Na casa de Olinda, o bibliotecário Edson Nery da Fonseca declama poesias de Manuel Bandeira, faz inconfidências sobre GIlberto Freyre e ironiza os políticos a quem serviu. Ele montou a biblioteca do Alvorada, mas acha que a maioria dos presidentes não lê: "Dilma é mais técnica do que culta." FOTO: BETO FIGUEIROA_2012
O memorialista
As amizades e os livros de Edson Nery da Fonseca
Carol Pires | Edição 72, Setembro 2012
O carrilhão mais sonoro de Olinda é o da Basílica de São Bento. Quando anuncia 18 horas, o bibliotecário Edson Nery da Fonseca pede licença e põe-se a rezar – primeiro, o Angelus; depois, “Ubiquidade”, um poema de Manuel Bandeira:
Estás em tudo que penso
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.
[…]
Ele recita a oração e o poema na mesma cadência. “Quando rezo esse poema, penso em Deus”, emenda.
O badalar dos sinos ecoa alto como se viesse da cozinha da casa de número 90 na rua São Bento, a 21 metros da Basílica, famosa também pelo seu altar-mor, de cedro e ouro, que já esteve exposto em 2001 no Museu Guggenheim, em Nova York. A proximidade é intencional. Quando parou de trabalhar, há 21 anos, Nery decidiu viver como oblato (leigo que serve à comunidade religiosa) da Ordem Beneditina e comprou a casa mais próxima à Basílica que encontrou à venda.
Edson Nery da Fonseca é um dos bibliotecários mais conceituados do país. É também bibliófilo e “bibliósofo”, como o chamava o amigo e intelectual Antônio Houaiss, para dizer que ele não só atua na profissão como também pensa sobre ela. Na casa de Nery, porém, quase não há livros. Uma biografia do pensador renascentista francês Michel de Montaigne repousa na estante, o segundo tomo da História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, está ao alcance da mão, numa escrivaninha ao lado da poltrona de couro marrom da sala.
No chão da casa estão marcados os sinais das estantes que outrora ocupavam toda uma parede da sala, o corredor e parte da cozinha, nas quais Nery guardava 11 700 livros. Em 2001, ele vendeu a coleção ao empresário Ricardo Brennand. A biblioteca agora está em um castelo de estilo medieval na região da Várzea, no Recife. A família Brennand é tradicional em Pernambuco – seu integrante mais famoso é Francisco Brennand, escultor e ceramista. O pai de Ricardo, Antônio, foi padrinho de Edson Nery e por isso ele teve preferência na compra da coleção. Levou primeiro os 595 volumes sobre o sociólogo Gilberto Freyre, de quem Nery foi amigo por 47 anos. Quando decidiu desfazer-se do restante, o bibliotecário separou as grandes coleções sobre Salvador Dalí, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, T. E. Lawrence, e estipulou um preço do qual não se recorda para cada uma. No restante do acervo contou 10 reais por exemplar. “Deu uma fortuna e ele pagou sem questionar”, diz. O Instituto Ricardo Brennand não divulga o valor pago.
Edson Nery cresceu no Recife, na rua do Progresso, filho de um representante comercial e de uma dona de casa, pais de sete filhos – Ida, Edson, Amelinha, Jorge, José, Lúcia e Paulo. Apenas as duas irmãs mais novas estão vivas. Com 90 anos completados em 6 de dezembro, Nery não consegue mais sustentar seu corpanzil de 1,89 metro sem apoio. São dois enfermeiros que se revezam de segunda a sexta-feira, um terceiro que o ajuda no fim de semana e uma cozinheira trabalhando na casa dele. A rua de paralelepípedo virou um desafio. Para a missa de domingo vai de carro até a igreja no final da rua e senta-se numa cadeira especial, acolchoada, na porta da sacristia. Sua rotina, há anos, é receber a bênção do irmão Gregório no início da manhã, fazer fisioterapia, dormir a sesta, ler e acariciar a gata dileta, Daminha.
Mais surpreendente que a casa de um bibliotecário sem livros é a memória prodigiosa de um causeur – e dos mais bem relacionados. A nenhuma história faltam datas, nomes de rua ou sobrenomes. Poucas vezes vacila ao recitar um poema e, ainda assim, horas depois ou no dia seguinte, ao incluir o mesmo poema em uma anedota, repete-o completo.
