Cachaça produzida na Cooperativa Vitória: 77 pessoas de 23 famílias trabalham, estudam, almoçam juntas e expulsam que xinga e agride os outros
O modelo Vitória
O assentamento-símbolo do Movimento Sem Terra é uma ilha sem propriedade privada, com casas grandes e mesa farta, mas que usa bóias-frias para dar conta do trabalho de cortar e carregar cana
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 21, Junho 2008
ÀS TRÊS E MEIA DE UMA MADRUGADA do fim de abril, Ildo Roque Calza acordou bem-humorado e disposto na suíte de sua casa recém-reformada. Ela tem cinco quartos, sala, cozinha, lavanderia, dispensa e varanda em 118 metros quadrados de área construída. Uma hora depois, o leite saía de uma sala de ordenha mecanizada e Calza o recebia no laticínio contíguo, com câmara fria, onde se faz a pasteurização e a embalagem. Dois vizinhos haviam chegado um pouco mais cedo e, de avental e botas de plástico branco, ordenhavam as vacas. O leite foi canalizado para os tambores de inox da sala ao lado. Foi ali que Ildo Calza operou as máquinas que esterilizaram, pasteurizaram e ensacaram o leite em embalagens plásticas de 1 litro.
Entre o leite da tarde anterior, armazenado na câmara fria, e a produção daquela madrugada, a média ficou em 1 mil litros por dia. Na gíria da região, o noroeste do Paraná, o leite é “barriga mole”, devido à flacidez dos saquinhos. Ele é produzido pela Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória, ou Copavi, fundada por um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária coloca a Cooperativa Vitória entre os dez assentamentos mais bem-sucedidos do Paraná. Pela sua forma coletiva de propriedade e de produção, a direção do MST classifica o assentamento como modelar.
A Cooperativa Vitória dispõe de 256 hectares – algo como 310 campos do Maracanã – onde 77 pessoas, de 23 famílias, vivem e produzem leite e açúcar mascavo. Entre elas, 27 são crianças. As terras fazem limite com a zona urbana de Paranacity, uma cidade de 10 mil habitantes, onde o prefeito do PMDB administra um orçamento de 11 milhões de reais. A entrada da Vitória fica a menos de 1 quilômetro da cidade, às margens do asfalto de uma rodovia estadual.
ÀS SEIS DA MANHÃ, quando o sol raiava, uma das duas Kombis da Vitória estacionou na frente do seu laticínio. A motorista, uma jovem de olhos verdes e cabelos compridos e lisos, era Danuza, um dos cinco filhos de Ildo Calza. “Cinco e ponto final”, explicou ele, querendo dizer que não aumentaria a família. A convicção é coletiva: a cooperativa incentiva firmemente a vasectomia dos casais que têm dois filhos. Entre esses, só um ainda resiste à limitação.
Ildo Calza descende de italianos. Paranaense de Marmeleiro, é lavrador de profissão, sempre em terra alheia. Entrou para o MST em 1985, na invasão de uma fazenda. Mostra os pêlos arrepiados do antebraço ao lembrar que desafiou a polícia na desapropriação: a filha de 6 meses foi erguida e exibida a um cordão de soldados a menos de 1 metro de distância. Antes de entrar na área que viria a ser a Cooperativa Vitória, viveu oito anos nas cabanas de lona preta dos acampamentos do MST. Calza só tem o 1º grau completo. “Sou mais da prática”, explicou. Uma prática variada. “Como temos pouca gente, todo mundo tem que se virar em três”, disse. No rodízio das tarefas dos cooperados, inclusive os jovens, Calza cuida do leite, trata de galinhas, conserta as cercas e dirige o trator.
Danuza saiu da Kombi com cara de sono. Vestia calça jeans e blusa de malha rosa, com um moletom marrom-claro por cima. Tem 20 anos e 2º grau completo. Aguarda vaga num dos cursos universitários que têm convênio com o MST. Enquanto ela não vem, trabalha na venda direta da produção da Vitória. Como antes carpia e podava o bananal, e depois cortou e carregou cana, o seu trabalho agora é leve. Espantou o sono carregando as caixas vermelhas que o pai lhe passou por uma janela da câmara fria. Transportou cada uma das 26 caixas com dez saquinhos de leite até lotar a Kombi. Cada saco tem a inscrição: “Copavi – Leite integral pasteurizado – Produto da reforma agrária – Indústria brasileira.”
