante, com a exposição das razões e pontos de vista de ambos, tende a migrar para uma conciliação mais fácil”, argumentou.
Para presidir o Ibama, Salles nomeou o advogado Eduardo Bim, procurador da Advocacia-Geral da União junto ao órgão ambiental. No começo de abril, Bim rejeitou a recomendação de um parecer de uma equipe técnica do Ibama. Os analistas propunham excluir sete blocos da 16ª rodada de licitações para exploração de petróleo no litoral sul da Bahia. Eventuais vazamentos, concluíram os pareceristas, poderiam afetar o banco de recifes de Abrolhos, maior formação desse tipo no Atlântico Sul. Bim ignorou o alerta e autorizou que os blocos em questão fossem a leilão, numa decisão muito criticada. “Choca o fato de o Estado brasileiro negar suas próprias ferramentas de gestão de riscos para o meio ambiente, para as atividades produtivas e para a vida das pessoas”, afirmou uma nota de repúdio da ONG Oceana.
Perguntei a Salles se acatar a recomendação técnica não seria uma atitude mais alinhada com a missão do Ibama. O ministro respondeu que a decisão não equivalia a liberar aquelas áreas para a exploração de petróleo, e que quem eventualmente adquirisse o lote teria que fazer o licenciamento.
Resta ver se haverá interessados pelos lotes. Numa conversa telefônica, Adriano Pires, consultor que atua na área de petróleo e gás, disse que as empresas levariam em conta o risco de acidentes e a mobilização internacional antes de entrar no leilão. “Para comprar briga ali realmente tem que achar que tem muito petróleo.” Pires afirmou ainda que as petroleiras andam preocupadas em evitar danos ambientais. “Acredito mais na preocupação da Exxon, da Shell ou da Total com o meio ambiente do que na do Ibama.”
A CONSTITUIÇÃO
A Constituição promulgada em 1988 tem todo um artigo dedicado à proteção ambiental, o de número 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, diz a Carta. Esse princípio se desdobra numa série de incumbências do Estado, que incluem proteger a fauna e a flora e sua diversidade, criar áreas protegidas e controlar atividades que possam causar danos ao meio ambiente. O tema ambiental perpassa ainda outros capítulos da Constituição. O artigo 170, por exemplo, define a defesa do meio ambiente como um dos princípios em que se baseia a ordem econômica. Em decorrência disso, atividades econômicas – inclusive empreendimentos agropecuários – que representarem ameaça ao meio ambiente estarão deixando de cumprir sua função social.
Embora a Constituição seja considerada robusta na área ambiental, na época de sua elaboração nem todos concordaram que ela devesse tratar do assunto. “Conservadores achavam que não cabia tratar o meio ambiente como tema constitucional, e sim de legislação específica”, me explicou Fabio Feldmann, que integrou a Constituinte e foi um dos articuladores do artigo 225. O ex-deputado lembrou que o mundo mudou muito desde que o texto foi escrito. “Em 1988 ainda não havia transgênicos ou palavras como biodiversidade, e a preocupação maior eram os pesticidas”, afirmou Feldmann, que considera o texto “bom o suficiente”. “Hoje, com toda a polarização, seria muito difícil aprová-lo.”
Feldmann – que cumpriu três mandatos como deputado federal e foi secretário do Meio Ambiente em São Paulo – disse que a Constituição se beneficiou dos ventos que sopravam a favor da causa ambiental naquele momento histórico. Cientistas começavam a alertar os políticos sobre os riscos do aquecimento global e os olhos do mundo estavam voltados para a Amazônia, que começou a ter sua taxa de desmatamento calculada pelo Inpe a partir de 1988 (o seringueiro e líder sindical Chico Mendes foi assassinado no Acre em dezembro daquele ano). “Ali mudou o patamar da questão, no mundo e no Brasil”, disse.
O despertar global para o problema teve outros reflexos no Brasil. Quatro anos depois de promulgada a Constituição, o país hospedou a Rio 92, a maior cúpula sobre meio ambiente já realizada pela onu. Nela, foram lançadas convenções importantes em que os países se comprometeram a lutar contra as ameaças da mudança do clima, da perda de biodiversidade e da desertificação. Na esteira da Constituição, o Brasil ganhou uma série de leis sobre crimes ambientais, recursos hídricos, unidades de conservação e temas afins.
