ILUSTRAÇÃO: AULA DE ANATOMIA, 1969 [ÓLEO SBORE TELA] DE CARLOS ALONSO [N. 1929] COLEÇÃO PARTICULAR/ALINARI, FLORENÇA, ITÁLIA_BRIDGEMAN ART LIBRARY. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
O morto e o vivo
"Sim, filho, efetivamente sou eu. Eu sou Mario Terán e eu matei Che Guevara"
Douglas Duarte | Edição 12, Setembro 2007
Che Guevara olhou para cima enquanto um oficial boliviano, agachado a pouco mais de 1 metro, fez aquela que seria sua última foto vivo. Estava sentado no chão de terra, as costas apoiadas na parede de barro da pequena escola de La Higuera, onde era mantido preso desde o dia anterior. O oficial saiu e um sargento, Mario Terán Salazar, entrou. Tinha na mão um fuzil de repetição M-2. Che se pôs de pé. Os dois se olharam e o boliviano hesitou em disparar enquanto ouvia, vindo da saleta ao lado, os tiros que terminaram com a carreira de outro guerrilheiro, Simón Cuba. Terán engatilhou então a arma e disparou uma rajada curta. Oito tiros. Pelo menos três cruzaram os pulmões de Guevara, enchendo-os de sangue, e se alojaram na parede, abrindo nela rombos do tamanho de punhos. O corpo do guerrilheiro bateu na parede e desabou no chão. Fim de uma história.
*
No mesmo instante, a vida do sargento Terán, um cruceño baixinho e arredio, começava a ser marcada pela mesma história.
*
Enquanto espasmos ainda sacudiam o corpo de Guevara, o mesmo oficial das primeiras fotos voltou à escola para mais algumas chapas. Numa, o guerrilheiro aparece com os olhos revirados. Noutra, está estendido de costas no chão e o sangue lhe escorre da boca. Minutos depois, outros soldados aparecem para também tirar fotos. Queriam lembranças. Enquanto isso, Felix Rodríguez, um cubano contratado pela CIA meses antes, transmitia mensagens em código pelo rádio e fotografava, primeiro com uma câmera de microfilme e depois com uma máquina comum, todas as páginas do hoje famoso Diário do Che. Ouviu os disparos e anotou a hora e o local da morte: 1 e 20 da tarde, La Higuera, Bolívia.
Os soldados receberam a ordem de colocar o cadáver sobre uma maca de campanha e amarrá-lo ao esqui do trem de pouso do helicóptero que o levaria a Vallegrande, maior cidade do vale que liga Santa Cruz de la Sierra ao resto da Bolívia. Gary Prado, comandante da operação e responsável pela captura, notou que Che estava com a boca escancarada. Tirou o lenço que levava ao pescoço e amarrou firmemente o queixo do cadáver junto ao crânio.
Naquele momento, Che ainda tinha os olhos fechados. Durante os vinte minutos de vôo, porém, o vento se encarregou de abri-los e, quando o helicóptero tocou a pista de pouso de Vallegrande, os olhos do morto estavam maiores do que em vida.
As notícias da captura daquele que os jornais chamavam de “terrorista argentino-cubano” já circulavam desde o dia anterior. O cadáver foi posto numa caminhonete e levado ao hospital Señor de Malta, a pouco mais de 2 quilômetros. Lá, os soldados passaram direto pelas enfermarias, ambulatórios e salas de operação e deixaram a maca em cima de dois tanques de cimento sombreados por um telhado simples, onde se lavava a roupa. Nos últimos dias, o diretor do Señor de Malta, Moisés Abraham Baptista, e o médico-chefe, José Martínez Casso, haviam recebido outros corpos de guerrilheiros. Sabiam que aquele era diferente, e que provavelmente seria um dos últimos. Martínez se aproximou do cadáver com um bisturi e abriu um pequeno talho no pescoço de Che, para chegar à carótida. Encaixou no furo uma mangueirinha, nela um funil, por onde derramou 2 litros de formol para conservar o cadáver. Um pouco de líquido extravasou. O buraco foi suturado com um par de pontos.
O diretor chamou então a enfermeira Susana Osinaga e dois outros colegas e os incumbiu de lavar o homem: os militares queriam que se reconhecesse no cadáver emaciado o revolucionário que pediu “dois, três, mil Vietnãs”. Os três chegaram à lavanderia e se depararam com um estranho de olhos abertos e quase sorriso. Despiram-no do uniforme de campanha imundo, acharam graça das três meias que vestia em cada pé e amontoaram tudo num canto. Susana e seus colegas reviraram o cadáver nu de um lado e outro, tirando com sabão e uma mangueira quase toda a terra e o sangue seco acumulados no peito. Depois de limpo, Che teve as bochechas barbeadas, o cabelo penteado para trás e foi enfiado num pijama azul, novo, do hospital. Havia um contraste entre aquele homem limpo, metido num pijama e com cara de cochilo, e seus dois companheiros mortos na mesma operação. Eles estavam aos pés dos tanques, cobertos de sangue e tinham os ventres inchados de gás. Pareciam o que foram: guerrilheiros mortos em combate, com expressão de fera acuada.
