Pistorius, que nasceu sem a fíbula e teve as duas pernas amputadas aos 11 meses de idade, disputa em Londres sua primeira Olimpíada: "Eu mesmo quero saber se tenho ou não uma vantagem." FOTO: HARRY BORDEN_CONTOUR BY GETTY IMAGES
O mutante
Oscar Pistorius, a primeira pessoa sem pernas biológicas a participar de uma prova olímpica de corrida
Michael Sokolove | Edição 71, Agosto 2012
Oscar Pistorius treina dentro de uma garagem convertida em ginásio na casa de seu personal trainer, um ex-jogador profissional de rúgbi. Barras de ferro e uma variedade de cordas e polias estão aparafusadas às paredes de tijolos. Os pesos alinham-se no chão, ao lado de caixas de madeira pregadas umas nas outras que servem de plataformas para os step-ups e saltos sem impulso. Alguns equipamentos estão presos numa parede externa da garagem, ao lado de um pátio descoberto; quando chove, os atletas, ensopados, não interrompem os treinos. “É a escola antiga”, explicou Pistorius enquanto seguíamos até o local, de madrugada. “Alguns dos caras que treinam aqui malham tanto que muitas vezes desabam no chão. Ninguém acha ruim.”
Estive com Pistorius em Pretória, África do Sul, onde ele nasceu há 25 anos sem a fíbula nas duas pernas (a fíbula, antigo perônio, é o osso situado entre o joelho e o tornozelo, ao lado da tíbia). Seus pais cederam às recomendações dos médicos de que suas pernas deveriam ser amputadas e, aos 11 meses, elas foram cortadas logo abaixo dos joelhos. Aos 13 meses, ele ganhou próteses. Aos 17 meses, já caminhava. Agora, está entre os melhores corredores do mundo dos 400 metros e será a primeira pessoa sem pernas biológicas intactas a participar de uma prova olímpica de corrida. Quando competir pela África do Sul também no revezamento de 4 por 400 – e Usain Bolt, o recordista mundial nos 100 e 200 metros, fizer o mesmo pela Jamaica, como se espera –, as finais dessa modalidade podem ser o momento mais impactante dos Jogos Olímpicos de Londres.
Pistorius é muitas vezes chamado de “Blade Runner” por causa das próteses de fibra de carbono em forma de “J” que usa nas competições. Também foi chamado de “o mais rápido homem sem pernas”. Os apelidos acentuam sua diferença, como se fosse importante separá-lo do resto dos atletas. Um artigo publicado pelo Instituto Berman de Bioética, da Universidade Johns Hopkins, especulou que Pistorius talvez seja um “pioneiro na fronteira do pós-humano”, seja qual for o significado disso.
As pernas artificiais com as quais Pistorius corre, chamadas Flex-Foot Cheetahs [literalmente, guepardos de pé flexível] e fabricadas por uma empresa islandesa, têm sido um ponto de discórdia, e ele precisou lutar contra tentativas de excluí-lo de competições. Mas existem amputados que correm com Cheetahs desde o final da década de 90. Nenhum deles se aproximou do seu melhor tempo, 45 segundos e sete décimos, nos 400 metros.
Na manhã em que o observei treinar na garagem, Pistorius usava as próteses tradicionais de plástico que imitam a forma e a aparência de pernas e pés biológicos, usadas por ele no dia a dia. Durante noventa minutos, ele fez uma série de abdominais e flexões na barra e no solo, enquanto segurava argolas presas às cordas. Parecia um ginasta. Os exercícios destinam-se a aumentar a força no tronco, o que é particularmente importante para um corredor que não tem músculos ou nervos na parte inferior das pernas e, portanto, deve obter todo o seu impulso acima dos joelhos. Ele executou uma série de saltos para uma plataforma a 60 centímetros do chão e comentei que estava impressionado – porém me arrependi imediatamente. “Isso não é alto para mim, posso pular muito mais”, rebateu.
Perto do fim do treino, Pistorius vestiu luvas de boxe e desfechou uma saraivada de socos em seu treinador, Jannie Brooks, que segurava um par de luvas acolchoadas na altura dos ombros. Ele parece perito nisso, o que faz sentido, pois o boxe é um dos muitos esportes em que competiu, ao lado de luta livre, polo aquático, rúgbi e motocross. Brooks contou-me que trabalha com Pistorius desde o ensino médio: “Quando ele apareceu aqui procurando treinamento, com um grupo de colegas, era apenas mais um da turma. Demorei seis meses para perceber que não tinha pernas.”
