Falso Vermeer: Menina risonha, pintada por Han van Meegeren ou Theo van Wijngaarden CRÉDITO: MENINA RISONHA_C.1925 (IMITADOR ANÔNIMO)_GL ARCHIVE_ALAMY_FOTOARENA
O país das falsificações
O Brasil ainda engatinha na captura de obras de arte fraudadas
Allan de Abreu | Edição 194, Novembro 2022
Quando o marchand e antiquário Clever Roberto Casado desliza uma falsa parede de sua loja em Bálsamo, no interior de São Paulo, o visitante logo depara com um autorretrato de Candido Portinari em tons frios, entre o cinza e o azul, datado de 1939. “Havia outras obras dele nessa parede, mas foram todas vendidas”, diz Casado. Em outra parte do Espaço Clever Casado, à direita, estão três quadros de Tarsila do Amaral, incluindo a famosa tela Manacá, de 1927. Seguindo por um corredor à esquerda, chega-se a um cômodo inteiramente dedicado a José Antônio da Silva, um dos maiores pintores primitivistas do Brasil, com 56 quadros.
Em toda a loja há cerca de duzentas telas de pintores brasileiros renomados. Roberto Casado, um homem alto de 57 anos, cabelos grisalhos curtos e olhos miúdos, tem os valores na ponta da língua: os quadros de Silva variam entre 5 mil e 20 mil reais; os de Tarsila, entre 150 mil e 850 mil; e o autorretrato de Portinari, joia da coroa, custa 1,5 milhão de reais. Ele não permite que as telas sejam fotografadas nem as exibe na internet, como fazem as galerias com seus artistas. Curiosamente, também não se preocupa com a segurança das obras (há apenas uma câmera de vídeo vigiando a entrada da loja) nem com a correta climatização exigida para preservá-las (o local é abafado e quase todas as paredes exibem sinais de infiltrações). Por que ele mantém obras tão valiosas em situação tão precária?
A falta de zelo tem uma explicação simples: boa parte dos quadros que Casado vende a peso de ouro são falsificações, entre eles o de Portinari. “O retratado nem tem a aparência do artista”, diz Noélia Coutinho, organizadora do acervo do Projeto Portinari, ao ver uma foto do quadro obtida pela piauí. O Manacá de Tarsila também é uma cópia grosseira: o número de caules na parte inferior da tela é muito menor do que no quadro original, e as formas circulares azuladas ao fundo foram pintadas de uma maneira incompatível com o estilo da artista. A verdadeira Manacá está em outro lugar, bem guardada por um colecionador paulistano.
No caso de José Antônio da Silva (1909-96), algumas telas vendidas por Casado reúnem, sem nenhum critério, características e temas extraídos das obras autênticas, avalia o crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, especialista na obra do pintor, ao analisar as fotos dos quadros. Um deles exibe até mesmo uma arara-vermelha que Silva, segundo o crítico, “jamais conseguiria desenhar”.
A galeria de Casado, farmacêutico de formação, é uma das atrações do complexo turístico criado por ele em 1999, em uma chácara de sua família, às margens da Rodovia Euclides da Cunha (SP-320), que vai de São José do Rio Preto, cidade vizinha a Bálsamo, até a divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul. Em 48 mil m2, ele construiu, em estilo rústico, um antiquário repleto de móveis de época e lustres antigos, uma galeria de arte e um restaurante. A maioria das pessoas que visita o local é dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.
Casado diz que vende muitas telas de José Antônio da Silva, pintor e lavrador que viveu por décadas em São José do Rio Preto, onde há um museu de arte primitivista com parte de sua obra (a crítica tem preferido se referir a esse estilo como “arte espontânea”, por julgar a expressão menos preconceituosa). No fim de 2021, Casado negociou trinta quadros de Silva com o empresário e prefeito de Olímpia, Fernando Augusto Cunha, por valor não revelado. Dessas obras, 25 foram cedidas para uma exposição em um centro cultural de Olímpia, ocorrida entre fevereiro e maio deste ano. Para o crítico Tavares de Araújo, as 25 telas também não são autênticas. “Os quadros em que aparecem figuras humanas, em especial os rostos, são, até tecnicamente, péssimas falsificações. Tentam ser mais realistas do que o Silva era capaz de fazer”, diz. “Em vários quadros é possível reconhecer e identificar de que trabalho original foram tirados certos detalhes. E há umas duas ou três quase cópias.” A opinião foi compartilhada por outros dois especialistas na obra do pintor ouvidos pela piauí, que preferiram o anonimato para não se indispor com Cunha, dono dos quadros.