ANTES DAS SEIS E MEIA, Danuza parou a Kombi em uma das padarias de Paranacity. A freguesia nessa hora é de bóias-frias que trabalham no canavial da Usina Santa Terezinha, do Grupo Meneghetti, uma das maiores da região. Parte de seus domínios faz divisa com a terra do MST. Danuza desceu e foi perguntar quantos saquinhos o dono queria. Voltou, pegou cinco sacos no automóvel, entregou, e recebeu 1,25 real por saco. A segunda padaria quis três caixas. A terceira, 20 litros. A essa altura, o calor do leva-e-traz a fez tirar o moletom. Numa outra padaria bem movimentada, a freguesia integralmente masculina a olhou com mais que admiração. Desembaraçada, Danuza nem ligou.
ÀS SETE E MEIA, com 180 litros vendidos, Danuza voltou à cooperativa. Embarcou na Kombi oito crianças para levá-las à creche municipal, na cidade. As crianças maiores iriam para a escola mais tarde, num ônibus escolar da prefeitura. Danuza não tomou café da manhã – ela quer emagrecer um pouco. Desde as 7 horas, o café estava servido no refeitório do assentamento. A sala está em reforma, para ampliação. É norma na Vitória que todos devem tomá-lo ali, assim como almoçar. Só o jantar é por conta de cada família. Danuza voltou ao laticínio, onde o pai já a esperava com mais saquinhos de leite. Dessa vez eram 355, distribuídos em caixas vermelhas ou em grandes baldes plásticos azuis, com água gelada, para manter o resfriamento. No carregamento, ela contou com a ajuda do vereador Antônio Soares “Sacola”, do PT, a figura mais popular no assentamento.
No último domingo de abril, Antônio Soares Sacola convidou o prefeito de Paranacity, o peemedebista Mario Yamamoto, para almoçar em sua casa. Com 140 metros quadrados de construção, ele mostrou com orgulho os quartos de cada um dos três filhos e a suíte dele e de sua mulher, Célia. A visita seguiu pela cozinha, com duas geladeiras e dois fogões (um deles novo, a lenha), a copa, a dispensa, a lavanderia, a sala do computador (decorada com um pôster com a frase “Cuba – Viva o socialismo!”), os três banheiros e a varanda. “Somos felizes”, disse-me Sacola enquanto acendia, no quintal, o fogo para o churrasco e Célia preparava arroz, mandioca cozida, duas saladas e uma torta de carne.
Gordinho, baixinho e de bigode, Sacola tem traços orientais no rosto redondo. “É descendência paraguaia”, explicou, ajeitando os espetos de carne sobre o braseiro. Deve o apelido, com o qual se elegeu duas vezes, ao começo de sua militância no Movimento dos Sem Terra, no final dos anos 80. “Íamos fazer uma ocupação perigosa numa fazenda, levando gente de um acampamento distante”, ele contou. “Eu usava uma sacola a tiracolo, com um porta-revólver, para o caso de precisar, e o dinheiro para pagar os dois caminhões que iam levar o pessoal. Era dinheiro que daria para comprar um Fusca, uns 7 mil reais em dinheiro de hoje. Como ninguém sabia o nome de ninguém, começaram a me chamar de ‘Sacola’.” O vereador contou dezenas de histórias como essa, envolvendo enfrentamentos com jagunços e policiais.
Sua vida começou a acalmar num dia preciso, 19 de janeiro de 1993, quando a sua família, a de Ildo Calza e outras catorze ocuparam a área junto a Paranacity. Era um canavial com terra de baixa qualidade cuja desapropriação estava decidida, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, demorava em efetivar. Mesmo antes da invasão, a liderança do Movimento Sem Terra entendeu que a área se prestava a uma experiência de produção coletiva, sem a propriedade privada dos meios de produção, como ensinam os princípios socialistas que orientam a organização.
Nos meses que se seguiram à ocupação, houve um conflito feio. Mas não com os donos da terra, já que ela estava em vias de desapropriação legal. O atrito foi com os pobres sem-MST da cidade. Algumas famílias de Paranacity haviam ocupado porções do canavial, e os novos invasores os desalojaram. Pesou na balança o apoio da Igreja Católica ao MST, formalizado numa missa campal, em abril de 1993, à qual compareceram cerca de 3 mil militantes do Movimento. A Cooperativa Vitória foi fundada em 10 de julho. Um mês depois, toda a cana do assentamento foi cortada e vendida para um usineiro da região. Em maio de 1994, o Incra legalizou a posse da terra, o que permitiu a entrada de financiamento do Estado, por meio de convênios, principalmente com o governo federal.