É incorreta a ideia de que Pistorius “migrou” de competições entre deficientes para o atletismo disputado por atletas de condições físicas normais. Foi somente em 2004, pouco antes de competir com outros amputados na Paraolimpíada de Atenas, que ouvira falar dessa versão dos Jogos. Tinha então 17 anos de idade.
Pistorius é o filho do meio de três irmãos. Ele se define como nascido de pais não particularmente abastados. Por descender de uma proeminente família sul-africana, porém, a sua percepção pode estar distorcida pelo fato de outros membros do clã dos Pistorius serem muito ricos. Suas raízes na África do Sul remontam a cinco gerações, até um antepassado que emigrou da Suíça. Sempre falou inglês em casa, mas conversa com seu treinador de longa data e com seu empresário em africâner, a língua dos colonizadores holandeses e do apartheid, extinto em 1994. O atleta também cumprimenta compatriotas negros com algumas frases de suas línguas nativas.
O conforto e a tranquilidade que Pistorius sentia na infância foram interrompidos por um trauma familiar. Seus pais se divorciaram quando ele tinha 6 anos de idade; aos 15 anos, sua mãe morreu em consequência de um choque anafilático pós-cirúrgico. Pistorius sênior é dono de uma mina de dolomita na província do Cabo Oriental e não mantém contato estreito com o filho atleta.
Há uma história que o atleta gosta de contar sobre a mãe, uma lembrança de infância que parece guiá-lo vida afora. Ele se preparava para brincar na rua com o irmão Carl quando a sra. Pistorius, uma orientadora escolar, dirigiu-se ao filho mais velho e disse: “Você, ponha os sapatos.” Depois se virou para o caçula: “E você, ponha suas pernas. E essa é a última vez que vou dizer isso.”
Muitos torcem pelo atleta, querem ver Oscar Pistorius triunfar sobre a deficiência. Outros veem uma vantagem injusta do sujeito sem pernas. Sua história levanta inúmeras questões filosóficas relativas à forma como chegamos a este mundo – o nosso caldeirão de vantagens e desvantagens que depende de onde nascemos e do conjunto de recursos físicos, mentais e emocionais de que somos dotados. De um lado, Pistorius é um grande perdedor desprovido de pernas funcionais desde o nascimento. Mas ele também nasceu num país de desigualdades abissais entre ricos e pobres, e, se tivesse nascido do lado errado do espectro social, jamais teria tido acesso aos recursos que prevaleceram sobre sua má sorte.
Pistorius é também abençoado por ter um temperamento incomum: uma necessidade impetuosa de enfrentar o mundo com velocidade máxima e cautela mínima. É a compleição de um atleta, de uma pessoa que acredita pertencer a algum tipo de realeza – um príncipe do mundo físico.
Sair com Pistorius pode ser divertido. Perguntei-lhe sobre a tatuagem em seu ombro esquerdo – um versículo da Bíblia, da Primeira Epístola aos Coríntios, que diz “corro, mas não sem rumo certo”. Ele contou que mandou fazê-la numa visita a Nova York. Estava hospedado em um hotel no SoHo e não conseguia dormir, então pegou o metrô para Uptown e simplesmente andou a esmo. “Entrei num estúdio de tatuagem que funciona a noite toda. Um porto-riquenho fez isso. Demorou das duas da manhã até perto das oito e meia. Acho que ele estava caindo de sono no final. Por isso a tatuagem é um pouco ondulada na parte inferior. Mas eu gosto assim. Para mim, isso faz com que pareça mais autêntica.”
Quatro anos atrás, quando espatifou o barco que pilotava contra um píer submerso, num rio ao sul de Joanesburgo, Pistorius teve a órbita ocular danificada e duas costelas e a mandíbula quebradas. Levou 172 pontos no rosto. Mais recentemente, ao andar de bicicleta no meio de um capinzal, bateu numa cerca e, ao tentar levantar, viu uma de suas próteses pendendo do arame farpado – uma visão indesejável, mas certamente menos terrível do que se tivesse acontecido com uma perna biológica.