O cadáver de Che passou a noite na lavanderia do hospital, recebendo a visita ocasional de alguns militares curiosos. Soldados bloqueavam a passagem do resto do público. O coronel Andrés Selich, de um regimento local, inspecionou o cenário. Considerou que a maior prova da vitória do exército da Bolívia não poderia aparecer de pijama na imprensa mundial. Por isso, o uniforme imundo, amontoado num canto, foi novamente colocado no cadáver. E para completar o quadro, um estafeta recebeu ordens de trazer uma jaqueta militar que não pertencia a Che. O único detalhe que perturbava a placidez do guerrilheiro morto eram as perfurações de bala no peito, à mostra propositadamente.Che estava pronto para o espetáculo. Que viessem os jornalistas.
A versão oficial, até então, era de que o argentino havia morrido num confronto armado. Dois dias depois, com os testemunhos de dezenas de camponeses de La Higuera que viram Che caminhando por alguns quilômetros até a pequena escola da vila, o governo decidiu anunciar que o argentino morreu devido a ferimentos de combate. A versão circulou por algumas horas, até que todos se deram conta de que ninguém marcha por 2 quilômetros com oito tiros no peito. Após algumas semanas de polêmica e denúncias pela imprensa, o presidente da Bolívia, general René Barrientos, confiante na popularidade da execução, assumiu inteira responsabilidade. A ordem fora sua.
Quando os militares deixaram que a população entrasse e visse o corpo, fotógrafos e cinegrafistas ainda trabalhavam Eles subiam no tanque para, de pé, tendo Che entre as pernas, tirar fotos frontais de seu rosto. Muitos faziam o sinal da cruz, abaixavam a cabeça e rezavam rápido, de forma respeitosa. Algumas mulheres, que eram maioria na fila, aproveitavam-se da distração dos soldados e cortavam tufos de cabelo ensangüentado que guardariam por muito tempo em pequenos envelopes de plástico. Os militares começaram a sentir que algo saiu de seu controle.
A certeza veio horas depois, quando uma comissão de mulheres que diziam representar mais de cem bateu à porta do centro de comando improvisado no cassino próximo à praça principal. Exigiam que o morto, ainda que comunista, recebesse os ritos cristãos e ganhasse cova no cemitério local. Os militares pareceram ceder e providenciaram um caixão que sabiam que não iam usar, além de lençol e flores. Garantiram, também, que Che Guevara seria enterrado no dia seguinte. A portas fechadas, porém, passaram a discutir as conseqüências de um funeral: se as boas mulheres de Vallegrande tratavam assim o ilustre cadáver, quantos comunistas não peregrinariam até sua tumba? A família evidentemente tinha direito ao corpo, mas naquele momento de confronto, negociar com Cuba o envio dos restos mortais parecia fora de propósito. Afinal, Fidel Castro era o principal suspeito de organizar a missão guerrilheira.
Enquanto deliberavam, os militares informaram Buenos Aires e Brasília de tudo o que havia ocorrido nas últimas horas. Os dois governos ofereceram a Barrientos toda a ajuda de que necessitasse, e o auxílio se materializou na forma de metralhadoras e munições, além de latas e mais latas de napalm e de rações brasileiras à base de feijoada que os bolivianos tiveram problemas para digerir. No Palácio da Alvorada, o alívio foi evidente. Semanas antes, os militares brasileiros tinha sido informados de que uma das possíveis missões na Bolívia do intelectual francês Régis Debray, naquele momento já preso e sendo julgado pela Justiça Militar, era servir como elo entre Havana, Che Guevara e o brasileiro Carlos Marighella, informação que chegou até a imprensa. Em Buenos Aires, o alívio foi seguido de ordens para que três peritos partissem para a Bolívia levando os registros da arcada dentária de Guevara, amostras de manuscritos seus e a folha de impressões digitais usada na emissão de seus documentos de alistamento militar, feito 20 anos antes.
A apreensão sobre o que fazer com o cadáver teve seu clímax perto das 10 da noite. “Queime-o”, foi a ordem seca, dada pelo comandante das Forças Armadas, general Alfredo Ovando, depois de falar com o presidente Barrientos em La Paz. A decisão tinha uma implicação problemática: só se poderia confirmar que se tratava de Guevara quando chegassem os peritos argentinos – mas, era óbvio, eles precisariam do cadáver para seu trabalho. Um novo telegrama de consulta recebeu outra resposta curta de La Paz: “Guarde mãos e cabeça; queime o resto”.
Deve-se à intervenção de um dos médicos responsáveis pela necropsia a mudança de curso das coisas: queimar um corpo exigiria uma fogueira enorme, acesa por toda a noite. Por conselho de um dos agentes da CIA, Barrientos desistiu também da idéia da decapitação. “Traga as mãos” foi a ordem final, de acordo com os relatos de vários oficiais presentes.
Os dois médicos do Señor de Malta assistiram ao encontro e acataram a ordem de fazer uma necropsia completa. Exigência adicional: a hora da morte deveria ser omitida a todo custo. O procedimento foi feito a 10 metros da lavanderia, numa mesa côncava de cimento, com um grande furo no meio para o escoamento do sangue. Os médicos identificaram uma ferida leve na batata da perna direita, oito tiros no tórax, hemorragia abundante, cabelos castanhos, encaracolados, sobrancelhas densas, nariz reto, marcas de nicotina nos dentes, uma cicatriz longa no dorso da mão esquerda, 1,73 metro de altura e “olhos levemente azuis”. Foi Martínez Casso quem amputou cirurgicamente as duas mãos de Guevara. Os cotos foram costurados. O cadáver de Che só se reconciliaria com as mãos trinta anos depois.