ÀS 8 HORAS, Sacola assumiu o volante e Danuza ocupou o banco do passageiro depois de encherem a Kombi de leite, iogurte, queijo, açúcar mascavo, melado, ovos, cachaça e pão. Se fosse uma sexta-feira, levariam também legumes da horta. Tudo produzido na Vitória. A dupla voltou a Paranacity e depois tomou o rumo de Cruzeiro do Sul, cidade nas imediações. Eles percorreram os endereços anotados numa planilha. Além das escolas e creches municipais – onde entregam 1 600 litros por mês – são 250 casas, em bairros pobres e de classe média. Sacola parava o carro, buzinava, os fregueses vinham comprar, ou Danuza descia para entregar a mercadoria. Quando a casa estava vazia, os saquinhos de leite eram deixados no lugar combinado. Sacola conhecia e brincava com todo mundo. “Foi essa venda direta que me elegeu”, disse. (A Vitória ainda não decidiu se ele deve disputar o terceiro mandato.)
A Kombi parou na porta da casa de dona Rosa, uma senhora idosa, com dificuldades para andar. Danuza, ligeira, levou dois saquinhos até ela. Dona Maria, outra senhora, aproximou-se da janela do motorista e disse:
– Ô, Sacola, tu vai agüentando as pontas que no final de semana eu acerto.
– Sem problema, dona Maria – respondeu o vereador, anotando na planilha mais 3 litros na conta dela.
O calote e os atrasos no pagamento são constantes. “Se somar tudo, vai a uns 20 mil reais, o que daria pra comprar uma Kombi seminova”, reclamou Sacola.
Ao ouvir a buzina, o delegado de polícia Cláudio Marques da Silva saiu do jardim de seu bangalô e foi até o carro. Sem pressa, vangloriou-se dos sete gols que teria marcado na pelada da véspera e pediu notícias sobre a cooperativa do MST. “Tudo bem”, respondeu Sacola, recolhendo o pagamento por mais 2 litros.
A venda de porta em porta é feita de segunda a sexta-feira, de manhã e de tarde, e aos sábados, pela manhã. Domingo também tem venda direta, mas na feira de Paranacity, onde a Vitória arma a sua barraca. No final daquela tarde, a planilha de Sacola contabilizou 802 litros de leite vendidos e um faturamento de 1 mil reais. Nem todo dia é tão bom. Na média, o leite rende 15 mil reais por mês à Vitória. O açúcar mascavo e o melado trazem mais 40 mil.
AO MEIO-DIA, foi servido o almoço no refeitório, com arroz, feijão, carne, saladas, macarrão e suco artificial. Não tem sobremesa, mas há fartura. Todos sentam à mesma mesa e conversam sobre as tarefas do dia, mas há mais silêncio do que barulho, e alguma algazarra quando os estudantes chegam da escola. Jacques Pellenz, o presidente da Vitória, descansou alguns minutos num dos bancos de madeira, sob a sombra ventilada dos eucaliptos, onde todos fazem uma pausa antes de voltar ao trabalho. Pellenz é paranaense e tem 39 anos. Entrou no MST em 1988, coordenou invasões e amargou muita lona preta antes de chegar à direção estadual do Movimento. Estava entre os primeiros que chegaram na futura Vitória. Completou o 2º grau quando já era sem-terra e, por conta do Movimento, esteve seis meses em Cuba, nos anos 90, onde fez curso de cooperativismo.
DEPOIS DO ALMOÇO, Pellenz estava escalado para cortar cana, o setor com mais problemas da cooperativa. Por falta de investimento e de mão-de-obra, o canavial de 50 hectares tem produtividade baixa, e não consegue abastecer com matéria-prima a usina de açúcar mascavo e de melado – justamente de onde vem o grosso da renda da Vitória. É preciso trazer cana de fora, todos os dias úteis, senão a fábrica pára. A solução tem sido pagar 23 reais por tonelada de cana em plantações de pequenos e médios produtores da região. E, o que dói nos brios do MST, contratar bóias-frias, com intermediário (“gato”) e tudo, para ajudá-los no trabalho braçal do corte e do carregamento do caminhão. “Não temos outra alternativa para manter a produção”, disse Pellenz.