A preocupação institucional com o meio ambiente é anterior à Constituição de 1988. Desde 1973, o país contava com uma secretaria especial dedicada à área, aninhada no Ministério do Interior (uma pasta exclusiva para o meio ambiente só seria criada no governo de Itamar Franco, em 1992). O primeiro titular da secretaria foi o advogado e naturalista Paulo Nogueira-Neto, figura histórica do ambientalismo brasileiro, que ocupou o posto até o fim do governo militar e morreu em fevereiro deste ano. Nogueira-Neto estimulou a criação de unidades de conservação e articulou a lei de 1981 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente.
Fabio Feldmann lembrou que isso tudo foi feito durante o regime militar, quando também foi criado o Conama, o conselho com participação da sociedade que define normas ambientais. “É uma grande bobagem dizer que meio ambiente é coisa da esquerda”, disse o ex-deputado, que passou pelo MDB, pelo PSDB e atualmente é filiado ao PV. Feldmann lembrou que, nos Estados Unidos, o Partido Republicano – durante a gestão Richard Nixon, entre 1969 e 1974 – teve papel determinante ao introduzir a avaliação ambiental, e que Margaret Thatcher, premiê britânica entre 1979 e 1990, foi a primeira estadista a compreender as mudanças climáticas, por ser química de formação. “Os ambientalistas precisam atrair para sua frente parlamentar gente que não é de esquerda”, afirmou. “O tema tem que ser suprapartidário.”
Parte das medidas do governo Bolsonaro está sujeita à aprovação do Congresso. Presidente da Comissão do Meio Ambiente no Senado, o senador capixaba Fabiano Contarato, da Rede, quase perdeu o fôlego ao listar todas as medidas do governo que lhe pareciam nocivas ao equilíbrio ambiental, numa entrevista no começo de maio. “É muito estrago para pouco tempo, e isso me assusta”, disse ele. “Minha atuação vai ser de resistência e repulsa a todo projeto de lei que violar o direito fundamental ao meio ambiente.”
Na Câmara, a comissão equivalente é presidida por Rodrigo Agostinho, do PSB paulista. “Não é natural um ministro do Meio Ambiente que não defenda o meio ambiente, ainda mais no país que tem a maior diversidade biológica e concentra boa parte das florestas tropicais e da água doce do mundo”, disse o deputado. “O Parlamento pode criar ressonância pra esses temas, mas não acho que a gente vá conseguir sucesso em tudo.”
Contestações a medidas do governo Bolsonaro na área ambiental têm surgido também no Ministério Público Federal, cuja função é defender os direitos dos cidadãos e fiscalizar o cumprimento da lei. Membros do MPF já pediram explicações sobre atos e declarações de Ricardo Salles – como ao manifestar a intenção de converter em serviços ambientais as multas no valor de 250 milhões de reais aplicadas à Vale pelo rompimento da barragem de mineração em Brumadinho (o ministro acabou recuando).
O procurador Daniel Azeredo, que atua na Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural da Procuradoria-
Geral da República, ponderou que, com cinco meses de mandato, ainda é cedo para identificar o impacto ambiental de ações do novo governo. Lembrou também que é importante distinguir ilegalidades das ações legítimas de um governo eleito democraticamente com suas bandeiras. “Mas às vezes a diferença não é tão nítida”, afirmou. “O MPF tem um teto, que é a Constituição.”
Na Abrampa, a associação que divulgou uma carta denunciando retrocessos na gestão ambiental, os promotores e procuradores estão mobilizados num comitê de crise, analisando os efeitos de algumas medidas do governo. Já têm uma lista de prioridades – uma tabela com decretos, medidas provisórias e instruções normativas a serem impugnadas. “Os promotores estarão prontos para enfrentar medidas contrárias ao meio ambiente nos estados”, disse o presidente da associação, Luis Fernando Cabral Barreto Junior, que atua no Ministério Público do Maranhão.