No meio da noite, uma caminhonete deixou o Señor de Malta rumo à pista de pouso ao lado do cemitério local. Lá, numa cova coletiva onde vinham sendo empilhados vários guerrilheiros mortos nos dias anteriores, o corpo de Che foi jogado, ainda em sua maca. Pelos próximos trinta anos, adotou-se a versão oficial do governo boliviano: Guevara foi cremado num local sigiloso.
O capítulo seguinte ocorreu quatro dias mais tarde, tendo como cenário uma folha de jornal aberta em cima de uma mesa de escritório simples. A manchete, velha, informava que o exército teve um confronto com os guerrilheiros em Yamarito e Masicuri. Em cima dela havia um vidro de nanquim. Na página ímpar, no alto, em quatro colunas, uma foto de um líder sul-vietnamita encabeçava a matéria sobre as eleições ocorridas dias antes. Abaixo, no pé da página, estavam as palavras cruzadas, pequenas, completas. À direita delas, um anúncio de eletrodomésticos em duas colunas. O barulho intermitente de pingos diminuiu, substituído pelo ruído fofo de algodão sendo aberto. Entre o anúncio, as palavras cruzadas e o relato sobre o Vietnã, estavam as mãos amputadas de Che Guevara, colocadas sobre um pedaço de plástico transparente.
Um dos peritos bateu uma foto da cena enquanto os dois chumaços de algodão que tapavam o corte dos punhos se encharcavam vagarosamente de formol. Na outra ponta, os dedos estavam empapados em nanquim. Os mindinhos, enrolados, contrastavam com os dedos mais longos e estendidos.
Levou alguns minutos até que Nicolás Pellicari, Juan Carlos Delgado e Esteban Rolzhauzer superassem o asco inicial. Dois dias antes, às 3 da manhã, Pellicari recebera um telefonema com ordens do presidente argentino Juan Carlos Onganía de viajar a Santa Cruz de la Sierra para “identificar as impressões digitais do guerrilheiro cubano-argentino Ernesto Guevara de la Serna”. Quando chegou à saleta em La Paz e se deparou apenas com uma lata de tinta cheia de formol onde os dois pedaços enrugados de carne boiavam, teve vontade de vomitar.
Ainda que os meses no meio do mato e a imersão em formol tenham deixado a polpa dos dedos de Guevara quase desfigurada, os olhos treinados dos peritos argentinos identificaram a semelhança entre seus documentos e as curvas centrais nos polegares. Ainda assim, era preciso fazer o registro de semelhança, redigir um laudo para o governo boliviano e um relatório para o general Onganía, que esperava notícias em Buenos Aires. Os três puseram luvas cirúrgicas e tiraram as mãos de dentro da lata. Como estavam enrugadas, uma película adesiva teve que ser colada com cuidado em cada dedo e depois pressionada contra a folha de digitais. Os peritos passaram oito horas manipulando as mãos de Che.
Para o sargento Mario Terán Salazar, o sentimento inicial de ter sido o herói que tirou a vida do grande guerrilheiro Ernesto Che Guevara em outubro de 1967 foi paulatinamente substituído pelo medo. Enquanto a fama de Terán permaneceu restrita à Bolívia, tudo estava bem. Como poucos bolivianos da época apoiavam os forasteiros que queriam mudar à bala o governo e instalar um regime socialista, Terán estava do lado dos mocinhos.
Os ventos começaram a mudar com o flerte entre uma jornalista francesa, Michelle Ray, e o pára-quedista Eduardo Torrico – um bem-apanhado cochabambino de 1,80 metro que trabalhava no palácio presidencial, em La Paz, com acesso direto ao presidente Barrientos e a informações confidenciais.
A jornalista francesa sabia que a revelação da identidade do homem que executou Guevara – até então desconhecida – seria um furo mundial. Segundo o pára-quedista, tirar uma foto que mostrasse claramente o rosto de Terán acabou sendo relativamente simples. Apresentando-se ao carrasco de Che como relações públicas do Exército, pôde fazer a sua foto sem sobressaltos. O problema era como agir depois disso. Ficar na Bolívia de Barrientos enquanto se revelavam ao mundo execução e executor não era uma opção. A francesa e o pára-quedista decidiram escapulir com o material fotográfico em mãos.
Em assentos separados, embarcaram num vôo comercial rumo a Lima, no Peru. Havia, porém, um obstáculo considerável: a repórter vinha mantendo um relacionamento íntimo com o próprio presidente Barrientos, que não tardou em perceber o sumiço da “rubia estupenda“. O cochabambino relembra o susto pouco antes da partida do vôo, quando estafetas do governo descobriram a presença da jornalista e a retiraram de dentro do avião para uma revista completa. Os negativos, contudo, estavam com Torrico. O avião acabou decolando com ambos a bordo. Em Lima, o casal passeou à noite, comeu frango e começou a redigir o artigo que seria publicado nas semanas seguintes na revista Paris Match revelando quem era “o verdugo de Che Guevara”.
