ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O moderno e o arcaico
As teles estão no ramo da saúde e nem sabiam
Tatiana Bandeira | Edição 21, Junho 2008
Quando não estão fora da área de cobertura ou temporariamente desligados, três celulares de São Miguel das Missões, no noroeste gaúcho, têm uma serventia não prevista pelos gigantes das telecomunicações: eles curam à distância. Para facilitar a vida, Alzira de Oliveira Leite, de 72 anos, Aureliano José Jardim, de 76, e Florentino Costa Leite (o Florzinho, ou seu Flor), de 86, benzedores afeitos aos tempos modernos, podem atender, via Nokia, Motorola ou Samsung, a todos os que buscam conforto para males sortidos do corpo e do espírito.
Os três vêm espalhando suas rezas de uns cinqüenta anos para cá, principalmente entre os quase 7,5 mil habitantes da cidade. São especialistas em olho gordo, verruga, asma, picada de cobra e de aranha, meningite, rendidura (ou hérnia, em outras plagas), quebranto (encantamento à distância), ar (dores de cabeça ou de dente) e pasmo (espasmo), mas tratam também de males do gado e pragas da lavoura. De preferência, cara a cara com o enfermo, o amaldiçoado ou o bicho precisado.
Tudo ia muito bem, até que sobreveio o 1º Encontro Nacional dos Benzedores, Rezadores e Mateiros, ocorrido em São Miguel nos dias 24 e 25 de abril. Com a presença de cerca de 240 profissionais na cidade, os benzedores locais, incluindo a trinca, se viram diante de um aumento exponencial das necessidades gerais de socorro. Uma verdadeira epidemia de aflitos. Benzedores podem até fazer milagre, é certo, mas não têm o dom da ubiqüidade. Dada a enxurrada de pedidos simultâneos e ainda geograficamente dispersos, a solução foi adotar, em escala quase industrial, a benzedura remota.
Na casa de Alzira, que herdou da mãe, uma índia guarani (“uma bugra”), as lides de benzedeira, o aparelho, comprado há dez anos, começou a receber uma média de trinta solicitações por dia. A novidade não era propriamente de método, mas de volume. Dona Alzira, miudinha, de olhos aquosos, já benzia por telefone. “Isso de benzer vem desde o princípio do mundo. A coisa do telefone começou a se espalhar mais porque um foi falando para o outro.” Ela recebeu até pedidos de ajuda do estrangeiro, como Montevidéu, e o caso mais grave pelo qual intercedeu foi uma meningite braba. Para Alzira, não faz diferença benzer na frente ou via celular. “Forcejo igual, o benzimento é o mesmo e ninguém me passa a conversa. Sinto o que a pessoa precisa de verdade e peço para um anjo da guarda ir até a casa do necessitado.”
Por volta das nove da manhã, toca o telefone na casa de madeira em que ela mora, no bairro Alegria, no final de uma rua de terra batida. Afastando o celular para enxergar o visor, ela distingue o DDD e vai pegar um bloco. É de Porto Alegre, alguém reclamando de dor de cabeça e angústia. Dona Alzira aumenta o volume, põe no viva-voz e anota nome completo, endereço e idade. Diz à moça que tenha fé, que a situação há de melhorar. Segue então para um cômodo onde está uma dúzia de santos de sua fé católica.
Alzira pega uma Bíblia gasta e pequena. Seleciona a página a ser lida (coerente com a natureza do pedido), enlaça um rosário e se posta ao lado de um anjo da guarda, um copo d’água, velas, flores de plástico, um guarda-roupa, uma tesoura (para cortar cobreiro, mal também conhecido como herpes-zóster) e uma agulha (para costurar rendidura). Pega ramos de arruda e dinheirinho – uma planta de folhas bem pequeninas –, faz o sinal-da-cruz e, ajoelhada, dá início à oração: uma algaravia de sussurros em que se distinguem as palavras “Deus”, “meu pai” e “acompanhamento”. Enquanto reza, leva os ramos ao copo e asperge gotículas nos santos e na Bíblia. A benzedura dura cinco minutos.
Do lado de fora, um homem espera. Celso de Mateo, 51 anos, bancário de Caxias do Sul, passava por São Miguel a trabalho e aproveitou para visitar dona Alzira. Estava com sua benzedura vencida: a última fazia 25 anos. Ficou sabendo da benzedora por uma reportagem de jornal, e, sem o endereço, tomou informações num mercadinho. Aderiria à telebenzedura? Ele não hesita: “Eu telefonaria, sim. O que importa é a fé.” Saiu de lá deixando uma toalha e um jogo de copos de presente, pois Alzira, como os outros dois telebenzedores, não cobra pelas orações. Mateo levou na algibeira o número do celular. Nunca se sabe.
Perto dali, seu Aureliano, compadre de Alzira, diz que pratica a telebenzedura há vinte anos. Nos últimos tempos, a logística se complicou por causa de um problema de surdez. Quem o auxilia é a esposa, Iara, cabeleireira de profissão. É ela quem atende a ligação, anota o pedido e repassa os dados ao marido aposentado, com quem está casada há 35 anos. Pede nome completo, idade e endereço. Tem dia que chegam quinze telefonemas, até de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Seu Aureliano já deu orientação espiritual, curou dor no corpo, febre, dor de garganta e anemia, e obrou para que reses parassem de perder o pêlo. “Funciona assim: eu me concentro, imagino que estou vendo a pessoa e benzo três dias seguidos.”
Sensato, avisou que em certos casos o melhor é buscar um médico. “Coluna a gente não consegue curar.” Iara largou a tesoura (cortava o cabelo de um cliente) e atendeu um telefonema de Passo Fundo, no interior do estado. Um homem precisava de benzimento para se livrar de inveja e ajeitar a vida financeira. Dois minutos depois, seu Aureliano estava sentado numa cadeira, o papel do sofredor na mão, benzendo silenciosamente.
O secretário de Turismo de São Miguel das Missões, Afonso Tencaten, não descarta desenvolver um projeto para incrementar a atividade. Consistiria, essencialmente, em fornecer celulares para mais benzedores. “Não tínhamos pensado nisso”, diz com ar compenetrado. E com voz empreendedora: “É um produto novo…” Há um cadastro de benzedores na secretaria, não seria difícil. A quem prefere a bênção presencial, ele informa que São Miguel tem capacidade instalada para 100 mil leitos/ano.
Seu Flor, ex-oleiro, o mais velho dos três, cunhado de dona Alzira, aprendeu a benzer com um padre cego. Acostumado a benzer presencialmente, aderiu ao celular há pouco mais de um mês. Como os outros, além dos dados básicos, precisa de um copo d’água e de arruda. Tradicionalista, veste bombachas e benze sempre conforme a localização do telenecessitado, à maneira de um muçulmano ajoelhado na direção de Meca. Usa as coordenadas geográficas de sua cozinha para saber onde estão os pontos cardeais.
Na casa dele não há santos, isto é, a menos que se conte uma imagem de Leonel Brizola encimada pela frase “Brizola vive”. Seu Flor, de cabelos branquíssimos cortados rente, conta que é a neta Gediane, de 12 anos, quem o ajuda com a nova técnica. Chegam de quatro a cinco telepedidos por dia. “Perdi os papéis que o padre me deu com as rezas escritas, mas sei tudo de cabeça. Rezo por telefone igual de perto. Tem só algumas coisas que não dá, do tipo cobreiro e rendidura: um eu corto e o outro eu costuro – mas só ao vivo.” Por melhor que seja a conexão telefônica, nisso ele não transige.