Numa conversa com Oscar Graça Couto, advogado que atua na área ambiental no Rio de Janeiro, perguntei se a Constituição e a legislação brasileira são resilientes a medidas que fragilizem a proteção ambiental. Couto disse que o país tem um regime jurídico rigoroso em matéria ambiental e que os tribunais superiores têm agido em benefício do meio ambiente, aplicando princípios de prevenção, precaução e proibição do retrocesso – uma interpretação da Constituição que veda qualquer recuo em relação a direitos fundamentais previamente garantidos. Couto concluiu seu raciocínio dizendo que o conjunto de normas ambientais, tal qual elas vêm sendo interpretadas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, é, sim, resiliente. “Mas não significa que muito estrago não vá ser feito.”
O MERCADO
O Brasil joga na primeira divisão da diplomacia climática mundial, cuja principal arena são as conferências que reúnem, todo fim de ano, representantes dos quase 200 signatários da Convenção do Clima da onu. Os negociadores brasileiros têm bom trânsito entre os colegas estrangeiros e desempenharam papel importante na costura do Protocolo de Kyoto e do Acordo de Paris, os dois principais tratados internacionais com objetivo de frear o aquecimento global.
Em janeiro, o Itamaraty perdeu a sua Divisão da Mudança Climática, e o tema desapareceu da estrutura do ministério, à imagem do que aconteceu na pasta do Meio Ambiente. A pedido de Jair Bolsonaro, o país abriu mão de sediar a conferência do clima deste ano, que foi transferida para Santiago. Ainda não se sabe como o Brasil vai entrar em campo no Chile.
Nas rodadas de discussão climática, não é raro que negociadores e ministros de Estado atravessem a madrugada para desfazer nós diplomáticos que dividem os países. A última conferência foi realizada em Katowice, polo de produção carvoeira na Polônia, durante um inverno severo, num centro de convenções que cheirava a carvão, segundo um participante da delegação brasileira. “Isso não é reunião de condomínio, é a busca de consenso entre 195 países, e é tratado [pelo ministro Ricardo Salles] como se fosse um passeio no exterior para jantar fora”, disse Izabella Teixeira, que chefiou a delegação brasileira na conferência em que foi assinado o Acordo de Paris. “É um apequenamento sem precedentes da diplomacia brasileira.”
No nível retórico, o governo Bolsonaro tenta se vender como paladino da conservação para o público externo. O presidente destacou sua preocupação com o meio ambiente ao falar para a plenária do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, em seu primeiro discurso internacional. “Somos o país que mais preserva o meio ambiente”, afirmou. “Nenhum outro país do mundo tem tantas florestas como nós.” Errou duas vezes, reforçando um falso argumento comum entre os ruralistas que apoiam seu governo – a Rússia é, com folga, o país com maior cobertura florestal, e o Brasil é quem mais desmata no planeta, além de figurar na 69ª posição num ranking de desempenho ambiental. O próximo grande compromisso multilateral de Bolsonaro será a reunião de cúpula do G20, este mês no Japão.
O Brasil postula a entrada na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 36 dentre os países de maior PIB no mundo. A organização tem por objetivo promover o progresso e o comércio entre os países, mas defende políticas públicas que fortaleçam a conservação. Na avaliação de Izabella Teixeira, indicadores ambientais desfavoráveis poderiam prejudicar a candidatura do país. “Se o Brasil não tiver políticas públicas estruturadas, com transparência, verificação e compliance, pode haver restrição à entrada na OCDE.”
Parceiros comerciais do Brasil no exterior, principalmente os compradores das commodities produzidas na Amazônia, andam preocupados em evitar o que chamam de “desmatamento importado”, e têm exigido cada vez mais garantias de que os bens que compram são produzidos em conformidade com normas de respeito ao meio ambiente. Um exemplo é a Declaração de Nova York sobre Florestas, que foi assinada em 2014 e reúne dezenas de governos, ONGs e multinacionais, como Cargill, Danone, McDonald’s e Nestlé, em torno de compromissos para frear o desmatamento.