Quem convive com Pistorius se preocupa com os riscos que ele corre a toda hora, mas não pode fazer muita coisa. Seu empresário, Peet van Zyl, parece resignado. “É a natureza do cara”, disse. “Pelo menos conseguimos afastá-lo da moto.”
Além da deficiência física, Pistorius se diferencia de seus colegas em outro aspecto. Muitos dos atletas de seu nível acumulam energia com um único foco. Eles treinam, comem e dormem – alguns deles até doze horas por dia, somando-se as longas sestas. Em consequência, tornam-se pessoas sem graça. Ou talvez seja o contrário: são capazes de manter um foco tão estreito porque sempre foram chatos.
O espírito e o corpo de Pistorius não descansam com facilidade. Houve época em que ele mesmo tirou o aparelho de televisão do quarto para não ficar acordado até de madrugada assistindo a um filme atrás do outro. Programou seu telefone para que não pudesse enviar mensagens à noite. Foi inútil: passou a ler até altas horas. “Deito por volta das oito horas e não saio da cama antes das sete da manhã. Mas só durmo metade desse tempo.”
Pistorius envolveu-se em diversos negócios na África do Sul, boa parte deles tendendo para o exótico. É dono de seis cavalos de corrida puro-sangue. Foi sócio de uma empresa que conserta Ferraris. Comprou dois tigres brancos africanos, deixou-os em uma reserva de caça e depois os vendeu para um zoológico no Canadá, quando pesavam cerca de 180 quilos e ele não se sentia mais à vontade ao visitá-los: “Eram realmente lindos, mas começaram a ficar grandes demais para mim.” O atleta fatura mais de 1 milhão de dólares por ano em contratos de publicidade e bônus por participação em competições.
Em um dos dias que passamos juntos, ele treinou de manhã, posou para fotos e ainda precisava completar a segunda de suas duas sessões diárias de treinamento, na pista da Universidade de Pretória, onde tenta concluir sua graduação. Estava cansado e irritadiço. Sugeriu que voltássemos de carro para sua casa e almoçássemos; depois, ele planejava assistir tevê e cochilar um pouco no sofá. Na primeira vez que andei no Nissan GT-R dirigido por ele, espiei o velocímetro e vi o marcador chegar a 250 quilômetros por hora. Seu empresário chama o bólido de “monstro branco”, e há quem se aproxime dele apenas para ouvir o motor ronronando em ponto morto.
“Como é este carro na chuva?”, perguntei. Havia poças de água nas estradas e eu temia que ele pudesse perder a direção. “É bom”, respondeu, enquanto acelerava e meu pescoço batia contra o encosto de cabeça. “É um carro muito pesado, o que ajuda, embora os pneus talvez não sejam os melhores para essas condições.”
Chegamos à sua casa de estilo mediterrâneo encravada numa encosta de montanha, dentro de um condomínio fechado. Fomos recepcionados por seus três cachorros – um bull terrier inglês, um pit bull americano muito dócil e um mestiço de dachshund. A casa é ampla, com uma sala de jantar grande o suficiente para caber uma mesa que acomoda dezesseis pessoas. As estantes de livros da sala contêm principalmente biografias – Mandela, Marley, Dylan, Beckham, Salvador Dalí, Steve Jobs –, um relato do escândalo do financista americano Bernie Madoff e numerosos volumes sobre rúgbi e corridas de automóveis.
Pistorius mora com um engenheiro lutador de MMA nas horas vagas, seu colega de faculdade. Rompeu recentemente um relacionamento com a namorada de longa data, mas outra jovem já estava à sua espera na casa. Enquanto preparava o almoço para todos os presentes – vitamina de frutas, filés de frango empanados que tirou do refrigerador –, Pistorius mencionou que o alarme de segurança da casa havia disparado na noite anterior, ele pegara sua arma e descera a escada pé ante pé. Não era nada.