A assessoria do prefeito de Olímpia diz ter contratado o escritor e jornalista Romildo Sant’Anna, que estudou a obra de Silva, para avalizar a autenticidade das telas vendidas por Casado. “Caso seja oficialmente comprovada a falsidade dos quadros, o prefeito irá tomar todas as medidas jurídicas cabíveis, no sentido de solicitar o ressarcimento e as devidas punições para o caso”, diz a nota da assessoria enviada à piauí. Cunha não revela o valor pago pelas telas. Sant’Anna defende a autenticidade das obras. “São autênticas e muito boas”, diz. Procurado pela reportagem, Casado não se manifestou.
No manual do falsificador de telas, a primeira regra é fraudar a obra de artistas já mortos, que não poderão atestar a autenticidade da nova pintura. A segunda é, naturalmente, escolher artistas valorizados pelo mercado. Se a obra do artista escolhido for irregular, com fases boas e outras nem tanto, melhor ainda, pois isso pode justificar eventuais imperfeições da falsificação. A quarta e última regra é apostar na bagunça, optando por um artista cujos trabalhos ainda não tenham sido organizados em um raisonné – o catálogo completo e minucioso de todas as suas obras, com reproduções e referências documentais sobre cada uma delas.
Nesse último ponto, o Brasil abre um vistoso leque de possibilidades para o falsário, já que apenas sete artistas do país possuem seu catálogo raisonné: Portinari (1903-62), Tarsila (1886-1973), Alfredo Volpi (1896-1988), Eliseu Visconti (1866-1944), José Leonilson (1957-93), Inimá de Paula (1918-99) e Vik Muniz (1961-). A obra de Silva, por exemplo, estimada em 4,5 mil quadros, ainda não foi catalogada, o que estimulou a proliferação de falsificações nos últimos anos, segundo marchands de São Paulo ouvidos pela piauí. Além disso, o próprio estilo primitivista desse pintor ajuda o falsário, uma vez que há algo de imprevisível em suas telas, como os movimentos das pinceladas, que não seguem os padrões de artistas com formação acadêmica. “Tenho visto muitos quadros atribuídos ao Silva, mas de origem duvidosa”, diz o empresário Orandi Momesso, um dos maiores colecionadores de arte do país. Em março último, ele lançou um livro sobre o artista, com a reprodução das setenta telas do seu acervo pessoal. “Ele tem a beleza do gênio”, define Momesso.
Na tentativa de reduzir as falsificações, Graciete Borges, viúva de Silva, tem se articulado com marchands e colecionadores para criar um instituto que zele pelos trabalhos do marido e conseguir elaborar um catálogo raisonné. “Enquanto isso não ocorrer, as fraudes só irão aumentar. Até a impressão digital que o Silva às vezes colocava no verso dos quadros já foi falsificada”, diz ela.
Todo responsável pelo legado de um grande pintor brasileiro busca inspiração no Projeto Portinari, iniciativa pioneira no país, criada em 1979 pelo filho do artista, o matemático João Candido Portinari. Em 2004, o projeto publicou o que até hoje é considerado o mais bem feito e completo raisonné de um pintor brasileiro, com 5,4 mil obras. “O catálogo é a melhor arma que temos contra a indústria da falsificação”, diz João Portinari. Qualquer trabalho do artista com indícios de originalidade que ainda não tenha sido catalogado passa por uma rigorosa análise com uso de inteligência artificial para comparar o movimento habitual das pinceladas de Portinari com os do quadro analisado. Se a obra for legítima, uma comissão do projeto emite um certificado de autenticidade em papel-moeda, em via única.
