Nelson Freire aos 13 anos se apresenta no Maracanãzinho: mesmo com mais de cinco décadas de carreira, ele nunca perdeu a timidez e ficava uma pilha de nervos antes de cada concerto CRÉDITO: ARQUIVO_AGÊNCIA O GLOBO_1957
O mineiro transcendental
O legado do pianista Nelson Freire
Arthur Nestrovski | Edição 183, Dezembro 2021
Quem viu Nelson Freire tocar ao vivo, ou mesmo em imagens gravadas, pode ter notado um gesto característico dos dedos. Renomado pelo virtuosismo, no nível técnico mais alto, ele fazia pensar em gigantes do passado, como Leopold Godowsky, Artur Schnabel ou, indo mais para trás, o próprio inventor do recital de piano, Franz Liszt – aliás, professor do professor de Nise Obino, a amada professora de Nelson, o que o tornava um herdeiro direto dessa tradição. Mas ele, como tantos virtuoses, acabou desenvolvendo uma técnica própria. Fácil de perceber, não tão fácil de explicar: incontáveis vezes, ao longo de uma peça musical, alguns dedos de ambas as mãos se espichavam, em linha reta, para a frente e acima do teclado, numa espécie de contraponto silencioso aos sons produzidos de fato pelas mãos.
Toda técnica instrumental busca administrar o relaxamento, tanto quanto o uso equilibrado e eficiente dos músculos. Nisso, a prática de um instrumento guarda muita semelhança com a esportiva. Para os músicos, a música é, em primeira instância, uma atividade física. Exige treinamento obsessivo dos dedos, das mãos, dos braços, dos lábios e dos pulmões, conforme o que se toca. O curioso, naquele gesto característico de Nelson, era que constituía claramente uma tensão, mas parecia ter efeito contrário, como se o pianista praticasse centenas de microalongamentos entre os movimentos necessários para abaixar as teclas. Para quem o conheceu mais de perto, essa tensão relaxada, ou relaxamento tenso, poderia servir de emblema de sua personalidade, que levava a mineirice a um plano transcendental.
Ninguém explica o que faz de um grande artista aquele grande e insubstituível artista. Nem ele ou ela sabe. Toda sua arte, no fundo, é um modo de explorar o mistério. Mas pode-se falar de seus efeitos aparentes, cultivados ao longo de uma vida. No domínio da música clássica, um dos elementos mais importantes é a articulação. Isto é: o modo de atacar e sustentar cada nota, e a compreensão das unidades e frases musicais. Articulação gera expressão, assim como dinâmica (tocar mais forte ou mais fraco) cria contexto.
Nelson era um mestre de tudo, mas especialmente da articulação. O toque dele era tão pessoal e intransferível quanto a voz ou o jeito de caminhar (passinhos curtos e rápidos, cruzando a vastidão dos palcos). E a inteligência do fraseado não era menos marcante. Um exemplo supremo é a Melodia, da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, arranjada para piano por Giovanni Sgambati, que Nelson adorava tocar como bis, reverenciando Guiomar Novaes, que também tocava essa peça. Nas muitas gravações disponíveis, chama atenção o modo flexível e expressivamente deslocado da melodia em relação ao acompanhamento, algo muito mais difícil de fazer do que parece. Num outro campo, João Gilberto também era mestre dessa arte, acelerando ou retardando as frases da voz, sem alterar o pulso do violão.
Outro ponto de semelhança entre os dois imensos artistas brasileiros foi a concentração num mesmo repertório, esmerilhado por décadas. Nelson pertencia a um círculo mundial de pianistas de primeiríssima grandeza, apresentando-se nas melhores salas e tocando com as maiores orquestras, mas sem desprezar salas pequenas e orquestras de dimensão regional, especialmente no Brasil, com sentido de missão e compromisso de amizade. No circuito internacional de hoje, como no das últimas décadas, espera-se que um pianista desse porte traga obras novas a cada visita. Especialmente as orquestras preferem, a cada vez, uma escolha de concerto diversa da anterior. Nelson permanecia alheio a tais demandas; e jamais deixou de ser procurado como intérprete raro de uma dezena de obras-primas, da qual ele era um dos curadores, por excelência: os concertos de Schumann e Grieg, os dois de Chopin e os dois de Brahms, Beethoven no 3, 4 e 5, Mozart no 20. Claro que também tocava outras coisas, como a fantasia Momoprecoce de Villa-Lobos – que ele, aliás, apresentou com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, no histórico primeiro concerto da Osesp no festival BBC Proms, em Londres, em 2012. Mas, de modo geral, Nelson preferia voltar a esses nomes centrais do cânone. O repertório solo era mais amplo, passando por compositores como Debussy, Liszt, Bach e Villa, que, para ele, tinha especial importância. Já o repertório contemporâneo não era sua praia, com poucas exceções.
Muitas de suas leituras viraram referência. Nelson demorou para começar a gravar discos com regularidade. Entre outras, fez algumas gravações antológicas em duo, com sua amiga da vida inteira, Martha Argerich. Já com mais de 50 anos, embarcou numa série impressionante de álbuns para o selo Decca. A aclamada gravação dos concertos de Brahms em 2006, com a Orquestra Gewandhaus de Leipzig, regida por Riccardo Chailly, talvez seja o ponto alto. Mas, para nós, é tão ou mais importante o disco Nelson Freire – Brasileiro, de 2012, uma coleção de pequenas peças de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Claudio Santoro, Francisco Mignone e outros autores.