A principal tarefa de Solange Luiza Parcianello, casada com Pellenz, é dar assistência política aos sete assentamentos da Brigada Iraci Salete Strozake, a subdivisão administrativa do MST à qual a Vitória está integrada. O Movimento tem trinta brigadas no Paraná, que somam 15 mil assentados e 7 mil acampados. Seus nomes homenageiam mártires socialistas (Che Guevara), militantes assassinados (Dorcelina Folador) ou mortos queridos (como Iraci Salete Strozake, vítima de um acidente rodoviário). Solange integra a direção nacional da Via Campesina, uma organização internacional de camponeses contra a globalização, da qual o MST participa.
“Sempre preferi a experiência coletiva”, disse Solange na varanda de sua casa. “Ela é mais eficiente para a produção e tem a grande vantagem de poder liberar gente para a mobilização do movimento: se a propriedade é individual, fica-se no dilema de tocar o lote ou tocar a luta.” Ela completa 46 anos neste junho, vinte deles no MST. “Nada é fácil por aqui, mas estamos mostrando que mesmo dentro do capitalismo é possível tentar uma sociedade diferente”, falou. Pensou mais um pouco, e complementou: “Ainda há muitos traços capitalistas na nossa forma de produção. Se quiser sobreviver, a gente tem que entrar no esquema do mercado. O ideal seria trabalhar direto com o consumidor, mas, para sobreviver, ainda precisamos do intermediário. É uma luta constante. E ainda temos famílias que não estão contentes.”
Pellenz tem um filho mais velho do primeiro casamento, Cristiano, que tem 21 anos e trabalha em Guararema, no interior de São Paulo, onde fica a Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST. Com Solange, são duas filhas adolescentes. Elas moram no assentamento, estudam em Paranacity, mas volta e meia vão a Cascavel, cidade grande, visitar tias e passear em shopping centers. “Elas voltam deslumbradas”, contou a mãe, preocupada com o canto da sereia do consumismo. A preocupação com a influência da ideologia capitalista é de todos os adultos da cooperativa. É por isso que, em três tardes por semana, há aulas complementares para as vinte crianças de 6 a 12 anos que recebem educação convencional nas escolas públicas de Paranacity. Nenhuma delas nasceu no assentamento.
“Como é que essas crianças vão entender o que é um sem-terra, se já nasceram com terra?”, exemplificou Alex Verdério, pedagogo recém-formado de 26 anos encarregado das aulas vespertinas. “É um trabalho ideológico com as crianças, para que elas entendam a luta dos pais e possam continuá-la.” A “aulinha”, como a meninada a chama, procura combinar brincadeiras, trabalhos manuais, histórias do MST, orientações práticas sobre a limpeza da agrovila e as atividades da horta. Verdério contou que crianças de fora da cooperativa aparecem e gostam do curso. Às vezes, há problemas. “Tivemos um menino de 9 anos muito brigão, que batia nos nossos”, disse o professor. “E os nossos resolveram que iam derrubar uma colméia de abelhas em cima dele. Por sorte, descobrimos antes e evitamos o pior: resolvemos na conversa.”
É com conhecimento de causa e tranqüilidade que Alex Verdério reconhece que “não é fácil se adaptar” à ausência de propriedade privada. Os seus pais, pioneiros na Vitória, não se ajustaram ao sistema coletivo e saíram da cooperativa. Verdério ficou. Ele é o quarto integrante do assentamento com curso superior, e há mais quatro na faculdade. A Vitória dá meia diária a seus universitários e paga as despesas de transporte.
Outra que não se adaptou foi Terezinha, esposa de José Antônio Gonçalves. Ele saiu da Vitória em abril, chorando feito criança na hora da despedida, que ainda hoje é contada com emoção. Terezinha trabalhou duro na cooperativa durante quinze anos – nos últimos meses, cuidava da panificadora –, mas nunca deixou de reclamar de não poder fazer, como dizia, “as coisas do meu jeito”. O casal abandonou o assentamento com 5 mil reais e os móveis da casa. O dinheiro pagou as horas trabalhadas (hoje a 1,60 real para todos), e o investimento na reforma da casa. As casas, benfeitorias, o produto das vendas, tudo é propriedade coletiva. “O sentimento do ‘meu’ está muito enraizado”, disse Solange. “É muito difícil passar a pensar no ‘nosso’.”