Em meados de maio conversei por Skype com Nathalie Walker, diretora de florestas tropicais e agricultura da National Wildlife Federation. Essa ONG conservacionista americana presta consultoria para empresas de varejo internacionais com políticas de combate ao desmatamento importado. “As empresas querem comprar mais do Brasil, mas os governos e os consumidores têm preocupações quanto à mudança do clima e ao meio ambiente”, disse ela. “O Brasil é um país de sorte e não precisa escolher entre a agricultura e o meio ambiente para ser uma potência agrícola nas próximas décadas.”
O mercado financeiro também está preocupado com as perdas que pode sofrer em decorrência do aquecimento global. Em artigo recente numa publicação do Federal Reserve Bank, o banco central americano, um executivo da instituição afirmou que eventos climáticos extremos poderiam desencadear um cenário de falências em série, perturbar o sistema de créditos e o comércio global, levando a uma crise econômica. O risco, concluiu, representa uma ameaça ao sistema financeiro como um todo.
“Nos próximos dez anos, os bancos e grandes instituições financeiras vão ter que começar a pensar em como a mudança climática pode afetar seu portfólio”, disse Sérgio Rial, presidente do Banco Santander para a América do Sul. Rial afirmou que essa é uma demanda vinda do próprio mercado. “Os investidores de grandes fundos de pensão europeus já olham de forma muito mais criteriosa o compromisso das empresas em relação a suas agendas de sustentabilidade”, continuou. “Essa deixou de ser uma agenda política para se tornar uma agenda de estrutura do capital das empresas.” Perguntei a Rial se era do interesse da economia brasileira manter a Amazônia de pé. “É absolutamente estratégico para o Brasil manter e promover sua biodiversidade”, respondeu o banqueiro, e acrescentou que não só na floresta, como também no cerrado, na Mata Atlântica e em outros biomas. “A produção agrícola brasileira tem que continuar sendo feita com a noção de preservação.”
Alguns setores do agronegócio brasileiro compreenderam a mensagem e estão apostando em modelos mais sustentáveis de produção, pois não querem ver seus produtos associados ao desmatamento ilegal. Veio deles a pressão para Bolsonaro manter o Ministério do Meio Ambiente e a adesão ao Acordo de Paris. “Sustentabilidade não é modismo ou ideia passageira, é condição essencial para a competitividade global”, disse o engenheiro agrônomo e produtor rural Roberto Rodrigues, que foi ministro da Agricultura no governo Lula.
Em 2006, produtores firmaram com ONGs e o governo a moratória da soja, pela qual se comprometeram a não plantar em áreas desmatadas na Amazônia daquele momento em diante. A área coberta pela soja quadruplicou desde então, mas na safra de 2017-18 só 1,4% ocupava trechos desmatados – a expansão do cultivo se deu sobretudo em áreas já derrubadas que estavam ocupadas por pastagens. Os números são da Abiove, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, que representa a indústria processadora de soja pacto.
Numa entrevista telefônica, o presidente da Abiove, André Nassar, disse que o Estado nunca foi capaz de combater o desmatamento ilegal e que por isso os produtores se mexeram. “A indústria teve que fazer a moratória para garantir que não haveria desmatamento na cadeia da soja.” Nassar contou que seus compradores querem saber se os grãos vêm de área desmatada. “O desmatamento ilegal, sem respeitar o Código Florestal, é um problema para nós.” Ele afirmou ainda que a indústria da soja está alinhada com a agenda climática, mas defende a compensação financeira dos produtores pela conservação. Considera o Acordo de Paris positivo para o Brasil e não enxerga nele ameaça à soberania do país. “A nós interessa cumprir.”
Esse discurso encontra eco no pensamento de Luiz Cornacchioni, diretor da Associação Brasileira do Agronegócio e um dos líderes da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, entidade que reúne representantes de produtores, empresas, ONGs e da academia. Cornacchioni afirmou que é possível produzir e conservar. “Hoje você tem tecnologias que permitem fazer isso de forma harmônica”, afirmou. “Com isso você ganha mercado, lá fora e aqui também.” O desmatamento, continuou, prejudica a imagem do setor e do país. “Desmatamento ilegal é impensável, não deveríamos nem estar conversando sobre isso.”