Perguntei que tipo de arma ele tinha, o que foi tomado como sinal de que eu me interessava por armas de fogo. Quando soube que eu jamais tive uma, quis saber: “Mas você já atirou alguma vez na vida, certo?” Na verdade, eu nunca atirara. “Então temos de ir ao estande”, decidiu, pegando a pistola de 9 milímetros e duas caixas de munição. Voltamos para o carro e fomos para um campo de tiro nas proximidades, onde ele me instruiu sobre a melhor técnica. Pistorius é um bom treinador. Alguns tiros meus chegaram perto do centro do alvo, o que o deixou encantado. “Se você treinasse mais, acho que poderia se tornar bastante letal”, concluiu. Perguntei com que frequência ele vinha ao estande de tiro. “Só quando não consigo dormir.”
“Sabemos que Oscar é um mutante”, disse-me Hugh Herr, diretor do grupo de biomecatrônica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, quando o visitei em Cambridge, perto de Boston, há pouco tempo. “Ele é uma aberração, uma aberração absoluta.”
O uso de palavras como “mutante” e “aberração” em relação a um homem que nasceu com deficiências deixou-me momentaneamente chocado. Mas o que Herr queria dizer é que Pistorius é como todos os outros atletas extraordinários – como um Michael Phelps, um Carl Lewis ou um LeBron James – e, portanto, possui dotes físicos que não são normalmente encontrados na população em geral.
Herr, de 47 anos, tem sido um aliado importante para Pistorius. Ele vem de uma família menonita de Lancaster, Pensilvânia, “uma família um tanto aventureira”, nas suas palavras, que empreendia viagens de carro que duravam meses. Aos 8 anos, ele já havia escalado um pico de mais de 3 mil metros nas Montanhas Rochosas canadenses. Aos 17, ele e um amigo foram surpreendidos por uma nevasca quando escalavam uma ravina gelada em New Hampshire e passaram três dias em temperaturas abaixo de zero. Suas pernas congeladas foram amputadas abaixo do joelho. “Se não fosse pelo que aconteceu, eu não estaria fazendo isso”, disse ele. “Eu não tinha inclinações acadêmicas. Meu único objetivo era ser o melhor alpinista do mundo.”
Em 2008, a Associação Internacional das Federações de Atletismo, a IAAF, organismo mundial máximo na área do atletismo, considerou as lâminas Cheetah de Pistorius uma vantagem extra e proibiu-o de competir contra corredores sem deficiência. Herr fez parte de uma equipe de pesquisadores reunidos pelos advogados de Pistorius que contestou a IAAF depois de submeter o corredor a uma semana de testes na Universidade Rice, em Houston, Texas. Ele foi testemunha na apelação de Pistorius ao Tribunal Arbitral do Esporte, em Lausanne, na Suíça, que votou pela revogação da decisão da IAAF.
Herr não é necessariamente o defensor ideal para Pistorius. O futuro biônico que ele imagina – seres humanos incrementados, guiados por microchips internos, movidos por bateria – é exatamente para onde o movimento olímpico não quer ir. Ele me mostrou seu laboratório, “nosso cemitério de peças”, como diz. O local parecia um desmanche de automóveis, exceto que os componentes eram tornozelos, joelhos e quadris artificiais. Era uma coisa futurista – articulações com motores em miniatura e microprocessadores. Seus inventos mais promissores, uma vez saídos de fábrica, vão para os soldados americanos que retornam mutilados do Afeganistão e do Iraque. “Uma grande parte do meu trabalho aqui no MIT é tentativa de aprimorar o funcionamento do corpo humano para além do que a natureza pretendeu”, disse ele.
Do seu posto na vanguarda do design de próteses, no entanto, Herr está em condições de afirmar com autoridade que Pistorius está correndo com material antigo – equipamentos de baixa tecnologia que já estão no mercado há duas décadas. As Cheetahs têm aparência diferente das pernas protéticas “normais”, mas cabe perguntar se a melhor coisa para um amputado correr deveria ser mesmo algo que se parece com uma perna humana desprovida de músculos, tendões, ligamentos ou nervos.
“As próteses de Oscar são burras”, explica Herr. “Não têm comando neural. Não têm feedback. Suas pernas não são biônicas, longe disso. Eu defino biônico como algo que começa a imitar uma função fisiológica.” Para Herr, correr com Cheetahs “é como correr sobre um colchão. É difícil. Não é uma vantagem”.