O caso mais extremo de apego à individualidade foi o de João Borges, que também deixou a cooperativa. Ele reclamava, muito, de não poder “nem dar um corretivo na mulher”. No regimento interno da Vitória, o capítulo “Da relação entre os associados” estabelece que eles “deverão crescer no companheirismo e no compromisso de uns com os outros, dentro e fora do trabalho”. Os que agredirem verbalmente um companheiro são advertidos duas vezes, e expulsos na terceira. Agressão física, ou com arma branca ou de fogo, assim como o roubo, leva à expulsão e denúncia à Justiça do criminoso. Só houve um caso de expulsão: o de um cooperado que furtou e usou indevidamente cheques da cooperativa.
Das dezesseis famílias pioneiras, restam nove. As que saíram foram substituídas. Há vagas para mais três famílias e, por falta de mão-de-obra, urgência em preenchê-las. Mas são raros os candidatos. Os que aparecem passam por um período de experiência de quatro meses, quando uma assembléia geral, a instância máxima, decide se devem ou não ficar. A última família a ser aprovada continua em processo de adaptação. Existe um grupo de cinco pessoas para cuidar das relações interpessoais, que conta com a assessoria de uma psicóloga contratada. No momento, ela ajuda a resolver, em reuniões com a família, o caso de um garoto hiperativo que tem dado trabalho. Reunião, aliás, é o que não falta na Vitória: há grupos de jovens, de mulheres e dos setores da produção.
Quando foi fundada, no governo de Fernando Henrique Cardoso, a cooperativa recebeu empréstimos de 340 mil reais, do Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária, e de 160 mil reais, do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Com eles, botou de pé a infra-estrutura que até hoje sustenta o empreendimento: estábulo, ordenha, unidade de beneficiamento da cana, laticínio, barracões, caixa d’água, refeitório, abatedouro, dois aviários, usina de secagem de banana, escritório e padaria. Depois dos barracos de lona, as primeiras casas foram pequenas construções de alvenaria. A prioridade era a produção, sobretudo cana e leite. As dívidas com os programas do governo federal não foram pagas no tempo certo, mas estão sendo renegociadas e devem ser saldadas até 2015.
Houve outras tentativas de diversificar e incrementar a produção econômica que consumiram recursos e não deram certo: criação de cabras, frangos de corte, uma horta hidropônica e plantação de banana, tomate e café. O que mais doeu foi o cultivo de banana. Com tecnologia premiada trazida da Espanha, a plantação começou bem, mas uma praga devastou o bananal.
No ano passado, depois de inúmeras reuniões, a Vitória decidiu que era hora de melhorar as casas. Captou recursos existentes no Incra (105 mil reais) e na Caixa Econômica Federal (86 mil), e, para garantir melhor qualidade, investiu 55 mil de recursos próprios. Também permitiu que os cooperados desembolsassem do próprio bolso, caso quisessem ampliar os imóveis.
Quem responde pela administração financeira da Vitória é Valmir Strozake, que foi à Espanha estudar o beneficiamento industrial da banana. Nas suas contas, o assentamento entrou com cerca de 800 mil reais de recursos próprios ao longo dos últimos quinze anos. O período atual, disse ele, é bom. Por meio de um convênio com a prefeitura peemedebista de Paranacity, o Incra aprovou um empréstimo de 465 mil reais para a reforma da indústria de açúcar. Mais 18 mil reais sairão da Companhia de Habitação do Paraná, para a construção de sete casas novas, de 52 metros quadrados cada (a cooperativa entrará com mais 21 mil reais). Outros 400 mil foram pedidos à Petrobras, para projetos de educação ambiental e centro comunitário. Para patrocinar a festa oficial de aniversário dos quinze anos da Vitória, em julho, foram solicitados 60 mil reais à Eletrosul, mas a empresa negou o pedido.
A comemoração extra-oficial dos quinze anos do assentamento foi feita em 19 de janeiro, data da ocupação, no Ody Park, em Maringá, distante 100 quilômetros da Vitória. Ele tem uma enorme piscina de ondas, bóias, toboáguas, rio de correnteza artificial, ofurô e saunas. Para poder levar todos os assentados ao parque, foram contratados peões de outro assentamento para tomar conta da área e fazer tarefas inadiáveis, como a ordenha. Foram em ônibus alugado, com bebidas e carne para o churrasco. É às gargalhadas que eles contam que um gay entrou na sauna, se deparou com a algazarra e gritou: “Está cheio de sem-terra aqui!”, e saiu correndo. Houve um senhor que tomou uns goles a mais, empolgado com a piscina de ondas, mas nada que estragasse o passeio. O passeio custou 3 mil reais e foi bancado pelo fundo social da cooperativa.
