ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
O ministro e os anarquistas
Bumbo, fugas e drible num dos berços dos protestos no Rio
Claudia Antunes | Edição 86, Novembro 2013
Os professores detectaram na véspera a articulação do protesto no Facebook. Avisaram o ministro da Defesa, mas ele manteve o compromisso. “Eu não ligo, não tem problema se não houver agressão física. Tenho uma sobrinha que é professora de história aqui no Rio de Janeiro e ela avisou: ‘Vão te questionar lá’”, diria depois.
Quando Celso Amorim entrou no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o IFCS, a parede atrás da vetusta mesa de jacarandá já estava decorada com três faixas enormes, que pediam “Liberdade para os presos políticos”, “Abaixo as armas químicas” e “Fora tropas do Haiti”. Na última, o A de Haiti estava num círculo, símbolo do anarquismo; as “armas químicas” eram os gases lacrimogêneo e de pimenta.
A aula magna do Departamento de Ciência Política estava marcada para as 10h30 de 18 de outubro, uma sexta-feira. O ministro chegou meia hora depois. Um garoto com uma barbicha rala e uma menina magra e alta como uma modelo aproveitaram o atraso para pendurar as faixas. “Não entendo. Que tropas? As de paz?”, perguntou uma estudante que esperava a palestra. Ela e duas amigas estavam sendo fotografadas por um colega. “Fiquem sérias. Vocês estão de luto pelos presos políticos”, pediu ele.
Os presos eram 64 adultos e vinte menores de idade detidos quatro dias antes, quando a Cinelândia, a duas paradas de metrô do IFCS, virou uma praça de guerra entre policiais militares e black blocs. Os blocs queimaram um carro e um ônibus da Polícia Militar ao fim de uma marcha de professores em greve. Mas grande parte dos presos foi apanhada depois, quando a polícia cercou o “Ocupa Câmara”, o acampamento armado desde agosto na escadaria do Legislativo municipal.
Até a noite do dia 18, a Justiça mandaria soltar a maioria deles, afirmando que não havia provas de que formassem uma quadrilha ou tivessem sido os autores das depredações, como acusara a polícia. Mas de manhã os ânimos estavam exaltados no IFCS, um epicentro dos protestos na cidade. Para piorar, o governo Dilma tinha anunciado que mandaria tropas ao Rio para garantir o leilão do campo petrolífero de Libra.
Apesar disso, Amorim atravessou o corredor central do Salão Nobre com a mulher, Ana, sob aplausos. A seu lado na mesa, a historiadora Beatriz Bissio, vice-chefe do departamento, anunciou que em atenção ao “momento delicado” o ministro responderia a três perguntas feitas por escrito. O salão de 150 lugares estava lotado. Mas a vanguarda do protesto – uns quinze estudantes – ficou do lado de fora, na varanda que dá para o pátio interno do prédio.
Amorim começou a falar sob o fundo sonoro de uma fita adesiva sendo rasgada. O rapaz tinha voltado à sala para colar mais uma faixa, pelo fim da PM. O ministro ignorou e tentou enlaçar a plateia com uma anedota de sua juventude, quando, “influenciado pelos filósofos que falavam em autenticidade”, adiou o vestibular até decidir o que fazer da vida. Logo soou a batida de um bumbo na varanda. Pedidos de silêncio ecoaram no salão.
O professor Michel Misse, veterano estudioso da violência, foi argumentar com os revoltosos (eles não quiseram dar os nomes, argumentando temer a repressão policial). Reclamou que estavam sendo autoritários.
“Então ele não tem que se pronunciar sobre isso [as prisões]?”, respondeu o barbudinho, aluno de sociologia.
Misse: “Temos que ser solidários com os presos. Mas são duas coisas diferentes.”
O rapaz, insistindo: “Por que ele não fala do Rio?”
Misse, perdendo a paciência: “Vai estudar, vai! Isso é uma coisa fascista, vocês estão impedindo o cara de falar.”
Os olhos do garoto ficaram tristes. “Tá bolado com o Misse?”, perguntou-lhe outro manifestante. “Fiquei chateado porque ele é um professor bom pra cacete”, respondeu. “O que esperar da academia? É reacionária”, desdenhou o colega.
Bumbo silenciado, Amorim falou por uma hora. Concentrou-se em sua época de chanceler. Citou o ex-presidente Lula abundantemente. Mencionou Frantz Fanon, autor do libelo anticolonialista Os Condenados da Terra e guru da esquerda nos anos 60. “O Brasil não quer se eternizar no Haiti, mas é preciso sair com segurança”, disse.
Encerrada a aula, um bolo de papéis com perguntas pousou na frente de Beatriz. A primeira era sobre a PM fluminense. Amorim alegou que, no sistema federativo, não lhe cabia se pronunciar. “Algum tipo de polícia terá que existir. Se militarizada ou não, confesso que nunca dediquei tempo suficiente a isso.” Em seguida, foi indagado se o leilão de Libra não feria a soberania nacional. Optou pelo didatismo: “As leis foram aprovadas pelo Congresso, um instrumento da democracia. Eu vivi 21 anos de governo autoritário. Acho a existência do Congresso muito importante.” A última pergunta, um alívio, foi sobre a América do Sul.
O roteiro previa que Amorim receberia ali mesmo uma placa do IFCS. Mas não deu. Enquanto os manifestantes invadiam o salão aos gritos de “Não vai ter Copa”, ele foi levado para a sala da diretoria, onde ocorreu a homenagem. Em seguida, saiu pelos fundos do edifício, rumo à estreita rua lateral, na qual um carro oficial já o esperava. Mas uma dezena de estudantes cercou o automóvel assim que Amorim e a mulher entraram nele. O jovem que maldissera a academia instalou-se no capô. O ministro saltou e tentou negociar, em vão. Passou uma senhora dizendo que chamaria a polícia. Um ativista prontamente colocou máscara de gás e óculos de mergulhador.
O impasse durou nove minutos. De súbito, Amorim saltou de novo e foi caminhando até uma avenida próxima. Parecia que ia tomar um táxi, mas, enquanto o seguiam, os manifestantes não viram que dois carros oficiais – um deles com dois seguranças que haviam observado de longe a confusão – vinham atrás. Em meio a um trânsito infernal, o ministro entrou num dos carros e escapou. Na entrada do IFCS, o estudante de barbicha esperou a volta dos correligionários. Não participara do cerco. “Aí já era exagero.”