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A partir de então, Mario Terán passou a ser alvo do ódio coletivo e individual de milhares de militantes de esquerda mundo afora.
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No início, ninguém deu importância para a bomba, caseira e fraca, detonada em frente à embaixada boliviana na Cidade do México, meros cinco dias após a execução de Che. Autoria assumida: estudantes do Movimento de Esquerda Revolucionária. Tampouco pareceu suspeito o acidente aéreo que matou o próprio presidente Barrientos, menos de dois anos depois: seu hábito de pilotar absolutamente bêbado era conhecido de todos. Além disso, mesmo para os adeptos da tese de sabotagem, era perfeitamente razoável que o acidente estivesse ligado a disputas internas de poder entre os militares bolivianos e não à morte de Che. Foi apenas em fins de 1969, quando o camponês Honorato Rojas, que guiou os militares ao último acampamento de Che, morreu com quase uma dezena de tiros na cabeça que as dúvidas foram caindo. Havia, de fato, quem quisesse se vingar dos matadores de Che Guevara.
Nos anos seguintes, alimentada por outras mortes, a desconfiança tomou corpo. Em 1970, um estranho acidente automobilístico decapitou Eduardo Huerta, um dos oficiais sob o comando de Gary Prado. Um ano depois, Roberto Quintanilla, chefe de inteligência do todo-poderoso Ministério do Interior em 1967, que presenciou a amputação das mãos de Guevara, foi assassinado em Hamburgo, onde trabalhava como cônsul, com três tiros no peito, disparados por uma militante do Exército de Libertação Nacional boliviano. Em 1972, o general Alfredo Ovando, comandante das forças armadas na época da morte de Che, escapou de um acidente de carro – seu filho, não. Passado mais um ano e Andrés Selich, responsável pelo enterro de vários guerrilheiros, inclusive Guevara, foi assassinado a pauladas. Em 1976, o esquerdista Juan José Torres, chefe do estado-maior à época de Barrientos, foi morto no exílio, em Buenos Aires. No mesmo ano, o comandante da 8ª divisão do exército boliviano, Joaquín Zenteno Anaya, foi assassinado em Paris por um grupo autodenominado Comando Internacional Che Guevara, que nunca mais fez ou reivindicou qualquer ação.
Havia também as cartas. Quase todos os oficiais entrevistados para essa reportagem afirmam ter recebido não uma, porém muitas. Vinham datilografadas, manuscritas e também compostas em letras e palavras recortadas de revistas e jornais. Um deles, que viveu no Brasil até o início dos anos 80, foi avisado de que a mulher e os filhos também eram alvos.
Desde então, Terán vive recluso, se nega a falar com jornalistas, poucos sabem de seu paradeiro, e quem sabe é seleto com relação ao que diz. A partir da metade dos anos 80, as mortes pararam e Terán baixou um pouco a guarda. Em 1997, a “Chemania” alimentada pelo trigésimo aniversário da morte de Guevara, por uma penca de biografias e principalmente pela descoberta dos restos mortais na pista de pouso de Vallegrand, mostrou a Terán que, no fim das contas, o homem que ele matou em 1967 seguia vivo. E que ele tinha virado bandido. Sua situação ficou ainda mais tensa em 2006, quando Evo Morales se instalou no gabinete presidencial boliviano e pendurou numa das paredes presidenciais um retrato de Che feito de folhas de coca meticulosamente sobrepostas. Terán está do lado errado da história, e tenta ficar invisível.
As mortes têm uma explicação diferente para cada interlocutor. Uns afirmam que os mortos sofreram as conseqüências do pesado jogo de poder boliviano, cheio de traições e contragolpes. Há os que acusam o próprio regime de Cuba de promover os assassinatos. Para outros, é tudo muito simples: há uma “maldição do Che”. A única coisa certa é que entre os “vingadores” havia militantes do ELN boliviano, facínoras da direitista AAA argentina, terroristas alemães e um agrônomo baiano.
O ano da radicalização no Brasil foi 1968. Tanto do governo, que começou a bater mais duro, quanto dos grupos subversivos, que passaram a adotar de maneira quase uniforme a política das armas: seqüestros, assaltos, atentados e justiçamentos. Um dia, no Rio, dois militantes de um pequeno grupo dissidente da Política Operária, o Colina (sigla para Comando de Libertação Nacional), discutiam a necessidade de ações que dessem visibilidade e prestígio à organização depauperada. Foi durante essa conversa que o ex-sargento da FAB João Lucas Alves confidenciou a seu amigo e colega de luta, o agrônomo baiano Amílcar Baiardi, o plano de matar Gary Prado, o homem que capturou Che Guevara.
Prado chegara ao Brasil satisfeito em passar alguns meses perto do mar enquanto freqüentava as aulas da Escola Superior do Estado-Maior, na Praia Vermelha. Ele gozava de prestígio nos círculos militares justamente por ter comandado a captura do homem, e a notícia de sua presença fora publicada na imprensa. Imediatamente, os militantes do Colina pediram que uma fonte infiltrada na escola militar, um recruta, os informasse sobre aparência, horários e hábitos do alvo.