“Tivemos o mais puro estilo roceiro no parque aquático mais chique da região”, disse Zumbi, o apelido de Élson Borges dos Santos, um engenheiro agrônomo com mestrado. Ele tem duas filhas adolescentes que moram em outra casa com a mãe, Claudete Sturmer. Como Zumbi e Claudete se separaram, ele mora numa casa menor, próxima à de seu pai, João. Em tempos idos, João teve terra própria, mas perdeu. Em 1989, entrou com o filho no MST. Aos 72 anos, o seu trabalho, que começa de madrugada, é cuidar dos porcos. São 60 e mais um javali que mete medo. O cruzamento resulta num bicho que os assentados batizaram de “javaporco”. É uma experiência que pode crescer porque o javaporco tem menos gordura que os suínos. Mas primeiro será preciso descobrir se há mercado para o novo produto. À noite, João faz o curso de alfabetização. Às vezes ele escapa de uma aula: telefona do celular para dizer que não está muito bem.
Zumbi foi catequista – “queria ser missionário na África” –, militante da Comissão Pastoral da Terra e auxiliar de enfermagem, porta que o levou ao sindicalismo, e que mais tarde foi de grande valia nos acampamentos onde passou. Em 1994, entrou na Universidade Estadual de Maringá. “Aqui nós estamos numa ilha e lá fora tudo roda contra”, disse Zumbi. “Não saio daqui porque estamos numa batalha que pode marcar a história de uma classe social.”
POUCO DEPOIS DA UMA DA TARDE, Francisco Strozake, o pai de Valmir, olhou para o céu e disse: “Vai chover outra vez.” Ele saía do pasto onde cuidava de um rebanho de 200 cabeças de gado, 60 delas vacas que produzem em média 9 litros por dia. É uma produção baixa: por falta de nutrientes, o capim é fibroso, com pouca proteína. Com 67 anos, barba e cabelo inteiramente grisalhos, alto e esguio, Strozake, que todos chamam de Chicão, é um gaúcho cuja ascendência polonesa é tão forte que, sem perceber, às vezes ele se refere aos brasileiros como se não fosse um deles. Chicão é um líder histórico do Movimento dos Sem Terra, ao qual aderiu quando era bóia-fria no acampamento de Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, berço da organização. Teve oito filhos, uma delas a falecida Iraci Strozake que dá nome à brigada.
Chicão tem um enorme pôster da filha na sala da ampla casa que divide com Elzina Wandscheer, de 52 anos, outra pioneira do movimento. Ela é responsável pela padaria (que faz 230 pães por dia) e pela alfabetização de oito adultos da Vitória que ainda não aprenderam a ler e escrever. “Eu vim para cá porque sabia que seria uma experiência de produção coletiva”, disse Chicão. “Sempre me identifiquei com o socialismo. Sou fã de Che Guevara e de Fidel Castro. Aqui temos segurança alimentar, segurança de permanecer na terra. A cooperativa não é de ninguém individualmente, mas é nossa. Com ela, estamos mostrando que é possível produzir, morar e viver bem mesmo num país de capitalismo selvagem como o que vivemos.”
A Vitória foi tema da dissertação de mestrado da engenheira de alimentos Iracema Moura, defendida na Universidade de Campinas. Ela calculou que a renda familiar na cooperativa era de 825 reais mensais, em 2005. Nascida no sertão cearense, com a infância marcada pela miséria e pela seca, Iracema Moura trabalha no programa Rede de Educação Cidadã, vinculado à Presidência da República. “Eles tiram leite de pedra”, disse a engenheira, que tem 37 anos, sobre os integrantes do assentamento. “Apesar de todas as adversidades, transformaram uma área agreste de um só proprietário, que só tinha cana, numa área agroindustrial com diversidade produtiva que dá condições dignas de vida a mais de 70 pessoas. Não é um modelo que deva ser generalizado, porque tem condições muito específicas, mas há lições que podemos aprender, como as de organização e solidariedade.”