Perguntei então como Pistorius conseguiu chegar aos mais altos níveis da competição atlética internacional e à Olimpíada de Londres. É uma vantagem, quando comparado com outros amputados, o fato de usar próteses desde bebê? É possível que ele tenha estabelecido novas conexões neurais, uma linha de comunicação do seu cérebro que lhe dá controle avançado sobre suas próteses de fibra de carbono, quase como se estivessem ligadas naturalmente ao seu corpo de carne e osso?
Herr respondeu com cautela. “Não foram estudados os efeitos da idade da amputação no que diz respeito ao desempenho atlético. Como suas pernas foram amputadas em idade muito tenra, é óbvio que ele teve muito tempo para otimizar a sua fisiologia. Assim, por hipótese, ele leva claramente uma vantagem sobre o conjunto de amputados.”
Para entender a determinação de Pistorius de concorrer com adversários não deficientes – por que ele foi banido e por que a sanção foi revogada –, é preciso conhecer um pouco da mecânica da corrida. Os pés de um velocista permanecem em contato com a pista por apenas um décimo de segundo, ou menos, de cada vez. Uma vez estabelecido o ritmo do movimento, o atleta quase voa em vez de correr. O fator mais decisivo da corrida, porém, não é a rapidez com que ele move as pernas, e sim a força, em relação ao peso corporal, que gera na pista. Os corredores mais rápidos do mundo são os que pisam no solo com maior força.
Pistorius não pode endurecer suas lâminas Cheetah instantes antes do contato, como um corredor normal pode fazer com os músculos de suas pernas. Por serem mais flexíveis, as lâminas permanecem por mais tempo em contato com a pista. Para compensar, Pistorius reposiciona seus membros num ritmo mais rápido do que a maioria dos velocistas de elite. “Seu quadril é um motor colossal, colossal”, explicou Herr quando indagado por que Pistorius é capaz de ser tão veloz.
Depois de ganhar uma medalha de ouro na Paraolimpíada de 2004, na categoria T44, que inclui atletas de uma só perna amputada abaixo do joelho, Pistorius participou de competições internas na África do Sul contra corredores de condições físicas normais. Seus resultados lhe renderam convites para as competições mais importantes da Europa, e a porteira parecia aberta.
Em 2007, contudo, a IAAF instituiu uma regra referente à tecnologia de sapatilhas de corrida dotada de “molas”. O alvo específico da medida não era Pistorius, mas a regulamentação abriu o caminho para que a entidade se debruçasse sobre o caso do deficiente já então célebre em todo o mundo. A IAAF filmara uma corrida de Pistorius e pediu aos conselheiros científicos que analisassem as imagens. Várias semanas depois, o atleta sul-africano foi submetido a testes realizados por um pesquisador escolhido pela IAAF na Universidade Alemã do Esporte, em Colônia. A organização declarou-o então inelegível com base na constatação de que sua locomoção “aos saltos” era uma vantagem e que ele precisava de menos oxigênio e menos calorias do que os corredores normais em velocidade igual.
Pelas normas internacionais, um atleta é considerado elegível para competir a menos que se apresente uma boa razão em contrário – algo semelhante à presunção de inocência de um réu. Assim, não recaía sobre Pistorius o ônus de provar que não era favorecido pela prótese, dado que o outro lado não havia provado que ele era.
Em seu recurso ao Tribunal Arbitral, Pistorius foi representado por Jeffrey Kessler, um advogado de Manhattan especializado em defender jogadores das ligas de futebol (NFL) e basquete (NBA) dos Estados Unidos em suas disputas trabalhistas. Kessler demoliu os argumentos da IAAF com facilidade. “Era muita bobagem junta”, disse Herr. Outro membro da equipe que testou Pistorius em Houston, Peter Weyand, professor de fisiologia e biomecânica aplicada na Southern Methodist University, vê as coisas de forma diferente. “Eles montaram o processo científico errado”, assegura ele.
Em veredicto unânime, os três árbitros concluíram que os dados de Pistorius obtidos pela Universidade Rice mostravam que ele utilizou “a mesma quantidade de oxigênio” e “cansou normalmente”. Eles criticaram a IAAF por procurar possíveis vantagens isoladas que Pistorius obteria com suas próteses e simultaneamente ignorar suas desvantagens. Como, por exemplo, ser mais lento na largada pela ausência de explosão nos movimentos de partida. O critério para definir a elegibilidade do atleta, dizia o relatório, deveria ser apenas um: Pistorius leva uma “vantagem líquida total” durante uma prova inteira? Sobre a questão de saber se as lâminas Cheetah devem ou não ser consideradas molas, os árbitros escreveram: “Uma perna humana natural é em si mesma uma mola.” A crítica mais contundente acabou recaindo sobre o próprio processo da IAAF, que teria saído “fora dos trilhos” e beirava uma farsa judicial.