O planejamento do atentado durou aproximadamente duas semanas, como conta Baiardi, hoje professor de filosofia e história da ciência na Universidade Federal da Bahia. No dia do atentado, 1o de julho de 1968, armados com duas pistolas e um revólver, carro de fuga pronto, os terroristas iniciam a operação. Baiardi, que havia sido levado vendado a um apartamento, aguardava o retorno dos colegas encarregados do justiçamento. Comprara folhas de papel sulfite, estava equipado com um sanduíche e tinha uma máquina de escrever para redigir um manifesto à nação. Os homens do Colina sabiam exatamente o que fazer quando o alvo saltasse no ponto de sempre: chamar seu nome, descarregar as armas no peito rapidamente e fugir. E o fizeram.
Enquanto o homem se esvaía em sangue na rua, os três brasileiros responsáveis por vingar Che Guevara chegaram ao apartamento onde Baiardi os esperava ansioso. Estavam tensos, mas controladamente felizes pelo cumprimento da missão. Abriram a pasta do homem morto em busca de seus documentos e das apostilas da Escola do Estado-Maior, que poderiam ter alguma informação importante. Veio a primeira surpresa: documentos em alemão. Em seguida, o passaporte confirmava: haviam matado Edward Ernest Tito Otto Maximilian Von Westernhagen, major do Exército alemão.
Homem errado.
No mesmo momento, Baiardi amassou o rascunho mental que havia feito em sua cabeça – “menos de um ano depois da morte de Che Guevara, a esquerda brasileira executa o assassino desse herói da América Latina.” – e os quatro homens fizeram um voto de silêncio que durou até 1985. Nos dias seguintes, aproveitando a confusão nos jornais, que atribuíram o atentado à KGB ou ao Mossad, Baiardi voltou para a Bahia. Um mês mais tarde, José Roberto Monteiro, o motorista, foi capturado. Sobreviveu à prisão e morreu vinte anos mais tarde num acidente de carro. Pouco depois seria a vez de João Lucas Alves cair na mão da repressão. Morreu em decorrência da tortura sofrida no Dops de Minas Gerais. No fim de 68, caiu o segundo atirador, Severino Viana, que se suicidou na cela depois de meses sendo vítima de abuso. Baiardi, capturado em 1969, é o único que resta para contar a história. Nenhuma das prisões teve qualquer relação com o atentado a Prado.
Como quando Che estava vivo, suas mãos continuaram perambulando pelo mundo. Primeiro, ficaram guardadas no Ministério do Interior boliviano. Dois anos depois, foram contrabandeadas para a guarda de dois comunistas bolivianos da confiança de Antonio Arguedas, um ex-ministro do Interior e ameaçado de morte pelo governo de La Paz. Meses antes, Arguedas entregara a Cuba cópias microfilmadas do diário de campanha de Che, arruinando um acordo milionário que o governo Barrientos tentava fechar com editoras internacionais. Já havia sobrevivido a dois atentados.
Quando o pacote macabro chegou às mãos da dupla Jorge Sartori e Juan Coronell, não havia qualquer instrução de como fazê-lo chegar a Cuba. “Senti uma mistura de orgulho, medo e nojo”, contou Coronell no ano passado, cercado pelos retratos da Rainha Elizabeth II que adornam as paredes da escola bilíngüe onde dá aulas em Santa Cruz de la Sierra. “Orgulho, porque era uma missão importante. Importantíssima. Medo, porque era também arriscada – naquela época se morria por nada. E nojo porque Olha, eu nem gostava de pensar que embaixo da cama onde eu dormia estavam boiando as mãos de Che Guevara.” Apesar da repulsa, a situação se prolongou por cinco meses.
Segundo a versão de Coronell – há quem a desminta, mas a maioria dos historiadores a adota -, o vidro com as mãos e uma máscara mortuária de Che feita em gesso pelos militares bolivianos foram acomodados em sua bagagem de mão quando viajou de avião da Bolívia para Cuba. Não foi uma viagem simples. Houve a partida, no ar rarefeito de La Paz, a primeira escala, tensa, em Lima, o calor de Guayaquil, o alívio com a aragem fria de Bogotá, os mosquitos de Caracas, o longo trecho sobre o Atlântico até Madri. De lá até Paris e uma noite dormida com medo. O nervosismo final no embarque do vôo Paris-Moscou, talvez o mais infestado de espiões e agentes duplos daqueles tempos. O alívio ao aterrissar na capital do mundo então ainda comunista, onde discutir Marx não era apenas uma possibilidade, mas uma obrigação. E o fim da jornada, a chegada à embaixada cubana em Moscou, proclamado com uma frase bombástica: “Tenho as mãos de Che Guevara e quero entregá-las a Fidel Castro”.
Jorge Castañeda, biógrafo mexicano de Guevara, garante que, na década de 90, Fidel Castro ainda mostrava a visitantes as mãos do amigo, já em novos potes. O americano Jon Lee Anderson, autor daquela que é considerada a versão definitiva da vida de Che, sustenta que em determinada época o governo cubano cogitou embalsamar as mãos e fazer um monumento em que elas complementassem um baixo relevo com a figura de Guevara segurando um rifle.
A idéia não foi adiante. Não se sabe ao certo onde elas estão. É possível que tenham se juntado ao cadáver de Che quando ele foi encontrado e repatriado para Cuba, em 1997.