ANTES DAS 14 HORAS, a chuva chegou. Darci José Wagner subiu no volante de um caminhão Mercedes 1974, vermelhão, alugado por 1,20 real a hora, e partiu em direção à vizinhança da cidadezinha de Uniflor, onde Pellenz, o presidente, fora cortar cana. Catarinense com descendência alemã, Wagner é dos poucos na Vitória que nunca foi sem-terra: era garçom de churrascaria, mas o irmão estava na cooperativa e o incentivou a mudar. O irmão morreu há cinco anos, num acidente de trabalho no projeto das bananas – uma queda durante a instalação de um aquecedor solar. “Meu espírito sempre foi coletivista, e não tive dificuldade de adaptação”, disse Wagner, na encharcada estradinha de terra que leva ao canavial.
Quando a chuva amainou, Pellenz e seis bóias-frias retomaram o trabalho. Com golpes de facão, eles cortavam as plantas pela base e arrancavam as folhas. Ninguém conversava. É um trabalho duro e rápido, que continuou quando a chuva voltou. Uma hora e meia depois, pararam o corte e começaram a carregar o caminhão. Em cima da carroceria, Darci Wagner recebia e arrumava os feixes. Carregar é ainda mais trabalhoso do que cortar. O silêncio continuou. Outra hora e meia e o caminhão estava cheio. Antes de sair, Wagner entregou a Pellenz 25 pães de Elzina, dos de hambúrguer, para o lanche dos bóias-frias. Eles ganham 25 reais por hora de trabalho.
No caminho de volta, Wagner argumentou que a contratação de bóias-frias era uma necessidade. “O ideal era não ter que contratar nenhum, mas sem eles a gente não vence”, disse. Contou que para não trabalhar com bóias-frias, a cooperativa contratou cinco peões com salários de 540 reais, mas ainda faltava mão-de-obra.
A carga pesou 7,5 toneladas na balança da Cocamar Cooperativa Agroindustrial, em Paranacity. “Essa cooperativa é capitalista, e a nossa é de cooperação”, disse Wagner. Para manter a fábrica funcionando a Vitória precisa de 200 toneladas de cana por mês. Se for retomado o turno noturno, como já aconteceu, a necessidade dobrará. Uma alternativa seria invadir os vizinhos e imensos canaviais da Usina Santa Terezinha. Mas o MST tem uma política de estreita boa vizinhança com o usineiro. O Movimento até cedeu um pedacinho do assentamento para que a Santa Terezinha construísse um desvio por onde os seus gigantescos caminhões de cana pudessem transitar. Em troca, a Santa Terezinha construiu para a Vitória uma cerca de 2 quilômetros e plantou 4 alqueires de cana. “Não negociamos a questão ideológica”, adiantou o vereador Sacola, um dos artífices das boas relações.
A TARDE TERMINAVA quando Darci Wagner estacionou o Mercedes na plataforma de moagem da Vitória. A cana foi descarregada manualmente. Depois de passar pela moenda, a garapa seguiu, canalizada, para os tanques e tachos de fervura. O processo de filtragem, cozimento e evaporação produz densas nuvens de fumaça, que atraem abelhas em profusão. Ao lado da caldeira a temperatura era de 60 graus centígrados. Nos tachos fumegantes, onde o mosto da cana ferve, estavam Marlene Souza e Claudete Sturmer. Com botas plásticas, avental e panos na cabeça, elas não paravam: transferiram o mosto para duas batedeiras industriais, nas quais seis pás giratórias o resfriaram até ele se transformar em açúcar mascavo bruto. Marlene e Claudete carregaram num tacho de metal o açúcar e o despejaram em uma grande mesa na sala ao lado.
Com um rodo, Cristina, filha de Claudete e Zumbi, espalhou o açúcar mascavo na mesa. Ela tem 15 anos, estuda pela manhã, almoça no refeitório e depois vai para a usina. Todos os jovens do assentamento trabalham. Estão registrados na categoria de aprendiz, permitida pela lei. Depois de empurrar o açúcar para lá e para cá, Cristina enche um balde azul com o produto, que em seguida é peneirado. O produto final é carregado, no balde, para o local de ensacamento, tarefa masculina. Um caminhão embarcou as 110 sacas (2 750 quilos) que estavam disponíveis.