Os casos mais fartos são sobre Gilberto Freyre, com quem fez amizade ainda jovem, ele aos 20 anos, Freyre aos 41. Depois de ler Casa Grande & Senzala no curso pré-jurídico do Colégio Oswaldo Cruz, no Recife, Nery passou a frequentar todas as conferências do autor. No ano seguinte, foi estudar no Ginásio Pernambucano e tornou-se colega de classe de Gilberto Freyre Costa, sobrinho do sociólogo. “Ele, ao me conhecer, levou ao tio: ‘Tenho um colega que, quando atacam seus livros, ele defende e ganha todas as discussões. Isso porque leu tudo e os outros não leram’”, recorda.
Gilberto Freyre pediu ao sobrinho que combinasse um jantar entre os três no Restaurante Leite, na praça Joaquim Nabuco, no Recife, o mais tradicional da cidade e um dos mais antigos do Brasil, de 1882. Do encontro, Nery guarda duas vergonhas. Aos 20 anos, nunca tinha ido a um restaurante e, quando o garçom lhe perguntou se queria o filé bem ou malpassado, não fazia ideia do que significava aquilo. “Gilberto Freyre era muito generoso e, quando viu minha cara, se adiantou: ao ponto, não é isso?” A outra foi um ensaio que tinha escrito e entregou a Freyre sobre a poesia na obra dele. Era tão ruim que nunca falaram no assunto. A amizade dos dois passou a incluir almoço com cozido e cachaça de pitanga toda quinta-feira em Apipucos, o bairro de Freyre. As únicas discordâncias eram sobre Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges (o sociólogo os achava superficiais).
Freyre foi o segundo amigo ilustre de Edson Nery. O primeiro havia sido o crítico literário Álvaro Lins, seu professor de história da civilização no ginasial. No livro Literatura e Vida Literária: Diário e Confissões, publicado em 1963 pela Civilização Brasileira, Álvaro Lins anota um encontro com Nery: “Recebo a visita de E. N. F. Ele tem 20 anos: está diante da vida literária com a ansiedade e o deslumbramento dos que trazem uma verdadeira vocação. Vejo que já se acha na posse de uma orientação literária, que já conhece o seu próprio caminho. Leio o seu primeiro artigo, que apresenta uma segurança e uma lucidez muito acima da sua idade.” No pé da página, Lins observou: “Edson Nery da Fonseca, então jovem escritor; tornou-se a nossa maior competência e autoridade em biblioteconomia e bibliografia, presentemente, em sentido nacional e internacional.”
Entre o curso pré-jurídico e o início da carreira de bibliotecário, Edson Nery pensou em tornar-se monge após um retiro espiritual no Mosteiro de São Bento, o mesmo do qual hoje é vizinho. Mas foi convocado a servir no 14º Regimento de Infantaria em 1943, quando o Brasil começava a organizar a Força Expedicionária Brasileira que iria ao combate na Segunda Guerra. “O Exército me ensinou a cuidar do meu corpo, que eu não cuidava. Aprendi a nadar na piscina do regimento, aprendi a jogar futebol, que no colégio eu nunca joguei porque eu vivia em casa lendo. Mens sana in corpore sano”, diz.
Quando deixou o Exército, havia desistido do monastério e foi para o Rio de Janeiro estudar na Biblioteca Nacional, no primeiro curso superior de biblioteconomia no Brasil. Os primeiros anos no Rio somaram a Nery duas outras amizades de referência – o diretor da biblioteca, Rubens Borba de Moraes, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, e o crítico Otto Maria Carpeaux, de quem foi estagiário na biblioteca da Fundação Getulio Vargas.
Gilberto Freyre também foi morar na capital federal naquele mesmo 1946, eleito para a Assembleia Constituinte. O primeiro dos 135 ensaios que Nery escreveu sobre Gilberto Freyre (reunidos em O Grande Sedutor: Escritos sobre Gilberto Freyre de 1945 até hoje, publicado em 2011 pela editora Cassará) foi sobre os bastidores da campanha. Pela manhã, Freyre pesquisava na seção de obras raras da Biblioteca Nacional e Nery estudava biblioteconomia. Juntos, caminhavam ao menos sete quadras depois do almoço até a porta do Palácio Tiradentes, sede do Congresso Nacional e hoje da Assembleia Legislativa do Estado do Rio.