A decisão poderia ter silenciado de forma mais definitiva a polêmica em torno de Pistorius se não tivesse ocorrido uma fissura em sua equipe de cientistas, com Herr e Weyand em lados opostos. Ambos haviam concordado em estudar o caso do sul-africano com o entendimento de que poderiam publicar suas descobertas em revistas acadêmicas, independentemente dos resultados. O trabalho publicado em setembro de 2009 no Journal of Applied Physiology, com o título de “O corredor mais rápido com pernas artificiais: membros diferentes, função similar?”, concluía que Pistorius era “semelhante fisiologicamente aos corredores com membros intactos, mas diferente do ponto de vista mecânico”.
Essa segunda conclusão – de que uma pessoa com as pernas protéticas correria de forma diferente da de alguém com pernas normais – não parece muito surpreendente. Mas o artigo silenciava sobre as implicações maiores dessa dissimilaridade, pois Herr e Weyand só puderam publicar juntos porque deixaram algumas coisas de fora.
Desde que o artigo inicial foi publicado, Weyand tem afirmado que Pistorius está em vantagem, e considerável. As razões que ele invoca não faziam parte da argumentação por trás da desclassificação de Pistorius pela IAAF – na verdade, não estavam entre as “acusações” contra ele – e por isso a equipe jurídica e científica de Pistorius não teve de desmenti-las em sua apelação. A base do argumento apresentado pelo professor é de compreensão fácil: a lâmina Cheetah e seu hardware são leves, pesando cerca 2 quilos e meio, ao passo que o peso de uma perna e pé intactos, para alguém com a compleição de Pistorius, é de quase 6 quilos. Em consequência, seus “tempos de balanço” – a rapidez com que pode reposicionar os membros – são anormalmente rápidos, “literalmente fora das tabelas biológicas”, como Weyand afirmou em um debate por escrito com Herr publicado no Journal of Applied Physiology.
Weyand e seu colega Matthew Bundle, da Universidade de Montana (um dos sete autores listados no artigo inicial da revista), aprofundaram essa argumentação no último ano: “Oscar Pistorius pode reposicionar seus membros artificiais leves em 0,28 segundos e, portanto, 20% mais rápido do que a maioria dos atletas com membros intactos. Para avaliar o quão artificial é o tempo de balanço do sr. Pistorius, basta lembrar que o tempo médio de reposicionamento de membro de cinco ex-recordistas mundiais dos 100 metros (Ben Johnson, Carl Lewis, Maurice Greene, Tim Montgomery e Justin Gatlin) é de 0,34 segundos. Os tempos de reposicionamento de membro de Oscar Pistorius são 15,7% mais curtos do que os de cinco dos velocistas mais rápidos do sexo masculino da história humana.”
O aspecto mais provocante da argumentação de Weyand e Bundle – e claramente a afronta maior a Pistorius – é o cálculo de que as lâminas Cheetah, numa corrida de 400 metros, equivalente a uma volta olímpica, lhe dão uma vantagem de 11 segundos e 9 décimos. Sem isso, ele não passaria de um atleta de desempenho médio. Herr desconsiderou esse cálculo dizendo que era “impreciso e aproximado” e, em sua contribuição para o debate assinada por quatro outros autores do artigo inicial, perguntou: “Será que Weyand e Bundle seriam capazes de prever que Michael Johnson, o detentor do recorde mundial, faria o tempo de 31 segundos se tivesse as duas pernas amputadas?”
Perguntei a Weyand se ele realmente quis dizer que Pistorius, sem o auxílio da prótese, correria os 400 metros em não menos de 57 segundos – em outras palavras, uma nulidade em qualquer disputa de nível internacional de atletas em condições físicas normais. “A resposta curta é sim”, disse ele. “Esta é a verdade científica tal como a vejo.”