*
Para chegar a Mario Terán Salazar, o homem de cuja carabina partiram os disparos que mataram Che, há de se vencerem boatos e pistas desencontradas e hostilidades abertas. Ora se ouve que ele está administrando terras em Oruro, mais de quinze horas de carro desde Santa Cruz. Ora que dá expediente no bar do Clube Militar. Que anda disfarçado com uma peruca. Que virou chofer de praça e pode ser o homem dirigindo o seu táxi.
Uma boato destinado a afastar forasteiros mais persistentes assegura que uma imaginária equipe de emissora européia lhe teria oferecido um cachê de pelo menos 20 mil dólares – e nem assim Terán aceitara falar. Há equipes européias de verdade que caem no embuste e tentam pechinchar ou até cobrir a oferta.
Minha busca termina com um papel enrugado no qual estava rabiscado um endereço.
A rua é calma, tem vigia. Casas melhores e piores. Na frente do número 2395 há um vira-lata aparentado de pastor alemão e um senhor que abre uma tangerina com as unhas. Ele tem o boné enterrado na cabeça grisalha, usa chinelos e bermudas. Uma farda grossa verde-oliva, puída e desabotoada, lhe cobre o peito. Olhos baços.
O homem que se apresenta como Pedro Salazar conversa através da grade antes de abrir a porta. Diz ser conhecido de Terán. Do exército? “Não, conheço ele de outros trabalhos.” Mas ele já morou aqui? “Não, que eu saiba não, essa é a casa da minha família.” A conversa dura pelo menos mais meia hora. Fala-se sobre amenidades, brinca-se com o cachorro. Com a noite já caindo, chega um homem corpulento à casa. Junta-se ao grupo no alpendre e acompanha o papo, calado, o filho do senhor do boné. Ao final, Pedro Salazar dá o número de um celular. Promete que vai tentar achar Terán.
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Felix Rodríguez é um cubano rechonchudo, com pesadas correntes de prata nos pulsos, radicalmente de direita. Como tantos de seus compatriotas, mora em Miami, na Flórida. Difícil ver nele um agente envolvido em várias operações clandestinas da CIA, aliciador de fontes, interrogador, possivelmente torturador, pivô do escândalo Irã-Contras, que mobilizou a Casa Branca nos anos 80, e um dos responsáveis pela morte de Che. Entrar na sala confortável de sua casa suburbana é ser inundado de provas de que ele esteve realmente naqueles lugares, viu ação, foi um soldado raso da Guerra Fria. Nas paredes há granadas, facas, rifles, pistolas, bandeiras americanas ensangüentadas, bandeiras rebeldes salvadorenhas (de cabeça para baixo), adesivos que dizem “Matem Fidel”, agradecimentos pessoais assinados por George Bush pai (emoldurados), sutiãs de guerrilheiras, extintores de incêndio furados por balas, até o esqui destroçado de um helicóptero. Parece que a cada missão – Bolívia, Líbano, El Salvador, Nicarágua, Vietnã, fora todas as que não mencionou – Rodríguez juntou suvenires da “época de ouro” em que ajudava a Casa Branca a dar combate ao comunismo.
“Estávamos aqui na Flórida em 1967 quando gente do alto escalão da CIA em Washington nos contatou”, relembra Rodríguez. “Precisavam de cubanos para assessorar um regimento boliviano que estava caçando Che Guevara.” Ele chegou poucas semanas depois à Bolívia. E, por um desses acasos de que se desconfia, estava em La Higuera cara a cara com o guerrilheiro, poucas horas depois de sua captura, embora não fosse o oficial mais graduado da agência no país. Longe disso: era pouco mais que um operador de rádio. Ele conta a ordem que deu ao militar boliviano a postos em La Higuera:
“Sargento, há ordens do seu governo para executar o prisioneiro. Não atire do pescoço para cima, atire daqui para baixo porque deve parecer que ele morreu em combate. ‘Sí mi capitán, sí mi capitán’, respondeu o homem. Então saio. Vou fazer umas anotações em meu posto. É 1 da tarde, hora boliviana. À 1 e 10, 1 e 20, ouço os tiros e anoto no meu livro a hora da morte dele”.
Rodríguez é um dos poucos que buscam aumentar seu papel na captura e na morte de Che Guevara. Dentro da fechada e militante comunidade exilada cubana da Flórida, o ex-agente é visto por muitos como o herói que matou o melhor guerreiro de Fidel Castro. Rodríguez sabe que isso, mais que qualquer missão secreta na Guatemala ou seu posto de Presidente da Associação de Veteranos da Baía dos Porcos, lhe confere status. Miami é uma cidade onde moleques com camisas de Che Guevara são mandados para casa com uns tapas enquanto a roupa queima no chão.
Gary Prado vive uma situação oposta em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Poderia ter tido o mesmo fim de outros militares envolvidos na captura e na morte do Che. O atentado frustrado no Rio de Janeiro, em 1968, e mesmo o tiro supostamente acidental que partiu sua espinha em 1982 são provas disso. Mas desde os anos 80, quando se tornou uma personalidade de médio porte na política nacional boliviana – foi embaixador em Londres e no México e, por pouco tempo, ministro do Planejamento – o fato de ter colaborado na captura do guerrilheiro tornou-se um mérito dúbio. Outorgava-lhe notoriedade na mesma medida em que o transformava numa vidraça, sobretudo a partir do final dos anos 90, quando o país começa a dobrar à esquerda.
