Andrés Sandoval_2018
O ogro
Um crítico com apetite para a briga
Daniel Salles | Edição 141, Junho 2018
Em setembro do ano passado, o crítico gastronômico Julio Bernardo, mais conhecido pelas iniciais JB, visitou o Fôrno, nova lanchonete descolada no Centro de São Paulo. A primeira impressão do drinque que escolheu foi boa – e fugaz. “Embora o primeiro gole do NY sour até tenha descido bem, o gelo de máquina de segunda categoria causou um efeito Cristo bizarro, transformando vinho em água a toque de mágica”, ele registrou no dia seguinte em seu site, o Edifício Tristeza. O prato que pediu – uma carne cruda, versão italiana do steak tartare – não melhorou muito o conceito do estabelecimento. A carne pareceu-lhe cortada de maneira grosseira, excessivamente temperada “e servida em temperatura que remeteu a contaminação cruzada”. O título do texto foi “Pague para comer, reze para sair”.
JB é um homem de 44 anos e 130 quilos, calvo e com a barba longa e desgrenhada. Nos quase onze anos em que vem escrevendo sobre comida na internet, construiu a fama de crítico ácido e temido pelos donos de restaurante. Mas ele não se considera um representante puro-sangue do ofício, embora não se incomode de ser associado a ele. “Um crítico precisa ir aos mesmos endereços pelo menos de seis em seis meses”, afirmou, com a voz fina e a língua presa que conferem um tempero improvável à sua reputação ferina. “Sou mais um cronista.”
Numa tarde recente, a piauí foi almoçar com JB no Futuro Refeitório, restaurante que abriu as portas no início do ano num antigo estacionamento no bairro paulistano de Pinheiros. O crítico pediu uma água com gás e pôs-se a analisar o cardápio. Decidiu comer o sanduíche de contrafilé com aïoli, chimichurri, rúcula e cebola. Para acompanhar, salada de broto de feijão, cenoura, amendoim, pepino, coentro, hortelã e molho de peixe. O pedido chegou sem demora. “O pão é de qualidade, quentinho”, elogiou, afofando o sanduíche com os dedos.
Aquela era sua terceira visita ao estabelecimento, especializado em vegetais. O lugar agradara ao crítico turrão. “É uma proposta informal num espaço muito grande, que vai na contramão dos restaurantes que têm sido abertos na cidade”, disse. E tratou de esclarecer a quem pudesse estranhar um elogio vindo dele. “Tem gente que acha que saio de casa para falar mal, mas o que quero é comer e beber bem. O texto é consequência da visita.”
Paulistano crescido na Lapa, Julio Bernardo despontou como crítico em 2007, quando pôs no ar o Boteco do JB, blog em que registrava suas andanças gastronômicas. Filho de um casal de feirantes, estudou até a 7ª série e largou a escola para tocar a barraca do pai. Foi camelô, DJ, teve um entreposto frigorífico e foi um dos donos do extinto restaurante Sinhá, em Pinheiros, em cuja cozinha dava expediente. É com o dinheiro da venda do negócio e de um apartamento, além do que recebe por consultorias para bares como o Fel, que ele diz se manter hoje em dia (a maioria das contas de bares e restaurantes resenhados é paga do próprio bolso, embora ele não recuse cortesias).
O crítico não demorou a ficar conhecido pelas bordoadas que distribuía para todo lado. É difícil não cair na gargalhada com as hipérboles a que JB recorre sem moderação. Quando visitou a filial paulistana do restaurante do chef inglês Jamie Oliver, destacou o escarcéu do ambiente. “A acústica do salão enorme me fez sentir no banheiro da rodoviária do Jabaquara”, comparou.
O Boteco, atualizado até dezembro de 2015 e substituído pelo site atual dois meses depois, chegou a registrar 200 mil acessos por mês. O sucesso rendeu ao autor o convite para protagonizar uma série de vídeos do UOL. Os mais populares foram aqueles que registram sua ida aos restaurantes dos jurados do programa MasterChef. O caldo engrossou após a visita ao Sal Gastronomia, de Henrique Fogaça. A chamada para o vídeo destacou uma declaração do chef: “Faço merchan, mas margarina não entra na minha cozinha.” Fogaça se enfureceu. “Mandou uma porção de mensagens de áudio pelo Facebook, xingou até a minha oitava geração”, disse JB. “Perdeu contratinho, né?”
As inimizades do blogueiro cresceram como fermento. Um dos membros mais recentes do clube é o empresário José Victor Oliva, um homem calvo de rosto redondo que JB descreveu como um “emoji ambulante”. O pivô da celeuma foi o Mirante 9 de Julho, espaço cultural que no início do ano passou a ser administrado por Oliva. Ali funcionava uma cafeteria que o crítico reputava “de alto nível”, substituída por uma unidade de uma rede de cafés que ele considera ultrapassada. “Oliva é o Romero Britto da gastronomia”, alfinetou.
Não é raro deparar com o crítico comendo ou bebendo sozinho, em geral à noite e nas imediações do apartamento onde mora, na Praça da República, e que divide com Shoyu, seu pug preto. Mas não lhe faltam amigos, inclusive do meio gastronômico. É o caso do chef Jefferson Rueda, dono do bar Casa do Porco, para o qual JB é só elogios, e do sushiman Tsuyoshi Murakami, ex-mandachuva do Kinoshita, no qual ele sempre desceu a lenha.
Enquanto bebia um café coado no restaurante aonde levou a piauí, JB contou que jamais algum chef veio tirar satisfações com ele em razão de seus textos. “O máximo foi um aperto de mão forte do Alex Atala quando fui ao D.O.M.” Uma de suas ressalvas à casa – única a ostentar duas estrelas Michelin no Brasil – se refere ao almoço executivo. “Dos piores da cidade”, disse o crítico. “Por quase 100 reais, vem com arroz, feijão e outros acompanhamentos e uma opção de proteína animal: escalope, Saint Peter e peito de frango. Prefiro comer plástico.”
Mas JB é eclético no espectro de restaurantes que critica. Em fevereiro deste ano, avaliou uma franquia do McDonald’s. “A carne do burger é indescritível de tão ruim”, escreveu. “Nunca comi sola de sapato, nem bosta de vaca. Mas acho que, se prensar essas duas coisas, congelar e torrar na chapa, o resultado deve ser parecido.” Registrou também uma cena que presenciou. “Uma das funcionárias jogou na fritadeira três pedaços de batata que caíram no chão. Será que é por isso que a chamam de rústica?”
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