Os cálculos de Weyand, porém, parecem construir um atleta imaginário – um Pistorius igual ao que existe, mas com pernas biológicas. Perguntei-lhe como isso era possível. “É uma pergunta pertinente. Muitos dizem que isso não pode ser feito, porque o Oscar saudável e intacto não existe. Mas temos bases de dados grandes, dados históricos suficientes sobre outros velocistas, para dizer que, se ele tivesse pernas intactas, não as poderia balançar de forma tão rápida.”
Herr e Weyand, que se conhecem há décadas, discordam em torno de questões técnicas importantes. Por exemplo, Herr mediu os tempos de balanço do velocista norte-americano Walter Dix, medalhista de bronze nos Jogos de Pequim, e concluiu que eram tão rápidos quanto os de Pistorius – uma resposta à afirmação de que Pistorius está fora das tabelas biológicas. Weyand contra-argumenta dizendo que outros cálculos, baseados em imagens de alta velocidade superior às de 2008 e qualidade mais adequada a estudos especializados, põem Dix numa escala normal.
Mas é em torno de conceitos mais genéricos a respeito do ser humano que Herr e Weyand diferem mais. Herr tende a ver Pistorius dentro de um contexto cultural mais amplo. “Em nossa sociedade, aprendemos a construir um sentido muito restrito de beleza e força física”, disse-me ele quando o visitei no MIT. “Uma mulher deve ser moldada de uma maneira determinada. As pessoas inteligentes têm uma determinada aparência. Quando vemos Pistorius derrotar uma forma atlética perfeita, o nosso cérebro tende a se confundir de imediato. ‘Ele não pode ser um grande atleta’, pensamos. ‘A vantagem só pode estar nas pernas artificiais.’”
Herr afirma entender que as regras do esporte exigem o policiamento da tecnologia, mas não se entusiasma por limites nessa área. “Chegaremos a um ponto neste século em que os tempos de corrida e as alturas de salto alcançados em Paraolimpíadas serão superiores aos das Olimpíadas”, acredita ele. “As Paraolimpíadas não farão restrições ao desenvolvimento tecnológico. Então, o que vai acontecer é que elas serão um esporte homem-máquina, emocionante como uma corrida de automóveis. Isso fará com que os corpos humanos normais pareçam muito chatos.”
A primeira vez que estive com Pistorius foi na Cidade do Cabo, a duas horas de avião de sua casa. Ele iria participar da reunião anual da Beyond Sport, uma ONG que trabalha com crianças carentes. Estava no saguão do hotel há mais de uma hora, aguardando a equipe de segurança do ônibus, que se perdera. Por ter convivido com atletas de elite dos Estados Unidos, imaginei que Pistorius fosse explodir. Permaneceu imperturbável. “Seria ótimo”, agradeceu quando alguém se ofereceu para trazer uma garrafa de água.
Chegamos a Khayelitsha, na periferia da Cidade Baixa – um labirinto de barracos de lata, com estruturas caindo aos pedaços, que abriga cerca de meio milhão de pessoas. Pistorius entrou num campo de grama artificial recém-construído, deu entrevistas para a imprensa local e foi bater bola com a garotada do bairro. Tanto na ida como na volta, tirou fotos pela janela do ônibus. “Não dá para fingir que isso não existe”, disse, quando notou que eu o observava.
No dia seguinte, assisti ao treino de Pistorius na pista da Universidade de Pretória, onde ele se exercita há vários anos ao lado de Young Talkmore Nyongani, atleta do Zimbábue que já disputou os 400 metros em duas Olimpíadas. Ambos são treinados pelo veterano Ampie Louw, que há quatro décadas atua como técnico tanto de atletas fisicamente intactos como de deficientes. “Gosto dos amputados”, disse-me ele. “É um treinamento mais técnico. Ao final, porém, a corrida é a mesma. É bobagem acreditar que Oscar leva vantagem – e a batalha de três meses apenas para aprender a dar a largada?”
As lâminas Cheetah são feitas somente para correr. Elas não têm nenhuma outra serventia. A primeira coisa que se percebe quando Pistorius as usa é que seu equilíbrio não é bom: ele oscila quando tenta ficar parado e procura um lugar para sentar, como alguém com patins de gelo que acaba de sair do rinque. A pista de corrida é uma oval; não é difícil entender por que Pistorius tem mais facilidade nas retas do que nas curvas.
