Avesso às firulas, Carne Frita não esbanjava jogadas de efeito. Competia para ganhar, não para se exibir, e preferia a defesa ao ataque CREDITO: GUILHERME SANTANA
O mundo me condena
A trajetória de Carne Frita, o Pelé da sinuca
André de Oliveira | Edição 159, Dezembro 2019
Finzinho de tarde, quatro homens chamam a atenção no Crematório Vila Alpina, em São Paulo. Têm idades diferentes e físicos bem distintos, mas algo parece igualá-los – talvez o consumo excessivo de cafezinhos ralos e cigarros baratos em noites insones. São jogadores profissionais de bilhar e papeiam em tom consternado. “Foi o taco mais forte que o Brasil já viu”, diz um deles. “É Pelé no futebol e Carne Frita na sinuca”, emenda outro, ressuscitando uma comparação muito repetida nos botequins do passado.
Walfrido Rodrigues dos Santos, o Carne Frita, morreu em 29 de outubro, dois dias após completar 90 anos, por complicações decorrentes de uma pneumonia. À sua cremação, compareceram uns poucos familiares, além dos quatro sinuqueiros. No total, quinze pessoas, número que não faz jus à fama de que, um dia, o ás das caçapas desfrutou. Conta-se que o Frita ficou mais de duas décadas sem perder – entre 1951 e 1974. Encantou gerações, virou assunto em todo o país e alcançou o status de mito numa época em que o termo ainda não havia se vulgarizado. Com o tempo, porém, o jogador caiu no esquecimento. Ultimamente, não era incomum alguém das antigas perguntar, espantado: “Mas o Frita está vivo?!”
Topei com ele pela primeira vez em 2013. O encontro se deu nas páginas de Malagueta, Perus e Bacanaço, o livro de contos que, em 1963, revelou o escritor João Antônio. Numa das histórias, os três malandros que dão nome à obra perambulam pela noite paulistana e, na esquina da Rua Santa Efigênia, avistam Carne Frita, o “professor de habilidades”. Semanas depois, lendo o romance Agosto, de Rubem Fonseca, esbarrei novamente com o sujeito, agora no Rio de Janeiro. Foi só aí que percebi. Carne Frita não era uma invenção de João Antônio. A fera existia de fato e até apareceu no filme O Jogo da Vida, dirigido por Maurice Capovilla. Com Lima Duarte e Gianfrancesco Guarnieri, o longa de 1977 é justamente uma adaptação de Malagueta, Perus e Bacanaço. Sem abrir a boca, o Frita estraçalha numa cena em que interpreta seu melhor personagem – ele mesmo, de taco em punho, humilhando elegantemente um adversário.
Havia qualquer coisa de hipnótico nos lugares que o craque frequentava. Em salões enfumaçados e pouco iluminados, batiam-se rivais com apelidos tão exóticos quanto o dele: Pinguim, Detefon, Caloi, Praça e Manoel das Couves. Isso sem falar do vocabulário empregado por esses hábeis cavalheiros, um léxico que Paulinho da Viola gostaria de eternizar. Após elogiar Carne Frita, o músico me confessou que acalenta o projeto de um glossário com termos da sinuca. “Baratinar” é enganar; “parceirinho” é o oponente; “a jogo” é jogar apostando; “leite de pato” é a partida sem aposta; “matar mais que o Frita” é encaçapar todas as bolas.
Em 2013, logo depois de a literatura me apresentar o jogador, iniciei uma busca de dois meses para escrever um perfil dele no Estadão. Sempre que alguém dizia que iria me levar até Carne Frita, o homem dava um jeito de não aparecer. Certa noite, seguindo uma indicação pouco confiável, finalmente consegui flagrá-lo num salão da Zona Leste de São Paulo. Paguei um cafezinho e puxei assunto. Ele se animou – procurava alguém para conversar – e começou a desfiar um punhado de queixas. Aquele foi o primeiro de uma série de encontros.