“O que nós produzimos, sai”, disse Anderson Verdério, recém-formado em Administração Rural e Agroindustrial pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, que também tem convênio com o Movimento dos Sem Terra. A produção média diária é de 1 tonelada. A maior parte é vendida para atravessadores que usam suas próprias marcas. O resto vai para saquinhos de 1 quilo, com a marca Copavi-MST e a frase “Produtos da reforma agrária”. São vendidos para supermercados da região e para Organizações Não-Governamentais, ONGs. “As condições de produção são precárias, mas o novo financiamento vai modernizar o processo”, disse Anderson, referindo-se aos 465 mil reais de investimentos aprovados pelo Incra. Para evitar o uso de bóias-frias, a Vitória pretende comprar um equipamento para mecanizar o carregamento e o descarregamento da cana no caminhão.
Anexa à usina, fica a destilaria de cachaça, com seus fermentadores, caldeira, barris de carvalho e de inox. Ao longo dos anos, com o nome de “Camponeses” ou “Libertação”, a cachaça é a peça de resistência da propaganda do assentamento. Pellenz disse que a última destilação, de 15 mil litros, foi no começo de 2006. No ano passado, a exportação, para ONGs da Espanha e da França, foi de 650 garrafas. Ainda restam, em alguns barris, 3 500 litros. Se não chegarem novas encomendas, o mesmo sairá este ano. “A verdade é que não temos estrutura para entrar neste mercado, dominado por monopólios”, disse Pellenz.
No dia 7 de maio, a Vitória recebeu a primeira e única visita de uma autoridade federal. Era o economista Paul Singer, secretário nacional da Economia Solidária, órgão do Ministério do Trabalho. Foi levado pelo economista João Pedro Stédile, o líder do Movimento dos Sem Terra, também em sua primeira visita. Singer chegou no final da tarde, visitou a destilaria, deu uma olhada nas outras instalações e participou de três horas de reunião com os cooperados. “Gostei do que vi e do que ouvi”, disse dias depois. “A Cooperativa Vitória é a vanguarda da economia solidária no Brasil. Não são os únicos, mas fizeram um modelo avançado, uma alternativa para a gente pobre e para pessoas mais velhas que o mercado não aceita mais.” Singer visitou a cooperativa porque entende que o MST “é um aplicado praticante da economia solidária em mais de 80 cooperativas de assentados”.
Num mapeamento nacional feito pela secretaria de Paul Singer, ainda não concluído, foram cadastrados 22 mil empreendimentos do gênero. Eles envolvem 1,7 milhão de pessoas, a maioria agricultores e artesãos. “O que os une é a pobreza e o desejo de trabalhar por conta própria, individual ou associadamente, sem ter e sem serem patrões”, disse Singer. “A Copavi, que optou pelo coletivismo, lembra os kibutzim que visitei em Israel. Não só a terra é trabalhada em conjunto, como eles compartilham as refeições. É importante que o Brasil tenha esses exemplos. É um caminho para os jovens que procuram uma opção de vida diferente da dos pais.”
João Pedro Stédile disse que a Vitória é um símbolo: “Ela mostra que é possível ter desenvolvimento econômico, tecnológico e respeito ao meio ambiente, com distribuição de renda.” E completou: “É uma prova de que não só é possível como necessário um outro modelo de produção agrícola, para salvar o planeta, fixar as pessoas no interior, longe das favelas, e melhorar as condições de vida de todos.”
ERA NOITE quando Daniela Calza, a filha mais velha de Ildo, despediu-se da família. Daniela é o bebê com o qual o pai desafiou a polícia numa invasão, há 22 anos. Ela estava a caminho da estação rodoviária de Paranacity, para tomar o ônibus e chegar a Lapa, do outro lado do Paraná, onde cursa a Escola Latino-Americana de Agroecologia, do Movimento dos Sem Terra. São três meses lá e três meses no assentamento, praticando o que aprende.
Dessa vez, havia um personagem a mais na despedida: o namorado, Allan Francisco Ferreira, de 26 anos, um engenheiro florestal que não é do MST. Eles se conheceram num encontro de agroecologia. Namoram mais por e-mail, com alguns telefonemas no meio. Essa foi a primeira vez que ele foi à cooperativa, conhecer a família dela. Daniela estava preocupada, como todos, com o problema da falta de mão-de-obra para a cana, que leva ao uso de bóias-frias. “São coisas que a gente não pára de discutir”, ela disse. Sobre o futuro, ela contou que o namorado gostou do que viu, e que achou que ele pode ajudar a resolver o problema.
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