Também na pecuária há vozes que defendem o alinhamento com a proteção ambiental prevista na lei. O setor tem papel preponderante no desmatamento. Sessenta por cento das áreas desmatadas na Amazônia estão cobertas por pastagens de baixa densidade na maior parte dos casos – há 0,9 cabeça de gado por hectare na região, ou menos de um boi para cada campo de futebol.
O produtor rural Caio Penido, presidente do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável, que reúne produtores, fornecedores, indústrias e outros atores do setor, disse que os pecuaristas querem conciliar produção e conservação, mas defende mecanismos de compensação para os proprietários comprometidos com o meio ambiente. O Código Florestal determina que os produtores mantenham a vegetação nativa de uma parcela de sua propriedade – essa reserva legal é de 35% da área no cerrado e de 80% na Amazônia. Penido argumentou que os produtores arcam com o custo de manter essas reservas, despesa que os competidores estrangeiros não têm. “Precisamos transformar esse ativo em riqueza”, defendeu. “Se isso é importante para o equilíbrio ambiental do mundo, precisa ter um valor.”
Mas nem todos os ruralistas enxergam a questão ambiental sob o mesmo prisma. Na outra ponta do espectro, há produtores rurais da base de apoio a Bolsonaro que reivindicam o fim das unidades de conservação, a revisão do Código Florestal e a extinção do Ibama e do ICMBio. Numa tarde de abril, fazendeiros do Pará foram a Brasília apresentar reivindicações como essas numa reunião fechada no Ministério da Agricultura que contou com a presença da ministra Tereza Cristina, de Nabhan Garcia e do presidente do Ibama, Eduardo Bim, conforme relatou uma reportagem da Agência Pública de Jornalismo.
Os representantes do governo alegaram que muitas daquelas reivindicações não estavam ao alcance do presidente Bolsonaro, mas dependiam do Congresso. O presidente do Ibama – chamado no evento de “instituto brasileiro do assalto à mão armada” – afirmou o apreço do órgão pelos produtores rurais. “A gente está tentando mudar uma mentalidade que existiu no passado, de perseguição para quem produz neste país”, disse Bim, ainda segundo a reportagem. Mais adiante, afirmou: “Mudar a cultura de um órgão é uma coisa que demora um pouco, mas a gente está lutando para que essas mudanças aconteçam.”
Perguntei a João Adrien Fernandes, assessor especial para assuntos socioambientais do Ministério da Agricultura, como era possível conciliar os interesses conflitantes dos ruralistas na pasta. Em sua resposta, Fernandes falou sobretudo do setor mais progressista. “Há uma classe de produtores e entidades que perceberam a necessidade de integrar produção e conservação, principalmente pela implantação do Código Florestal.” Disse ainda que a ministra Tereza Cristina foi apoiada por esse setor e quer trabalhar para fazer da sustentabilidade um ativo do agronegócio brasileiro. “Será nosso diferencial.”
Na contramão do que houve nas pastas do Meio Ambiente e das Relações Exteriores, o aquecimento global ganhou importância no organograma do Ministério da Agricultura, que criou uma coordenação-geral de mudanças climáticas. “Temos enxergado a questão do clima como um tema relacionado principalmente aos riscos para a produção agropecuária”, disse Fernandes. Dentre as prioridades da pasta para o tema estão ações de zoneamento e a incorporação de tecnologias que tragam resiliência e adaptação para os produtores. O assessor especial entende que o Acordo de Paris pode trazer vantagens competitivas para o Brasil, por estimular uma agricultura intensiva, feita com tecnologias modernas e em integração com a pecuária. “Se nossa agricultura adotar isso, reterá carbono e contribuirá para cumprirmos as metas de Paris”, afirmou.
No dia 16 de abril, os senadores Flavio Bolsonaro, do PSL fluminense, e Marcio Bittar, do MDB do Acre, apresentaram um projeto de lei que acaba com a reserva legal das propriedades rurais – o trecho em que os fazendeiros precisam manter a vegetação nativa, conforme estipula o Código Florestal. Para fundamentar seu projeto, os parlamentares insistiram no argumento – infundado – de que o país que mais desmatou em 2018 “é um dos que mais preserva sua vegetação no mundo”.