Em 43 anos de existência, o Projeto Portinari já detectou 760 obras falsas do pintor nascido em Brodowski, no interior paulista. O caso mais rumoroso ocorreu em 1995, quando João Portinari encontrou mais de trezentas telas falsamente atribuídas a seu pai e a outros artistas famosos na loja do galerista, restaurador e pintor italiano Giuseppe Irlandini, em Ipanema, no Rio de Janeiro. A Polícia Civil descobriu que os quadros eram falsificados em um ateliê improvisado na favela do Vidigal, próxima de Ipanema. Irlandini morreu dois anos depois sem receber nenhuma punição. Duas décadas antes, outro famoso galerista de São Paulo, José Paulo Domingues da Silva, faria uma pequena fortuna vendendo telas falsas de Portinari. Só depois da sua morte, em 1973, a polícia descobriu que Domingues da Silva, na verdade, era Paolo Businco, um conhecido estelionatário italiano procurado pela Interpol.
Em alguns casos, como o do pintor impressionista ítalo-brasileiro Eliseu Visconti, as falsificações suplantam as obras autênticas. Desde 2008, uma comissão encabeçada pelo neto do artista, Tobias Visconti, já analisou cerca de mil telas e constatou que metade era falsa – apenas 30% eram autênticas e 20% seguem sendo analisadas. “Já encontrei telas falsas do Eliseu até em museus”, diz Tobias Visconti, sem revelar os locais.
Nem o Museu de Arte de São Paulo (Masp) escapou do problema. Renato Magalhães Gouvêa, ex-diretor do museu, chegou a criar uma comissão técnica para avaliar e devolver quadros falsos doados por marchands e membros da elite paulistana, nos anos 1960. Queria evitar constrangimentos como o que ocorreu quando ele teve de devolver a Annie Penteado, viúva do empresário e mecenas Armando Álvares Penteado, uma tela falsa do pintor italiano Amedeo Modigliani (1884-1920), doada por ela ao Masp.
Gouvêa, que recentemente teve publicada sua biografia, escrita por Rogério Godinho, teria novo embaraço no fim da década de 1970, quando foi convidado pelo então governador Paulo Egydio para cuidar do acervo de quadros do Palácio dos Bandeirantes, sede do executivo paulista. Constatou dezenas de obras falsas, incluindo La Madonna della Seggiola, do artista italiano Rafael Sanzio (1483-1520). “Todo mundo sabe que o original está na Galeria Uffizi, na Itália, e é um tondo [quadro redondo]. O daqui era retangular”, disse à Veja São Paulo.
Mesmo a certificação de um quadro por institutos ligados a um artista não é uma solução pacífica. Em 2017, o empresário Abilio Diniz processou uma galeria de arte paulistana, alegando serem falsos dois quadros de Volpi adquiridos por ele e sua mulher. Foi o início de uma disputa também com o Instituto Volpi, formado por galeristas e colecionadores de São Paulo, e a filha do pintor, Eugênia, que haviam atestado a autenticidade das telas. O caso ainda não foi julgado.
De acordo com Sheldon Keck, um dos principais estudiosos norte-americanos do tema, há quatro tipos de falsificação. O primeiro é o “palimpsesto”, em referência aos papiros ou pergaminhos usados na Antiguidade que tinham o texto original raspado para serem reaproveitados com outro texto. Nesse caso, o fraudador trabalha sobre uma pintura autêntica de um artista menos valorizado para transformá-la na obra de alguém mais cobiçado no mercado, mas de estilo semelhante.
O segundo tipo é a cópia de uma obra autêntica, especialidade do falsário britânico John Myatt. Até ser preso em Londres pela Scotland Yard, em 1995, aos 50 anos, Myatt forjou mais de duzentos quadros de impressionistas, cubistas e surrealistas, incluindo pastiches do artista suíço Alberto Giacometti (1901-66), sua grande expertise.
Algumas vezes, é o próprio artista que replica suas pinturas, como fez Almeida Júnior (1850-99). Nesse caso, não se considera falsificação, mas cópia (ou versão) da obra feita pela segunda vez pelo mesmo artista que criou a tela original. “Leonardo da Vinci, por exemplo, fez uma versão de sua famosa Mona Lisa”, cita Douglas Quintale, especialista em perícia e avaliação de obras de arte.
O terceiro tipo é o pastiche, ou seja, uma obra semelhante à de um autor famoso, em que o farsante modifica apenas alguns detalhes da tela original (como a falsa Manacá de Tarsila, na galeria de Casado) ou combina dois ou mais elementos característicos de um artista em uma mesma obra (como bois, campos arados e casinhas rurais em um único quadro atribuído a Silva, na mesma galeria).