Enquanto eu conversava com Louw, Pistorius fazia uma série de nove tiros de 300 metros, correndo ao lado de Nyongani. “Observe-o bem”, disse Louw. “Você talvez não veja isso de novo, um amputado correndo tão rápido.” Perguntei por que, na opinião dele, Pistorius era tão veloz. “Ele é capaz de mover as pernas com rapidez. Se você é capaz de fazer isso, pode correr rápido. É só isso, mas não é simples explicar a razão. Por que Usain Bolt é veloz enquanto alguns outros caras com as mesmas qualidades físicas não são tão velozes?”
A África do Sul tem um grupo forte que disputa os 400 metros e Pistorius teve de se sair melhor do que todos para poder disputar o Campeonato Mundial de Atletismo de 2011, quando competiu na prova individual e ainda integrou a equipe de revezamento 4 por 400. Para 2012, ele poderia ter-se contentado com o revezamento, e esquecido a prova individual, mas esse caminho não estava em seus planos. “Eu só penso nisso”, disse quando saímos do treinamento naquela tarde.
As questões científicas e culturais que envolvem Pistorius não têm resposta fácil. Uma maneira de fazer o esporte parecer justo é que todos os concorrentes sejam iguais, o que certamente o desqualifica. Outra é evitar que “incrementos” se infiltrem na santidade do esporte. Mas os limites nessa frente são imprecisos ao extremo.
Lionel Messi, por exemplo, o maior jogador do esporte mais popular do mundo, era um menino promissor na Argentina, mas muito baixo. Aos 13 anos, mudou-se para a Espanha e entrou para as categorias de base do Barcelona, que pagou por tratamentos para combater sua deficiência de hormônio de crescimento. Sem esse incremento físico, Messi poderia ter permanecido sendo apenas o terror das peladas de fim de semana. Em vez disso, tornou-se o melhor jogador de futebol da atualidade.
Herr diz que o que vai tornar o esporte mais justo é “mais tecnologia, e não menos”. Mas isso não resolve a questão de Pistorius, porque é improvável que alguém se disponha a trocar suas pernas biológicas por artificiais.
Pistorius refere-se a si mesmo como “um esportista”. Uma tarde, quando estávamos sentados em sua sala, ele falou a respeito do processo sobre sua elegibilidade em termos de autodescoberta: sua presença na pista seria justa para os concorrentes? “Meu objetivo não era poder dizer a todos: ‘Vejam, eu não levo vantagem alguma.’ Eu mesmo quero saber se tenho ou não uma vantagem. Porque eu não quero competir em um esporte em que eu sinto que não estou aqui por meu talento e meu trabalho, mas por causa de um equipamento.”
Pistorius faz questão de enfatizar que sente orgulho de participar de competições paraolímpicas. Mas acredita que o argumento mais forte a favor de sua presença em disputas com atletas normais é sua incontestável superioridade em relação aos deficientes que correm com as mesmas próteses Cheetah. “E não são os caras catados ao acaso na rua, que um dia receberam pernas protéticas para correr”, disse ele. “Alguns já foram atletas antes de se tornarem deficientes, e outros cresceram no movimento paraolímpico. São caras que frequentam o ginásio e vão para as pistas tanto quanto eu. São atletas aplicados, mas você não os vê fazerem nem remotamente os mesmos tempos que eu.”
Fiquei um pouco surpreso ao saber que suas ambições para 2012 não eram muito grandes: chegar à final na prova dos 400 metros. No último mundial ele não passara das semifinais. “Posso ter meus objetivos, e posso ter meus sonhos”, explicou ele, com os três cães embolados a seus pés. “Meu objetivo é fazer as finais e melhorar minha posição. Eu quero correr todas as corridas de forma decente. Não posso sair e fazer o tempo de 44 segundos só porque eu disse que quero fazer isso nesse dia. Isso nunca vai acontecer.”
O que provavelmente é verdade. Mas é também surpreendente ouvir essa declaração de alguém de temperamento resoluto como Pistorius. Se cumprir seu objetivo declarado, sua vida boa só ficará melhor. Se ele puder de alguma forma realizar um milagre e subir ao pódio, a controvérsia pode não ter fim.
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