Em 1987, Prado publicou La Guerrilla Inmolada, um relato sobre o combate à guerrilha de Guevara, considerado por muitos a versão mais completa da história. Ele diz hoje, com seu modo sereno de falar, que sentiu pena do guerrilheiro quando o encontrou: “Os jornalistas me perguntam o que senti, como se ele fosse uma figura mítica, um superman“, diz ele, alargando seus longuíssimos braços para voar. “Ele parecia um mendigo. Um mendigo. Trazia uma panelinha com seis ovos.” Sua tese é de que havia uma colossal pulsão de morte num Che confrontado com a desmobilização do camponês boliviano. “O que ele esperava? Ganhar, com 51 homens? Nosso problema tático não era vencer o bando, era encontrá-lo no meio das montanhas. Ele estava caminhando, inabalável, acho que sem se dar conta, para a imolação.”
Prado se exime de qualquer responsabilidade pela execução. “Não tínhamos qualquer ordem de matá-lo durante a ação. Se nos houvessem dito ‘sem prisioneiros’, estaria dito e cada comandante de pelotão agiria como achasse cabível. Ninguém nos disse isso. Por isso cumpri minhas ordens: capturei-o e o entreguei a meus superiores, simplesmente. Nada tenho a ver com a morte de Che Guevara.”
A versão dos fatos na narrativa de Prado é questionada frontal e abertamente por pelo menos uma pessoa: Maria del Carmen Arriet, chefe do Centro de Estudos Che Guevara, em Havana. Ela é taxativa ao afirmar que o livro foi escrito “a várias mãos”, querendo dizer que o exército boliviano revisou originais, cortou e recortou como mais lhe convinha. Seria menos uma versão definitiva que uma versão oficial boliviana, politicamente dócil. Mas considerando-se que a pesquisadora é cabeça de um centro de estudos cubano dirigido pela viúva de Guevara, Aleida March, o descrédito é recíproco.
Em fevereiro de 2007, nova reviravolta. A revista mexicana Letras Libres publica um artigo em que dois jornalistas franceses, Maite Rico e Bernard de la Grange, afirmam que não é sequer de Che o corpo desenterrado em 1997 e repatriado para Cuba. Citando provas circunstanciais, garantem que tudo não passou de uma encenação de Fidel Castro que, com a operação, visava desviar a atenção da população das agruras do chamado Período Especial, quando a economia cubana quase foi a pique. O escritor Mário Vargas Llosa louvou o trabalho da dupla de jornalistas, autores no passado de libelos contra ícones da esquerda como o Subcomandante Marcos e a Nobel da Paz guatemalteca Rigoberta Menchú. Havana e os peritos envolvidos na busca da ossada continuam a sustentar a versão anterior, assim como o biógrafo Jon Lee Anderson, um dos responsáveis por descobrir a localização aproximada do cadáver mais tarde desenterrado por Cuba.
Em Miami, a reação dos exilados cubanos não tardou. Quem roubou as manchetes dessa vez foi Gustavo Villoldo, superior de Rodríguez na CIA na época da captura de Che, também exilado cubano. Nem Anderson nem os militares bolivianos dão muito crédito ao que quer que ele diga, mas no momento ele diz três coisas chocantes: que o corpo de Che continua na Bolívia, que sabe sua localização e, principalmente, que pode provar. Diante das câmeras, Villoldo sacou um tufo de cabelo castanho-claro que jura ter cortado da cabeça de Che. Afirma que, se a família Guevara se dispuser a buscar o cadáver seguindo suas indicações, o DNA dos ossos poderá ser comparado com o de sua amostra – um estranho caso de relíquia usada para desmentir o santo.
Vale registrar, contudo, que ainda hoje testes de identificação por DNA precisam de folículos frescos para serem conclusivos: os cabelos não podem ser cortados, mas arrancados. Um agente da CIA deveria saber disso.
*
De volta à rua de Terán dois dias depois da primeira investida, encontro a casa fechada. Faço uma ligação da cabine telefônica situada a 15 metros do número 2395. Adriana Mariño, uma documentarista colombiana que acompanhou algumas das entrevistas, avisa que Pedro Salazar acaba de chegar de carro com seu filho.
– Sabe, Pedro, tenho cada vez mais certeza de que você é Mario Terán – arrisco ao telefone.
– Meu filho, deixe de besteira. Estou aqui no Palácio da Justiça fazendo algumas coisas. Ligue depois e nos falamos.
E desliga.
Saio da cabine e caminhamos em sua direção. Quando Salazar já está com metade do corpo dentro do carro, peço que me dê dois minutos. Ele fecha a porta do carro. Está contrariado. Seu filho parece prestes a abrir a porta e nos dar uma surra. Salazar segura-lhe o braço e o acalma. Diz para entrarmos na caminhonete.
O carro de vidros fumê arranca e começa a dar voltas por ruelas ermas. Quebro o silêncio tenso forçando uma reapresentação.
– Vamos tentar de novo, Terán. Meu nome é…
– Sim, filho, efetivamente sou eu. Eu sou Mario Terán e eu matei Che Guevara.