O último e mais difícil tipo de falsificação é a criação de uma obra original, que imita o estilo de um artista célebre e é a ele atribuída. É uma tarefa para fraudadores altamente capacitados em termos artísticos, como foi o húngaro Elmyr de Hory (1906-76), tido como um dos maiores falsificadores de quadros da história e que viveu no Rio de Janeiro na década de 1940, por um curto período.
Antes de Hory, o holandês Han van Meegeren (1889-1947) fez fortuna com obras como a Ceia em Emaús, atribuída por ele ao seu conterrâneo Johannes Vermeer (1632-75) e feita com tamanha perfeição que, em 1937, enganou a Rembrandt Society – a entidade comprou o quadro e doou ao museu Boijmans Van Beuningen, em Roterdã. Calcula-se que Meegeren embolsou mais de 30 milhões de dólares com seus quadros falsos e chegou a trapacear o líder nazista Hermann Goering, vendendo a ele outro falso Vermeer. Preso logo após a Segunda Guerra Mundial, Meegeren foi acusado de traição por negociar com nazistas e teve de confessar a falsificação da tela para escapar da pena de morte. Morreu de infarto antes de cumprir a sentença de um ano de reclusão.
Outro expoente do ramo foi o inglês Eric Hebborn (1934-1996) – notório falsário de desenhos de velhos mestres como Van Dyck (1599-1641), Rubens (1577-1640) e Jan Brueghel, o Velho (1568-1625) –, que compartilhou seu conhecimento criminoso na obra The Art Forger’s Handbook (O manual do falsário). Em 1996, aos 61 anos, Hebborn teve o crânio esmagado numa rua de Roma. A autoria do crime nunca foi desvendada, mas especula-se que tenha sido obra da máfia, para a qual ele vinha fornecendo suas telas falsas.
Sucessivos escândalos de fraudes no mercado de arte norte-americano fizeram com que, em 1969, fosse criada a Fundação Internacional para a Pesquisa de Arte (Ifar, na sigla em inglês), em Nova York, uma organização sem fins lucrativos que analisa a autenticidade de obras de arte. “Havia a necessidade de uma organização separada do mercado que pudesse fornecer estudos e opiniões objetivas sobre a autenticidade das obras”, diz Sharon Flescher, diretora executiva da Ifar. Em 2017, a fundação desvendou, na Costa Leste dos Estados Unidos, um esquema de falsificação de telas do pintor norte-americano Jackson Pollock (1912-56).
Estados Unidos, China e Reino Unido concentram, juntos, 80% do mercado de arte. No Brasil, não há números confiáveis sobre o faturamento do setor, que, apesar da pandemia, se desenvolveu bastante nos últimos anos, de acordo com galeristas e colecionadores ouvidos pela piauí. Parte desse crescimento se deve à proliferação dos leilões virtuais. São ao menos vinte sites do ramo atualmente, que promovem uma média de dez leilões por semana. Se os sites de venda online facilitaram o acesso às artes, também expandiram as possibilidades de golpes. “Os leilões virtuais catapultaram o mercado de obras de arte falsas no Brasil”, afirma o advogado criminalista Luís Guilherme Vieira, consultor do Projeto Portinari. “Infelizmente não há fiscalização sobre esse mercado.” A piauí procurou a Associação da Leiloaria Oficial do Brasil (Aleibras), que não se manifestou a respeito.
Na madrugada de 28 de fevereiro de 2021, o engenheiro carioca Nelson de Franco recebeu e-mail com uma oferta tentadora do site Versalhes Leilões, do Rio de Janeiro: uma das telas da famosa Série Amazônica, do artista carioca Ivan Serpa (1923-73), estava sendo oferecida por uma pechincha – 3 mil reais. O valor de mercado de cada tela dessa série costuma girar em torno de 200 mil reais. No mesmo leilão, outros três trabalhos de Serpa tinham lance mínimo de 3 mil reais.
Franco foi o único a dar lance nas obras. Ele também levou uma tela de Iberê Camargo (1914-94) por 4,9 mil reais (cujos quadros custam entre 500 mil e 3 milhões de reais) e duas de Ismael Nery (1900-34) pela pechincha de 570 reais e 900 reais, valor muitíssimo abaixo do cobrado pelas pinturas desse artista paraense (entre 30 mil e 25 milhões de reais). Por míseros 16 mil reais, o engenheiro arrematou quatro quadros de Ivan Serpa, dois de Ismael Nery e um de Iberê Camargo.