Rapidamente percebi que o Frita tinha sempre uma reclamação a fazer. Fulano o havia baratinado num jogo, beltrano lhe armara uma mutreta, e sicrano não passava de um pangaré. Seu principal lamento evocava uma misteriosa madrugada de 1974. Ao compositor Aldir Blanc, outro fã do Frita, chegou a história de que o jogador se metera com a mulher de um policial e acabou massacrado: “Batiam e gritavam que iam deixá-lo cego.” Já o sinuqueiro Bisteka, veterano ainda na ativa, ouviu que o craque teria zombado de um adversário após uma partida e levado uma tacada no olho. Walfrido Júnior, filho do Frita, afirma que tudo não passou de uma briga de vizinhos. A mim, uma das versões que o jogador contou foi que tomou um murro de soco inglês, porque estava “emprestando a geladeira para a mulher de um polícia”.
Dissimular é uma arte da sinuca, é fingir que não se joga nada para, no final, limpar os bolsos do parceirinho. O Frita dissimulava muito: tanto no jogo – quando topava com um pato que ainda não o conhecia – quanto na vida, como se alimentasse intencionalmente a própria mitologia. O fato é que alguma coisa aconteceu em 1974. Ele realmente feriu os olhos, embora não tenha ficado cego, como andou espalhando. A partir daí, amargou um longo declínio. “Naquela época, eu estava numa forma danada, só faltava fazer chover, mas depois…”, repetiu para mim inúmeras vezes.
O Frita nunca foi um matador. Avesso às firulas, não saía encaçapando bolas difíceis nem esbanjava jogadas de efeito. Competia para ganhar, não para se exibir, e preferia a defesa ao ataque. Posicionava a branca com tal maestria no pano verde que deixava os rivais sem ter o que fazer, sem conseguir se movimentar. Trancava o jogo, como reclamavam os oponentes. Só então é que deitava e rolava. Encaçapava uma atrás da outra, mas sempre com discrição. Era um sóbrio, e não apenas nos salões. Possivelmente, foi o único caso registrado de malandro que não bebia nem fumava.
De origem muito pobre, Carne Frita nasceu em 1929, na cidade sergipana de Propriá, às margens do Rio São Francisco, e recebeu o apelido ainda criança, quando um palhaço de rua lhe perguntou o nome. “É Walfrido”, respondeu o menino. “Como? Frido?”, brincou o palhaço. “Frido, Frito, Frita, Carne Frita! Você é o Carne Frita!”
Aos 20 anos, já exímio jogador (aprendeu as artimanhas do bilhar com um irmão), desembarcou no Rio e tratou de arranjar documentos novos: quando saiu de casa, não levou nada nem olhou para trás. Nunca mais viu a família. No Largo do Machado, num salão de sinuca que se localizava nos fundos de um restaurante, conheceu Lincoln, seu principal adversário durante as décadas de 1950 e 1960. “Dizem que o Lincoln ficou cinco anos preso. Mal saiu da cadeia, se bateu com o Frita por três dias: deu empate”, conta Rui Chapéu, outro jogador lendário.
Conversar com Carne Frita era voltar no tempo. De repente, ele se punha a falar da velha Lapa carioca, da travesti Madame Satã ou do Corinthians de 1950. Há quem jure que, em seus melhores anos, quando ninguém podia derrotá-lo, o cara só andava de terno de linho. Caso ganhasse uma partida em São Paulo, cidade que acabou adotando, botava a grana da aposta no bolso, parava um táxi na Avenida São João e mandava tocar para o Copacabana Palace, no Rio. Não é que gostasse de gastar, é que o dinheiro não importava. Nada importava, nem os quatro filhos, nem a mulher, nem os amigos, só havia o joguinho. A sinuca foi sua única paixão.
Quando penso no Frita que conheci, me lembro imediatamente de Filosofia, o samba de Noel Rosa: O mundo me condena/E ninguém tem pena/Falando sempre mal do meu nome. O Frita acreditava que sua vida tinha mudado depois da pancada que tomou. Mas essa não é a explicação para sua decadência. Lentamente, os salões de bilhar fecharam, as apostas minguaram, o joguinho perdeu adeptos. Assim, com o tempo, o Frita começou a achar que o mundo estava contra ele – e, de fato, o que se avizinhava no horizonte talvez estivesse.
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