Sônia Freyre, filha de Gilberto, diz se lembrar dos amigos do pai como tio Bandeira, tio Gigante e tio Zé Lins: o poeta Manuel Bandeira, Edson Nery, com seus olhos azuis e altura de galã de cinema, e José Lins do Rego, que Sônia considera ter sido o melhor amigo de seu pai entre os três.
“Sempre quando quero saber em qual livro está esse ou aquele trecho, ligo para Nery. Ele tem uma memória prodigiosa”, diz Sônia. Ela ressalva, no entanto, haver uma incongruência nas memórias do bibliotecário. “Agora ele deu para dizer que Gilberto foi apaixonado por uma mulher, [a poeta] Amy Lowell, e que foi aos Estados Unidos visitar o túmulo dela. Mas papai era um esteta, jamais olharia para aquela mulher. Não é ciumeira não, que ele deve ter olhado para muita mulher, mas essa eu não engulo, não.”
A historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, curadora da homenagem a Gilberto Freyre na Festa Literária Internacional de Paraty de 2010 e autora da biografia Gilberto Freyre: Um Vitoriano dos Trópicos, confirma Edson Nery como o maior conhecedor da obra de Freyre – se a palavra conhecedor for tomada literalmente. “Penso que não há exagero em dizer que ele conhece praticamente todos os livros, artigos, opúsculos que Freyre escreveu, assim como muito do que foi escrito sobre sua obra”, afirma Maria Lúcia. Ela cita o livro Gilberto Freyre de A a Z, de Nery, como uma amostra do conhecimento enciclopédico do autor. Na coleção vendida em 2001 a Ricardo Brennand, 72 títulos tinham Nery como autor, organizador, introdutor ou prefaciador.
Quando a palavra “conhecedor” for entendida no sentido de crítico da obra de Freyre, Maria Lúcia afirma que essa pessoa não existe: “A abordagem híbrida e interdisciplinar com que Freyre estudou a sociedade brasileira –em que campos variados como literatura, antropologia, sociologia, história e psicologia têm, todos eles, o seu papel – explica tanto a riqueza da obra freyriana como a dificuldade de estudá-la como um todo.” Um dos créditos que ela dá a Nery é ter chamado atenção para os aspectos literários e estilísticos dos quais Freyre tanto se orgulhava, inclusive manifestando irritação com quem o reconhecia apenas como sociólogo e historiador, e não como escritor.
De todos os escritores e poetas que Nery conheceu – Cecília Meireles, Cassiano Nunes, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Guimarães Rosa –, a quem mais se devotou foi Manuel Bandeira. “Nery tinha devoção ao Bandeira, era muito insistente com isso e sabia seus versos de cor. Bandeira me contou como tinha escrito a ‘Última canção do beco’e eu contei a Nery. Ele ficava fascinado por essas histórias. Disputávamos quem sabia todos os versos. Disputar é modo de dizer. Ele ficava animado em citar os versos de que eu não me lembrava”, diz o poeta amazonense Thiago de Mello, 86 anos, amigo da mesma turma.
Para chegar a Bandeira, Nery pediu que Freyre lhe escrevesse uma carta de apresentação. Com ela, bateu à porta do poeta pernambucano, na avenida Beira-Mar, no Rio. Geralmente quando narra uma memória, Nery a intercala com um poema que compõe o cenário ou que foi escrito por causa da ocasião. Ele se lembra do apartamento de Bandeira com vista para o pátio interno do edifício e isso o leva a entoar:
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa;
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato…
Nery esbugalha os olhos e, com o peito cheio de ar e entonação teatral, arremata em exclamação:
O bicho, meu Deus, era um homem!!!
Nery escreveu uma reportagem sobre a casa da rua da União, no Recife, onde as vizinhas lhe contaram histórias sobre o bebê Bandeira; editou várias coletâneas sobre o poeta e reuniu as memórias no livro Alumbramentos e Perplexidades, publicado pela Carpe Diem. O livro tem fac-símiles de cartas trocadas pelos dois e histórias que, tal qual sua prosa oral, se entremeiam com poemas de Bandeira. Nery e o jornalista Zuenir Ventura falaram sobre a amizade com Bandeira na Flip de 2009, em homenagem ao poeta. Em 2010, com a saúde melhor do que hoje, mas já em cadeira de rodas, Nery voltou a Paraty para contar histórias do homenageado Gilberto Freyre.
