ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O mistério das cascudas
Fluxo de tartarugas intriga moradores de prédio carioca
Vanessa Barbara | Edição 67, Abril 2012
Eliane Castelo Branco é uma senhora elegante de olhos azuis e cabelos brancos. É diretora médica do Hospital São Vicente de Paulo, no Rio de Janeiro. Já foi síndica e hoje é subsíndica de um edifício de seis andares encravado numa ruazinha torta do Jardim Botânico. Foi lá que, certa tarde, deparou-se com o inexplicável: as duas tartarugas que moravam no laguinho do prédio viraram três da noite para o dia.
“Me avisaram: olha, o segurança botou aí uma tartaruga que encontrou andando na calçada, sozinha”, contou. “Estava numa rua sem saída.” Pouco menor que as demais, a novata já era adulta. Não faltou quem imaginasse uma explicação para a inusitada presença: a nova hóspede decerto viera visitar as amigas e se perdeu no caminho.
Hoje a população do laguinho é flutuante, literalmente: são cinco tigres-d’água, às vezes sete. As tartarugas somem e reaparecem, mas ninguém sabe explicar por quê. A hipótese mais aceita pelos condôminos é que algumas são visitantes temporárias deixadas pelos donos em férias que depois voltam para buscá-las. Vez ou outra uma delas foge, espremendo-se pela cerca baixa que ladeia o jardim: “A gente acha tartaruga no corredor de entrada, na calçada, em tudo que é canto”, disse Eliane.
O mais intrigante é que a multiplicação das tartarugas está acontecendo sob as barbas de todos. A rua possui um vigia 24 horas e o prédio tem porteiro diurno. Nenhum deles jamais flagrou qualquer operação de carga e descarga. A instalação de câmeras de segurança para solucionar o mistério não foi descartada pelo condomínio.
Uma testemunha-chave para a investigação é Erivan Silva, há mais de dez anos porteiro do “prédio das tartarugas”, como ficou conhecido na vizinhança. É Erivan quem cuida do bem-estar dos inquilinos aquáticos. Serve aos animais uma dieta inaudita: eles só aceitam ração de gato.
Na limpeza mensal do lago, costuma botar “todo mundo de barriga pra cima” para não fugir. “Um dia esvaziei o lago e vi que brotaram outras duas bem pequeninas”, contou o porteiro. Em razão do tamanho, as novas hóspedes quase passaram despercebidas. Um mês depois, tinham desaparecido.
A hipótese óbvia para explicar a multiplicação dos habitantes do lago seria a procriação dos bichinhos. Contudo, as cinco residentes são fêmeas, aparentemente – e a literatura técnica ainda não registrou casos de partenogênese em tartarugas. Sem ter examinado os animais no foco da polêmica, o médico-veterinário Rafael Bittencourt Torres, de uma clínica da Zona Sul do Rio, não descartou a hipótese de reprodução. “Em cágados, a diferença entre macho e fêmea pode ser quase imperceptível, de modo que as duas menorzinhas podem ser crias”, considerou.
A ocupação do lago remonta a 1995, quando uma sobrinha de Eliane confiou à tia uma dupla de tartarugas de água doce, na época adquiridas em feiras, o que hoje é ilegal. Eram tão diminutas que Eliane as abrigou num pirex. Dividiam o apartamento com uma gata, dez gatinhos, um coelho que dormia em cima de um cão, um casal de hamsters e seus 35 filhotes.
Naquele tempo, o prédio já tinha um lago com peixinhos no jardim. Crescidas, as tartarugas foram transferidas para lá e, com a fartura de espaço, sol e alimento, dobraram de tamanho. Anos depois, de número.
Sua presença não desagrada aos condôminos, mas alguns não veem com bons olhos a circulação de estranhos nas dependências do prédio. O incômodo não impediu a afluência de visitantes que fizeram dele uma referência na vizinhança: há quem frequente o lago só para ver os répteis tomando sol. Os mais destemidos querem acariciar os bichos. “Quando estou perto, peço para não botar a mão porque elas mordem”, disse Eliane. Vítima ela própria da fúria quelônia, a subsíndica pensou em colocar um aviso: “Cuidado! Tartaruga brava.”
A babá Dilma de Oliveira Coutinho conheceu a atração em 2008, ao se mudar para o bairro. Vinda de um prédio com playground e pracinha, esbarrou na escassez de recursos para entreter as gêmeas Maria Antonia e Valentina Ruiz Britto, de 5 anos. Foi um alívio quando descobriu a pródiga fauna do bairro, com macacos-prego que entram pelas janelas basculantes, lagartos tomando sol nas ruas e o insólito prédio das tartarugas.
Nas visitas ao lago, Maria Antonia desenvolveu verdadeira obsessão em alisar cascos. Já a irmã se limitava a interagir com as tartarugas arremessando-lhes folhinhas de alface. Nenhuma delas sabe dizer de onde vêm e para onde vão as ativas cascudas.
O veterinário Rafael Torres trouxe uma pista valiosa ao evocar o tamanho da espécie. Os tigres-d’água podem chegar a 30 centímetros de diâmetro, o equivalente a uma folha de papel A4 – informação omitida aos clientes por alguns vendedores de pet-shop. “A pessoa compra achando que vai ficar pequenina e acaba com um bicho enorme”, disse. Com a fama que ganhou, o prédio poderia ser um depósito de tartarugas indesejadas da vizinhança. “O lago do condomínio Parque Guinle, em Laranjeiras, é um conhecido lugar de desova”, comentou.
Subitamente, um inocente menino que frequentava o lago todos os dias ganhou ares de suspeito. “Ele passava para dar tchau, chamava a bichinha pelo nome, nitidamente era dele”, contou Eliane. “A mãe deve ter pedido para se livrar do bicho e ele o levou para o prédio vizinho”, supôs a subsíndica. Estaria aí a resposta para o mistério? O menor não foi localizado pela reportagem para esclarecer o caso.