Apesar de todas as desconfianças, a frase, formulada com tal clareza, nos paralisa por alguns instantes.
– Nem adianta me perguntar nada porque não posso nem quero falar.
– Não pode?
– Quero ficar em paz. Minha família não quer que eu fale. Não quero falar. Essa história tem que ser esquecida. Ele já está morto há quarenta anos e há quarenta anos eu tenho que viver com isso. Só eu sei como é viver com isso.
-Se quiser, falamos só dos dias posteriores à morte de Che. Você se arrepende? – nossas perguntas vêm em frases rápidas. O carro é uma balbúrdia cochichada e tensa.
– Não, filho, vai me desculpar, mas isso não vai acontecer.
Terán está profundamente aborrecido com nossa presença. Parece especialmente contrariado quando passamos por cima de suas negativas e perguntamos a respeito de detalhes como os rumores de sua bebedeira no dia da morte de Che e lhe dizemos que a imagem que as pessoas têm dele, a partir de alguns livros, é a de um bêbado que vaga pelas ruas de Santa Cruz com uma peruca ridícula.
– Eu não sou um vagabundo, você não viu meu carro e minha casa? Eu já até viajei para fora, para a Espanha e para Washington.
– Para Washington?
– É, para a Virginia, – diz ele. Pausa. Volta-se para trás e nos olha firme com o par de olhos cansados, de retinas comidas de branco nas bordas.
– É melhor vocês desistirem, eu não posso falar.
Embora não tenham sido exatamente amigáveis, nenhum dos dois encontros com Terán terminou em vassouradas. Desde então, ao longo dos meses, vários rumores foram se empilhando a seu respeito. Ele estaria temeroso pela vida com a chegada de Evo Morales à presidência. Um historiador boliviano contou que ex-agentes da CIA faziam festas a cada cinco anos para comemorar a morte de Che e outro me garantiu que Terán tinha lugar de destaque nelas, apesar de não gostar do papel. E havia a pista que ele próprio tinha deixado quando mencionou que viajara para a Espanha e para o estado da Virginia, vizinho da capital americana. É em Langley, nesse mesmo estado, que fica a sede da CIA.
Terán continuava nas sombras. A informação mais saborosa dava conta de que médicos do sistema de saúde cubano, trazidos pela Venezuela por meio de um programa de solidariedade a Evo Morales, haviam limpado a catarata dos olhos do homem que matou Che. História boa demais para ser verdadeira.
De seguro, apenas alguns poucos fatos. Depois da campanha contra Che, Terán desempenhou uma série de funções subalternas no exército. Pelo menos dois militares da reserva lembram que ele completava sua magra aposentadoria, nos anos 80, dirigindo um caminhão de entregas de uma empresa de doce de leite local. Sem dúvida, impressão confirmada por seu espanhol de concordâncias falhas, Terán não foi longe nos estudos e não pôde ocupar postos mais qualificados dentro da hierarquia militar.
“O exército ainda lhe presta assistência, talvez tendo os americanos por trás”, sugere um dos militares. “Mas para tudo continuar como está, tudo tem que continuar como está. Ele não deve abrir a boca.”
Passam-se sete meses e volto à casa número 2395. Bato palmas, um menino aparece, digo que quero falar com seu avô e ele traz a avó, a mulher de Terán. Digo que já o havia encontrado duas vezes e que, de passagem por Santa Cruz, decidi vir ver como estava. Sou convidado a entrar. Sento numa mesa interna enquanto outro neto vai buscar o homem que matou Che. Busco nas paredes qualquer pista de viagens. Nada, além de um enorme casco de tartaruga pintado com uma cena bucólica em que uma mata tropical quase engole uma casinha à beira de um rio, ladeada por um título a pincel que diz “Recuerdo de la Amazonia”.
Enquanto abro uma tangerina, a esposa se senta me estudando, embora mantendo alguma cerimônia. Estamos os dois esperando Terán, que deve levá-la para comprar remédios fitoterápicos de diabetes em Montero, uma cidade próxima. Conversamos sobre Evo Morales, a autonomia de Santa Cruz (o assunto do momento para os cruceños), pergunto “como vai tudo?” três vezes. Lembro da catarata de Terán. Pergunto como foi a operação. “A recuperação foi complicada, mas agora já está melhor.”
– Trabalharam bem, então?
– Sim, os cubanos trabalharam direitinho.
O neto de Terán volta, diz que não encontrou o avô. Com meia tangerina na mão, deixo a casa. Ando alguns metros e vejo Terán chegando por uma transversal. Tento caminhar sem pressa e falho. Eu me reapresento. Terán suspira enquanto varre todas as ruas à nossa volta com os olhos.
Volto a pedir uma entrevista. “Não, filho, vai me desculpar. Já te disse que não posso.” Já é menos incisivo. Mantém-se em silêncio. Parece farto de ter a vida seqüestrada por Che.
Numa última tentativa, lhe pergunto o que foi fazer em Virginia.
“Jardinagem. Fui trabalhar um pouco como jardineiro”, responde.
Olho para a frente da casa. Terán acompanha. Há uma única planta, uma avenca esturricada pelo sol num vaso de plástico branco sujo.