O bibliotecário desata uma infinidade de inconfidências sobre os amigos ilustres. “Diziam que Gilberto Freyre era filho de Estácio Coimbra, e não do doutor Alfredo Freyre. Uma vez, eu estava sozinho com ele e perguntei: ‘Gilberto, é verdade que você é filho do político Estácio Coimbra?’ Gilberto respondeu: ‘É o que dizem…’”, conta Nery. “Ele tinha um grande senso de humor.”
Algumas fofocas fariam corar os monges do Mosteiro de São Bento, como a de que os poemas religiosos de Carlos Drummond de Andrade foram escritos depois que o itabirano recuperou a fé da mocidade através da paixão tórrida que viveu com Lygia Fernandes.
As inconfidências, porém, param na porta de casa. Ainda que conte no livro Vão-se os Dias e Eu Fico (Ateliê Editorial), publicado em 2009, que não se casou por ser homossexual, ele não revela seus namorados. Assente que Gilberto Freyre lhe confidenciou experiências homossexuais, mas garante que ambos foram apenas amigos. “Nunca gostei de homens mais velhos”, diz. Na parede da sala dele há um desenho de um homem jovem em preto e branco. Ele confirma que foi um dos seus namorados, mas não diz o nome, só que hoje é padrinho do filho desse antigo affair.
Edson Nery é considerado por alguns o papa da biblioteconomia no Brasil, entre outros motivos por ter ajudado a montar dois cursos universitários da especialidade – no Recife e em Brasília –, por ser autor de livros essenciais na formação acadêmica dos bibliotecários, por ser um defensor da modernização das bibliotecas e por nunca ter poupado bibliotecas e colegas de profissão de comentários amargos.
Ele começou a alinhavar sua história com a da biblioteconomia moderna no Brasil em 1948, quando voltou a Pernambuco e reformou a biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade do Recife. Sua primeira atitude ao chegar foi pedir ao diretor que mandasse embora todos os funcionários que não tinham dado certo em outros setores e estavam encostados ali. “Pedi para realocarem um lá que passava o dia tomando sol no jardim. Depois ele voltou um dia e me disse, armado e bêbado: ‘Vim aqui para tirar sua vida.’ Fiquei apavorado, mas consegui fugir. Fui ao diretor da faculdade dizer: ‘Olha, vocês demitiram o homem e agora estou sendo ameaçado de morte.’ O diretor me disse: ‘Ah, Edson, me desculpe, ele realmente tinha cara de assassino’”, diverte-se.
Em artigo publicado à época na revista O Cruzeiro, Gilberto Freyre disse dar gosto entrar na biblioteca reformada por Nery: “Os livros parecem chegar às mãos dos estudiosos com uma alegria de livros que nasceram para serem lidos e não para serem guardados em estantes sepulcrais.” O trabalho no Recife azedou porque Nery publicou no Diário de Pernambuco, onde escrevia semanalmente, várias críticas à ideia do governo de construir um pomposo edifício para a biblioteca pública. Foi demitido uma semana depois.
Ao deixar a universidade, Nery peregrinou por vários empregos. Inspecionou as bibliotecas públicas de Alagoas pelo Instituto Nacional do Livro, foi aos Estados Unidos trabalhar na biblioteca da União Pan-Americana, passou pela biblioteca pública de João Pessoa, mas voltou ao Rio de Janeiro quando percebeu que não conseguiria mudar “o ar bolorento dos livros e do diretor”. Achou um rumo quando, em 1956, passou em segundo lugar no concurso público para a Biblioteca da Câmara dos Deputados, ainda na antiga capital federal.
Na Câmara, publicava um boletim com a bibliografia dos presidentes, lista de novas aquisições e resenhas escritas por deputados. Ficou amigo de Luiz Viana Filho (que viria a ser presidente do Senado e dar nome à biblioteca da Casa, que reformou e à qual doou sua coleção privada) e de Pedro Aleixo, que hoje dá nome à biblioteca da Câmara por ter sido assíduo frequentador. Ambos apoiaram o golpe de 1964, assim como Carlos Lacerda, que Nery também conheceu. O bibliotecário guarda a lembrança de ter ajudado o deputado da UDN a montar sua defesa em um processo de cassação que sofreu em 1957 (e da qual escapou pelo voto majoritário do plenário), ao ser acusado de veicular o código secreto do Itamaraty. “Éramos todos lacerdistas. Ele era admirável, pela combatividade, pela inteligência.”