Colecionador tarimbado, Franco resolveu arriscar. Contatou por telefone o responsável pelo leilão e sócio da Versalhes, Evânio Alves Pereira, antes de depositar o dinheiro na conta de José Anderson da Silva, o outro sócio da casa. Pereira garantiu ao comprador que as obras eram autênticas, embora não tivesse nenhum certificado que atestasse isso. Franco foi então à sede do leilão, no bairro da Urca, no Rio, para ver pessoalmente as telas recém-adquiridas. Foi informado, entretanto, que elas estavam em um apartamento de Copacabana. Somente quatro dias mais tarde, depois de muita insistência, ele conseguiu ter acesso aos quadros. Levou consigo o amigo Heraldo Serpa, filho de Ivan Serpa, que constatou serem falsas as telas atribuídas ao seu pai (posteriormente, a Fundação Iberê, que cuida da obra de Iberê Camargo, também confirmou a falsidade da obra vendida pelo leiloeiro).
Franco acionou a Polícia Civil, que prendeu os dois sócios em flagrante por estelionato e violação de direito autoral (eles foram soltos poucos dias depois). Além dos sete quadros adquiridos pelo engenheiro, os policiais apreenderam dezenove telas no apartamento em Copacabana e na sede do leilão, na Urca. A dupla responde ao inquérito em liberdade. A defesa nega que Pereira e Silva sejam estelionatários. “São pessoas dignas, que nunca haviam sido presas antes. Estou certo de que serão absolvidos”, diz o advogado Cleyton Caetano de Lima. O site Versalhes Leilões continua ativo, oferecendo obras de arte e antiguidades. Evânio Alves Pereira segue sendo o leiloeiro responsável.
Na falta de uma legislação específica no Brasil, a falsificação de obras de arte normalmente é enquadrada seja como estelionato, seja como violação de direito autoral, crimes previstos no Código Penal, com penas entre um e cinco anos, no primeiro caso, e três meses e um ano de prisão, no segundo. Os marchands, galeristas e leiloeiros que negociam obras falsas estão mais expostos ao risco do flagrante, como no caso do leiloeiro da Urca. Punir o pintor farsante é muito mais difícil. Para isso, é preciso comprovar tanto a má-fé quanto o intuito comercial da fraude – pois o falsificador pode alegar que estava apenas exercitando os seus dons artísticos.
Outra falha legal apontada por galeristas e entidades do setor é que, mesmo que se comprove a falsidade de uma obra, ela não pode ser destruída, ao contrário do que ocorre na França, por exemplo. Assim, não é incomum que a tela falsa apreendida seja devolvida ao seu dono, se ele provar que não teve má-fé na compra. Um dos quadros do Espaço Clever Casado, no interior paulista, já foi classificado como falso pela empresa de Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da pintora e responsável pelo catálogo raisonné da artista, com 2,2 mil obras catalogadas. Devolvido ao dono, permanece em circulação.
Um projeto de lei de 2001 do então senador Edison Lobão (na época no PFL-MA, hoje no MDB) pretendia tipificar o crime de falsificação de obra de arte visual com pena entre dois e seis anos de prisão e dar aos institutos particulares ligados aos artistas o poder de fiscalizar o setor, mediante autorização do Ministério da Cultura. A iniciativa, porém, foi considerada inconstitucional pelo Congresso, já que o Legislativo não tem poder de criar atribuições ao Executivo. Em 2020, o deputado federal Felício Laterça (PP-RJ) propôs novo projeto para que a assinatura falsa em obra de arte seja considerada um crime contra o patrimônio cultural brasileiro, com pena entre um e três anos de prisão. Dessa maneira, a investigação sairia da Polícia Civil nos estados e passaria para a Polícia Federal, que possui mais estrutura para lidar com esse tipo de delito. “É uma lei melhor do que a atual, mas ainda muito tímida, em comparação com o projeto do Lobão”, diz a advogada Maria Edina Portinari, especializada em propriedade intelectual.
Atualmente há dez peritos especialistas em obras de arte na Polícia Federal em todo o país. Um número baixo, mas superior ao das polícias civis do Rio de Janeiro e de São Paulo, estados que concentram 80% do mercado de arte do Brasil, segundo a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (Abact). Na Polícia Civil fluminense, há apenas quatro peritos especializados no assunto; em São Paulo, nenhum.