Caso aprovado, o projeto legalizaria da noite para o dia a derrubada de 156 milhões de hectares, o equivalente a seis estados de São Paulo. Se toda a área liberada fosse desmatada, seria lançado na atmosfera o equivalente a quase 65 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, quantidade que o Brasil levaria 27 anos para emitir, se mantidas as condições atuais, conforme o cálculo do engenheiro florestal Tasso Azevedo feito para a seção = Igualdades, do site da piauí.
O caso brasileiro mostra que não há contradição intrínseca entre conservar e produzir. O Brasil é ao mesmo tempo o segundo país do mundo com maior cobertura florestal e o terceiro com maior área dedicada à agropecuária. Nos anos de redução do desmatamento, entre 2004 e 2012, a produção de soja subiu e o rebanho bovino cresceu na Amazônia. Nos municípios que receberam ações prioritárias do plano governamental de combate ao desmatamento, o número de cabeças de gado por hectare aumentou até 36%, como mostrou um estudo publicado em março no American Journal of Agricultural Economics.
Acabar com as reservas legais pode ser um tiro no pé dos próprios produtores rurais, conforme me explicou o biólogo Braulio Ferreira de Souza Dias, da Universidade de Brasília, numa entrevista num café na capital federal. Para se adaptar às mudanças climáticas, disse o professor, o setor agrícola depende de água e de recursos genéticos: polinizadores que garantam a reprodução das plantas, minhocas para reciclar os nutrientes do solo, agentes de controle biológico que combatam pragas. “Se destruirmos o meio ambiente não teremos nada disso”, alertou o biólogo, que dirigiu a Convenção sobre Diversidade Biológica da onu até 2016. Quem vai arcar com o prejuízo, continuou, serão os próprios produtores e os demais contribuintes. “Isso revela uma incapacidade de pensar a longo prazo.”
Dias afirmou que, a partir de determinado patamar de desmatamento, a Amazônia pode perder a capacidade de se regenerar – correndo o sério risco de se transformar numa espécie de savana. Diferentes modelos computacionais apontam esse cenário, mas divergem sobre quando viria o ponto de ruptura, que pode chegar quando a floresta tiver perdido de 20% a 40% de sua cobertura original (já perdeu 18%). “Vai ser ruim para a manutenção da riqueza da floresta amazônica e péssimo para a agricultura no cerrado e em São Paulo”, avaliou o biólogo. Isso porque, se a floresta não se regenerar, as precipitações ao sul vão diminuir. “Mais de 90% da chuva que mantém essa agricultura vêm da Amazônia, da evapotranspiração da floresta.”
O projeto de lei que extingue a reserva legal nas propriedades rurais está em fase inicial de tramitação. Trata-se de uma reencarnação de um projeto com a mesma finalidade apresentado antes por Marcio Bittar, cuja relatoria foi distribuída ao senador Fabiano Contarato. Bittar retirou o projeto e submeteu nova versão, em coautoria com o filho do presidente. Roberto Rocha, do psdb maranhense, foi o relator apontado para o novo projeto, o que Contarato considerou uma “manobra espúria” para afastá-lo. Contarato vai recomendar a rejeição do projeto à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. “Os impactos da revogação das reservas legais são enormes, irrecuperáveis e injustificados”, afirmou.
A proposta não foi a única tentativa de mudar trechos do Código Florestal. Uma série de emendas à Medida Provisória nº 867, editada por Michel Temer no ano passado, introduziu dispositivos que enfraquecem a proteção ambiental. A medida propunha inicialmente prorrogar o prazo para a adesão dos produtores ao programa de regularização ambiental, pelo qual os proprietários recuperariam áreas que foram desmatadas além do limite permitido pelo código. Mas o texto recebeu diversos penduricalhos – ou jabutis – sem relação com a matéria original. Um deles propunha uma anistia a produtores que desmataram a reserva legal de suas propriedades – eles seriam dispensados de recuperar até 5 milhões de hectares, uma área maior que a da Dinamarca, segundo cálculos do Observatório do Código Florestal. Em 29 de maio, a Câmara aprovou a MP nº 867 com seus jabutis, mas até o fechamento desta edição o Senado não havia votado a medida, que perderia a validade caso não fosse aprovada até 3 de junho.