Quando Brasília começou a ser construída, os intelectuais Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa foram convocados pelo então presidente Juscelino Kubitschek para montar a biblioteca do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente. Coube a Edson Nery comprar, tombar e catalogar os livros, num espaço improvisado da Livraria São José, no Rio. Elegeu livros sobre o Brasil, literatura mundial, obras de referência (dicionários e enciclopédias) e uma coleção que estava na moda na época, com títulos de Gilberto Freyre a padre Antônio Vieira, de Marcel Proust a Jorge Luis Borges, além dos grandes da literatura brasileira.
Em 1959, Nery foi duas vezes a Brasília montar a biblioteca, que tem 3 406 livros e é decorada com tapeçaria de Di Cavalcanti e mapas da América do Sul da primeira metade do século XVII. Numa delas, encontrou Oscar Niemeyer e perguntou a ele onde estavam as escadas para dar alcance aos livros mais altos. O arquiteto respondeu: “Escadas são feias, e, além do mais, aqui não é para ninguém ler, é apenas decorativo.”
No ano seguinte, à revelia, Nery e toda a burocracia política mudaram-se para Brasília. Um dia estava em casa quando recebeu um telefonema da Presidência para que fosse ao Alvorada falar com a filha do presidente, Márcia Kubitschek: “Fui de lambreta. Chegando lá, ela perguntou se era tecnicamente correto não ter escadas. É por causa dela que hoje há duas escadas lá.” Ele conta que, na Presidência do marechal Castello Branco, foi procurado pelo amigo Viana Filho, então ministro-chefe da Casa Civil, para atualizar o acervo. “Fiz uma lista, mas não sei se foram comprados. Capaz que tenham sido, o Castello Branco gostava de ler, não era um burrão como o Costa e Silva.”
No rol de críticas de Nery aos políticos está a de que, tal qual previu Niemeyer, os livros ali são só decorativos. O ex-presidente José Sarney, no entanto, nega. “Dizem que os presidentes não leem os livros, mas eu lia. Ali estão guardadas raridades, está lá até um original de Barleus, de 1647”, disse. [Gaspar Barleus foi autor de um relato famoso sobre o domínio holandês no Nordeste.] Para Nery, pode ser que a presidente Dilma Rousseff use a biblioteca: “Se bem que não sei, porque ela é mais técnica do que culta.” Notinhas na imprensa dão conta de que o lugar é o predileto de Dilma no Alvorada, e que ela sempre leva os convidados para conhecerem os livros.
“O Fernando Henrique deve ter usado, ele é um homem culto”, continua Nery. “O Lula, não. Dizem que o Lula uma vez sofreu um atentado. Sabe como? Jogaram um livro no carro dele.” O bibliotecário presume que a coleção, além de não estar atualizada, pode estar desfalcada. “Um funcionário me disse uma vez: estão roubando os livros todos lá, aí eu roubei uns também.”
Sarney se lembrou de conhecer Nery desde os tempos em que o pernambucano era crítico literário no Recife, nos anos 40, e o elogia como um grande bibliotecário. O ex-presidente o contratou duas vezes: uma para organizar o acervo privado dos presidentes da República, durante seu governo, e depois para organizar o acervo bibliográfico dele na Fundação José Sarney, em São Luís. “O Sarney me considerava muito, mas como político não é bom, é um homem que bota a família toda para trabalhar. Literariamente é fraco”, diz Nery. “Sou daqueles que si hay gobierno, soy contra. Se você não critica, eles não melhoram.”
A apenas dois políticos ele se permitiu elogios. “Gosto do Aldo Rebelo, é um grande admirador do Gilberto Freyre, apesar de ser do PCdoB. Os comunistas não gostam de Freyre.” De Pedro Simon também diz gostar, mas pondera que é “meio doido”. Quando pergunto o porquê, ele entoa em tom de cavalgada um poema de Ascenso Ferreira:
Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
– Para quê?
– Pra nada!
“Assim é o gaúcho. Para que tudo isso? Para nada”, diz sorrindo.