Em 2021, a Polícia Federal iniciou o projeto batizado de Goia (Guarda, Observação, Investigação e Análise de Bens Culturais e Obras de Arte) com o objetivo de capacitar setenta novos peritos para a análise de obras de arte e bens culturais, inclusive sítios arqueológicos. A proposta também prevê a criação de uma rede formada pela PF, por universidades e museus de todo o país para a troca de informações e a guarda de obras de arte apreendidas, seguindo modelo adotado há sessenta anos pela polícia italiana, considerado o mais eficiente do mundo. “A apreensão de muitas obras de arte pela Operação Lava Jato nos fez atentar para os diversos crimes envolvendo esse meio, e dessas discussões internas nasceu o projeto. Hoje a proteção do patrimônio cultural brasileiro, incluindo obras de arte, é muito deficiente, e isso passa pela carência de mão de obra especializada”, diz o perito da PF Marcus Vinicius de Oliveira Andrade, um dos coordenadores do Goia.
Para driblar a falta de peritos nas polícias (e em um ensaio do que pretende com o projeto Goia), os delegados da PF costumam recorrer a laboratórios de universidades especializados na análise de obras de arte. Existem quinze espalhados pelo país. O pioneiro, criado em 1980, é o Laboratório de Ciência da Conservação (Lacicor) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. Por ano, o laboratório analisa entre cinco e seis telas. E, além da demanda forense, também é procurado por galeristas e colecionadores (quando a análise não é para instituição pública, cobra 30 mil reais por estudo). “Muitos nos procuram com o objetivo de ‘esquentar’ uma obra que já sabem ser falsa com o simples fato de estarmos analisando o quadro”, diz o químico Luiz Antônio Cruz Souza, coordenador do laboratório. Segundo ele, 60% das obras analisadas pelo Lacicor são falsificadas. Além da expertise dos técnicos e professores, o laboratório reúne um poderoso acervo de materiais, como mais de 3 mil amostras de pigmentos, da Pré-História até os dias atuais, usados como base de comparação na análise das telas.
Os sete quadros comprados por Nelson de Franco e os dezenove apreendidos no apartamento de Copacabana foram encaminhados para o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), em Paracambi, no interior fluminense, que desde 2021 possui um convênio com a Polícia Civil para a análise forense de obras de arte. Sediado em um imponente prédio em estilo vitoriano construído no século XIX para abrigar uma indústria têxtil, o IFRJ começou a analisar pinturas há três anos, sempre a pedido das polícias Civil e Federal.
O estudo de uma tela ocorre em quatro etapas. Na primeira, é feita uma análise artística do trabalho, comparando-o com a obra do artista, definindo a qual período pertence e determinando que técnica foi usada. Para comparação, os peritos utilizam outro trabalho do mesmo pintor com características semelhantes. Os passos seguintes são os estudos grafotécnicos da assinatura do artista ou outra inscrição que exista na tela, e a avaliação do valor de mercado. No Rio de Janeiro, esses três passos iniciais costumam ficar por conta do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, da Polícia Civil fluminense.
Cabe, então, ao IFRJ a análise físico-química da obra. Nesse ponto, o quadro passa por uma bateria de exames minuciosos em equipamentos caros, alguns conhecidos, outros de nomes longos e enigmáticos: do microscópio (onde se observa o movimento das pinceladas) ao espectrômetro de infravermelho por transformada de Fourier, que desvenda os pigmentos de base orgânica e os aglutinantes de cada tinta para determinar quando a obra foi feita. Mas a coqueluche do instituto é o espectrofotômetro de fluorescência de raios x, um equipamento importado que analisa a composição química de cada um dos pigmentos utilizados pelo artista, em um ponto específico ou no quadro inteiro. “Antes demorávamos mais de dez dias nessa análise; agora são poucos minutos”, compara Valter de Souza Félix, pesquisador do IFRJ. O aparelho, importado, custou 1,1 milhão de dólares e é o único da América Latina.
Toda essa estrutura de análise das obras de arte do IFRJ é portátil. Viajando em uma van, os instrumentos já estiveram em museus de várias cidades do Brasil. “Dessa forma, a obra não precisa deixar o museu, evitando o risco de danos durante o transporte”, diz Félix. Foi a perícia do instituto que constatou que as 26 telas apreendidas com o leiloeiro da Urca eram falsas.