Difícil dizer o que torna tão especial cada interpretação dessas, até porque ele jamais foi um artista de excentricidades. As decisões que tomava nunca pareciam fruto de alguma escolha analítica particularmente original. Nelson sempre foi, acima de tudo, um artista da intuição – intuição perpetuamente em foco, capaz de trazer à luz uma versão consumada da partitura, quase em estado puro, para além da personalidade do intérprete. Nem por isso deixava de soar como só ele, com aquele toque, aquelas articulações, o virtuosismo nada exibicionista e a suprema poesia da música.
Nelson poderia ter lecionado onde desejasse, mas não quis ser professor. Não dava aulas nem masterclasses, e muito menos fazia lives. No máximo, aceitou integrar a banca de concursos importantes de piano – o Concurso Chopin de Varsóvia, por exemplo. Mesmo assim, granjeou legiões de jovens pianistas, que frequentavam seus recitais, alguns dos quais viriam a se tornar profissionais de primeira linha.
No documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles, lançado em 2003, que contribuiu para a popularização internacional do artista – como também, antes disso, já fora importante sua inclusão na prestigiosa série Great Pianists of the 20th Century (Philips, 1998) –, há uma pequena sequência que passou batida na época, mas que agora salta aos olhos. É um trecho que registra encontros com amigos e o público, após concertos em teatros de várias cidades, quase sempre repetindo elogios banais, nem por isso menos sinceros. Numa dessas ocasiões, em São Petersburgo, surge um rapaz alto, de óculos quadrados, com jeito de aluno de música. Combinando constrangimento e entusiasmo, diz a Nelson ter sido aquele, provavelmente, o maior concerto de piano que jamais ouviu. Em 2003, o jovem era um desconhecido, mas agora os aficionados na certa hão de reconhecer Nikolai Lugansky, aclamado pianista russo. Outro dessa geração, hoje na faixa dos 40 anos, é o espanhol Javier Perianes, que se tornou amigo de Nelson. Era na casa dele que o mineiro se hospedava para estudar piano quando tinha concertos em Madri. Lugansky e Perianes já estiveram em São Paulo mais de uma vez desde então, para concertos com a Osesp. Falavam sempre em Nelson e representam tantos outros que têm nele um ideal.
Com tudo isso, e mesmo com mais de cinquenta anos de carreira, já que o menino-prodígio começou a se apresentar aos 5, na cidade natal de Boa Esperança, Nelson jamais perdeu a timidez no trato e ficava uma pilha de nervos antes de cada concerto. Isso só não parecia ser o caso nos recitais com Martha Argerich, quando a dupla passava a impressão de estar sozinha, num mundo à parte, independente da nossa presença.
Em 1o de novembro, dois anos e dois dias depois de sofrer uma queda num calçadão de pedras portuguesas, na orla da Barra da Tijuca, que lhe provocou uma fratura no braço direito e o obrigou a abandonar o piano, Nelson morreu, aos 77 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. A notícia teve destaque em todos os principais jornais e programas de notícias brasileiros. O New York Times também publicou um longo obituário sobre o pianista, e o presidente da França, Emmanuel Macron, lamentou a morte num perfil muito elogioso e afetivo, divulgado nas redes. O governo brasileiro não se manifestou.
Como diretor artístico da Osesp, estive com Nelson várias vezes ao longo da década passada. Em 2013, ele foi solista da orquestra durante duas das três semanas de uma turnê pela Europa. Nesse período, tocamos na Philharmonie de Berlim e na Salle Pleyel de Paris, entre outros lugares, sempre sob a regência de Marin Alsop. As relações eram cordiais, mas não dá para dizer que a conversa fluía. Nelson se preservava muito, distante do convívio fora dos teatros. Numa ocasião, porém, as barreiras caíram, ainda que fugazmente.
Foi um ano antes, quando tocamos no Proms, em Londres. Um concerto muito significativo, a primeira vez que uma orquestra brasileira se apresentava naquele que é tido como o maior festival de música clássica do mundo. O teatro era o Royal Albert Hall, um coliseu para 6 mil pessoas, público especial, boa parte dele de pé no centro da plateia, sem cadeiras, aproveitando os ingressos a preços populares e vibrando como numa final de campeonato.
Quando cheguei ao ensaio pela manhã, por volta das 9 horas, a produção me avisou que Nelson estava incomodado e que seria melhor eu procurá-lo. Por descuido, ele tinha vindo ao teatro antes do necessário e agora precisava esperar umas duas horas até ser chamado ao palco, para passar o Momoprecoce. À porta do amplo camarim vitoriano, dava para ver um divã. Sugeri que Nelson deitasse um pouco. Ele me olhou desconfiado, mas depois acatou a ideia. Como estava frio, tomei a precaução de cobri-lo com seu casaco. Depois, diminuí a luz e prometi voltar para acordá-lo, a tempo de aquecer os dedos antes de ensaiar com a orquestra.
Não era nada de mais, mas não deixava de ser tocante. No fundo, era aquilo que os ingleses chamam de stage fright: medo do palco. Que um artista daquele porte e com aquela bagagem ainda sofresse tanto com isso dava a medida de sua fragilidade, ao que tudo indica jamais superada.
Naquela noite, como em muitas outras, Nelson parecia no limite de abandonar a profissão; até que entrava em cena, começava a tocar e, pouco a pouco, ia mudando. Tantas vezes vimos o milagre acontecer… Ele nunca tocava menos do que lindamente, mas, em determinados pontos, no decorrer de uma peça, Nelson ascendia, e era como se tudo fosse deixado para trás. Abriam-se as portas de outro reino da vida. Dá vontade de dizer que é para lá que ele foi agora, num gesto definitivo – para dentro da música.
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