Como tinha servido ao Exército durante a Segunda Guerra e trabalhado em Brasília nos primeiros anos da cidade, antigos cálculos da Previdência permitiram a Nery se aposentar em 1964, aos 43 anos. Passou a trabalhar o dia todo na Universidade de Brasília, a UnB, onde já dava meio expediente havia dois anos. Hoje recebe aposentadoria de 25 mil reais da Câmara.
Quando a UnB começou a funcionar, em 1962, o antropólogo Darcy Ribeiro era ministro da Educação de João Goulart e telefonou a Nery convidando-o para dar aulas de metodologia científica. “Nesse tempo havia um clamor por uma biblioteca, então Darcy me telefonou e disse: ‘Organize uma, rápido.’”
Nery começou a montar a biblioteca comprando coleções privadas de viúvas. As primeiras foram de Homero Pires (“um intelectual devoto de Rui Barbosa, como todo baiano, que tinha mais coisa de Rui Barbosa que a própria Casa de Rui Barbosa”), Pedro de Almeida Moura (“um paulista professor de filosofia, que tinha toda a literatura grega e romana”), Agripino Grieco (“morava no Méier, fui com os filhos diplomatas ver a biblioteca e encontrei ali todas as literaturas do mundo”) e Carlos Lacerda (“impressionante, ficava numa casa em Petrópolis”).
“Perguntei para o Darcy Ribeiro qual era o teto, e ele me disse: ‘Não tem teto, compre o que quiser.’ Depois ele sofreu vários processos porque tinha tirado dinheiro de tudo quanto é lugar da Novacap para pagar os livros da biblioteca. Darcy era fantástico”, diz. Na UnB, Nery formatou o curso de biblioteconomia, depois chamado Departamento de Ciência da Informação, e deixou pronta a Biblioteca Central.
Enquanto Nery era professor, sob a reitoria de Anísio Teixeira, o embaixador americano visitou a UnB para a entrega de 4 mil livros que hoje formam a J. F. Kennedy Memorial Collection. No dia da cerimônia, Nery elogiou Kennedy e foi vaiado. “Quando eles começaram a vaiar, eu disse: ‘Burros só sabem zurrar.’ Foi uma briga só, os estudantes começam a atirar livros na comitiva, derrubaram as mulheres dos diplomatas jogando enciclopédias nelas. A polícia chegou e prendeu todo mundo que não estava de terno, inclusive os professores. Aí espalharam que eu estava do lado dos americanos e que iam me dar uma surra. Para você ver que ambiente de biblioteca não é tão tranquilo assim.”
Em Ler o Mundo (Editora Global), Affonso Romano de Sant’Anna conta que, quando cobrou de Lucio Costa o fato de não haver projeto para biblioteca pública na planta original de Brasília, ouviu do urbanista a afirmativa de que esse negócio de biblioteca pública nunca deu certo no Brasil, o que Nery lamenta. “Estou triste com as bibliotecas públicas. As especializadas andam muito bem, a da Embrapa é muito boa, mas biblioteca para o público em geral… Deveria existir uma em cada quadra. A biblioteca tem que fazer propaganda como as lojas, para atrair leitores.”
Um censo encomendado à Fundação Getulio Vargas pelo Ministério da Cultura em 2010 apontou que 21% dos municípios brasileiros não tinham nem uma biblioteca sequer. Das existentes, apenas 45% tinham acesso à internet.
Alvos de crítica de Nery são os bibliotecários que impedem a modernização de bibliotecas achando que a informatização acabará com o valor do livro. Ele cita o poeta francês Stéphane Mallarmé – “Tudo o que no mundo existe começa e acaba em livro” – para dizer que, por consequência, tudo começa e termina em biblioteca. “Chamo as bibliotecárias de ignorantes gerais especializadas em biblioteconomia. Acham que ser bibliotecária é saber catalogar livros”, diz, ao contar absurdos que já viu, como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, catalogado em botânica e Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, em arquitetura.
Hoje, além da biblioteca da UnB, Nery aprova as bibliotecas nacionais do Rio e de Brasília – esta última, na verdade, não deu tão certo assim. Criada por decreto em 1962, desenhada por Niemeyer nos anos 80, construída em 2004 e enfim inaugurada em dezembro de 2008, a biblioteca nunca abriu o acervo à consulta porque nunca se terminou de catalogá-lo.