O Código Florestal foi discutido ao longo de onze anos antes de ser aprovado e teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. “Isso é uma bobagem”, exasperou-se Luiz Cornacchioni, da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, quando mencionei as propostas de mudar a lei. “Não faz o menor sentido voltar ao Código Florestal.” Cornacchioni disse que a lei de 2012 é imperfeita, mas moderna, se comparada a leis equivalentes de outros países. Lembrou que os compromissos que o Brasil assumiu internacionalmente têm por base a implementação do código. “Mudar a regra no meio do jogo é mandar um sinal muito ruim para o mercado.”
O índice anual de desmatamento da Amazônia, a ser divulgado pelo MMA no segundo semestre, será o principal indicador para confirmar, ou não, o agravamento do problema. Estimativas preliminares indicam que a taxa vai aumentar: de acordo com o sistema de monitoramento do Imazon, a derrubada da floresta cresceu 20% entre agosto do ano passado – ponto de partida do calendário que calcula o desmatamento – e abril deste ano, em comparação com o mesmo período um ano antes.
Desde já, Ricardo Salles culpa a gestão anterior por um eventual resultado negativo. “O desmatamento vem aumentando ininterruptamente desde 2012”, alegou o ministro, com uma informação equivocada que ele reiterou mesmo depois que eu a contestei (apesar da trajetória de crescimento, a taxa anual caiu em duas ocasiões desde então – em 2014 e 2017). “Se há um questionamento a ser feito”, continuou Salles, “é por que, a despeito da discussão que outros fizeram sobre esse tema, o desmatamento continua aumentando.”
O Brasil tem desde 2009 uma Política Nacional sobre Mudança do Clima registrada em lei, na qual o país se comprometeu a reduzir até 2020 o desmatamento anual na Amazônia para 3 925 quilômetros quadrados – metade da área derrubada entre agosto de 2017 e julho de 2018. Há outra meta para dali a dez anos: no âmbito do Acordo de Paris, o Brasil assumiu o compromisso voluntário de zerar o desmatamento ilegal até 2030, entre outras ações para frear o termômetro global.
Quando perguntei se o país cumpriria a meta prevista para o ano que vem, o ministro respondeu que não se tratava de uma “ciência exata”, e que não poderia dizer se vai ou não cumpri-la. Quanto à meta do Acordo de Paris, para 2030, Salles disse que estava encaminhada. “Todos os compromissos que o Brasil assumiu para adaptação e mitigação de mudança do clima foram mantidos e estão sendo cumpridos.”
Num artigo publicado em 2018 na Nature Climate Change, dez pesquisadores brasileiros investigaram como as futuras políticas públicas ambientais do país poderiam afetar o cumprimento de suas metas no Acordo de Paris. Fizeram projeções nas quais consideraram três cenários, em que variava a intensidade da governança ambiental. No cenário de governança fraca, o controle do desmatamento é interrompido, as atividades agropecuárias predatórias são incentivadas e a perda de floresta volta aos picos históricos.
O pesquisador Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na UFMG e um dos autores do estudo, contou que o grupo já havia notado uma tendência de aumento gradual no desmatamento em consequência de retrocessos ambientais no governo Temer. “Mas vemos agora o provável aumento do desmatamento em consequência de um desmonte explícito das políticas de controle, apontado no cenário de governança fraca do estudo”, disse Rajão. Caso se confirme esse cenário, continuou, podemos chegar a um nível de emissões de gases do efeito estufa no qual o Brasil teria de comprar créditos de carbono de outros países – a conta pode chegar a 5 trilhões de dólares até 2050 no cenário mais pessimista, segundo os pesquisadores – ou fracassar em seus compromissos e sofrer retaliações comerciais. “Em ambos os casos, estaremos criando um grande prejuízo para a economia em troca de um desmatamento feito em prol da pecuária de baixa produtividade”, disse o pesquisador.
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