Antonio Miranda, ex-diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, é amigo de Nery e lhe dedicou um poema que diz: “Na cadeira de balanço, com um gato/ no colo, mais bem seria um livro,/ um terço, uma fruta, uma caixa./ Está lendo Bandeira, talvez Oscar Wilde,/ Relendo Gilberto Freyre – ou seria Mallarmé? […]” Miranda diz nunca ter conseguido da Secretaria de Cultura do Distrito Federal um sistema de segurança e um software definitivo para abrir o acervo ao público. Mesmo assim, a BNB está sempre cheia porque oferece computadores com acesso à internet sem fio. “As pessoas querem um lugar para estudar, com as condições de rede, e, também, acervo. Daí o conceito de biblioteca híbrida, oferecer acervo e acesso”, diz Miranda.
Dos tempos de Brasília, Nery não guarda boas memórias de fora das bibliotecas onde trabalhou. “Os primeiros anos foram muito difíceis, Brasília era só poeira e solidão. Eu dizia meu endereço assim: 707 sul, bloco G, túmulo 29.” Andava pela cidade de lambreta, frequentava a casa de Luiz Viana Filho e do poeta Cassiano Nunes. Quando se aposentou da UnB, Nery não encontrou motivos para ficar em Brasília nem para atrelar-se a outra instituição. Ele havia sido convidado por Freyre para ser diretor-executivo da Fundação Gilberto Freyre, mas, quando a fundação passou a funcionar, o amigo já havia morrido. Nery desentendeu-se com Fernando Freyre, filho de Gilberto e seu afilhado de crisma, e renunciou ao cargo. Participar de alguma academia de letras também não foi uma opção. Ele diz que não pode pisar na de Pernambuco porque certa vez disse que lá só há medíocres. “A Academia Brasileira de Letras tem dez que se salvam, o Alberto Venancio Filho é pouco conhecido, mas é bom. Mas Merval Pereira – que coisa, né?”, diz, e franze o cenho.
Voltou ao Recife levando treze gatos de Brasília. Até o ano passado, eram trinta na casa da rua São Bento. Os empregados dizem que já houve 48. No ano passado, ficou dois meses internado no Real Hospital Português com pneumonia e, quando voltou, só encontrou seus cinco gatos favoritos – Daminha, Rosinha, Chiquinha, Princesa e Fernando. Os outros foram doados pela sobrinha.
Os gatos também estão nas paredes, em quadros, pesos de papel, estátuas, chaveiros e bibelôs de toda sorte. Marcelo, um dos funcionários, diz que já somou 1 800 enfeites de gato até perder a paciência e abandonar a conta. “Gosto de gato por dois motivos, um sentimental e outro prático. Minha mãe gostava de gatos e ela morreu muito jovem, com 52 anos. Dias depois a gata dela, Catuxa, morreu de desgosto. Achei muito leal.” O segundo foi porque nos seus anos de Brasília só moravam ratos – “animais e humanos” – e, para matar os bichos, comprou o primeiro gato, que deu fim à peste e passou a lhe fazer companhia.
Daminha passa o dia no colo de Nery, enquanto os outros bichos descansam no pátio dos fundos. Apenas quando o dono pede comida – recebe geleia, torradas e café com leite –, Princesa se aproxima para cheirar o prato. Nery pede que lhe tragam queijo e dá à gatinha. Ele muda de expressão quando não está contando uma história. Mais do que um “gilbertólogo”, bibliotecário ou ensaísta, Edson Nery da Fonseca é um grande memorialista e ganha um ar jovial ao relembrar um caso. Quando não é instigado a recordar o passado, recosta-se desanimado, reclama da velhice, dos amigos mortos, da pouca mobilidade e fala da espera da morte com uma franqueza perturbadora.
Pedi-lhe que recitasse o poema com o qual mais se identifica e ele recitou Testamento, de Manuel Bandeira, que de fato se parece com ele ao falar dos dinheiros que perdeu, do filho que não teve, da saúde que se foi. Depois chamou Marcelo para passar uma pomada em um princípio de dermatite na testa. O ajudante veio, espalhou o remédio, segurou o rosto de Nery com as duas mãos e disse: “Ele tem a cabeça pequena assim, mas aqui dentro tem uma biblioteca.”