Toda essa parafernália, entretanto, pode ser insuficiente para atestar a autoria de uma obra de arte em casos muito complexos como o da tela Salvator Mundi, considerada atualmente o quadro mais caro do mundo, vendida em 2017 por 450 milhões de dólares. Enquanto o Museu do Louvre afirma que o quadro é de Leonardo da Vinci (1452-1519), um documentário exibido em 2021 na tevê francesa questionou a autoria do artista italiano. “Sempre existe a esperança de que a ciência vai resolver tudo, e não é bem assim. Quando o assunto é a autenticidade de uma obra de arte, são tantos fatores em jogo que sempre restará alguma dúvida”, diz Souza, do Lacicor.
Além do ganho direto com a venda, por valores polpudos, de um quadro que, sendo falso, a rigor não vale nada, o comércio de obras de arte falsificadas também serve para lavar dinheiro de origem ilícita. O dono de uma obra falsa, ao vendê-la como se fosse verdadeira (e por valores muito maiores, portanto), “esquenta” o dinheiro de outras fontes, normalmente ilícitas. “E, se a falsificação é descoberta, ele ainda diz que não sabia da fraude, que é uma vítima”, afirma Ivan Roberto Ferreira Pinto, perito da Polícia Federal especialista em obras de arte. No caso de obras autênticas, é comum aquele que deseja lavar dinheiro subvalorizar a compra, pedindo recibo de uma quantia menor do que aquilo que efetivamente pagou, e vender com recibo do valor real, “esquentando” a diferença. “A volatilidade do mercado de arte, com muita oscilação de preços, facilita essa tática”, afirma o perito.
A Lava Jato, além de sacudir a política brasileira, também agitou o mercado de arte do país. Logo nas primeiras fases da operação, a Polícia Federal apreendeu dezesseis telas – entre elas de Di Cavalcanti (1897-1976), Cícero Dias (1907-2003) e Renoir (1841-1919) – no apartamento da doleira Nelma Kodama, em São Paulo, e 48 telas na mansão do lobista Zwi Skornicki, na Barra da Tijuca no Rio. Em março de 2015, na décima etapa da operação, foram apreendidos 131 quadros no apartamento de Renato Duque, o ex-diretor da Petrobras. As obras – de Miró (1893-1983), Guignard (1896-1962), Djanira (1914-79) e outros – estavam espalhadas por todos os cômodos do imóvel, também na Barra da Tijuca. Nem as paredes da academia do apartamento escaparam. Kodama, Skornicki e Duque foram condenados pela Justiça.
As apreensões de obras de arte pela Lava Jato continuaram. Em maio de 2018, a Polícia Federal apreendeu 39 obras de arte no apartamento do doleiro Dario Messer, no Leblon. Dessas obras, doze eram de Di Cavalcanti, amigo do pai de Messer. O doleiro foi preso no ano seguinte, acusado de comandar um esquema de lavagem de dinheiro que movimentou 1,6 bilhão de reais em 52 países. Um ano e meio depois, a mesma PF confiscou 118 obras de arte do apartamento do empresário Márcio Lobão, filho do ex-senador Edison Lobão, aquele que tentou criar a lei de combate à falsificação de obras de arte, duas décadas atrás. Em seu apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana, foram encontrados trabalhos de artistas muito cotados no mercado, como Lygia Clark (1920-88), Iberê Camargo e Beatriz Milhazes (1960-). Era a 65ª fase da Lava Jato, batizada de Galeria por envolver supostos casos de lavagem de dinheiro desviado da Petrobras por meio de obras de arte. Márcio Lobão é réu em ação penal por lavagem de dinheiro, ainda não julgada, na Justiça Federal em Brasília.
Das 85 obras de Márcio Lobão apreendidas, 32 não tinham certificado de autenticidade, normalmente emitidos por entidades que cuidam do acervo dos artistas. A Polícia Federal fez um estudo do valor de mercado de 66 telas e esculturas e constatou que esse conjunto está avaliado em 25,1 milhões de reais. Mas não foi realizada perícia de autenticidade em nenhuma das telas apreendidas pela Lava Jato (nos laudos, os peritos partem do princípio de que os quadros são autênticos, com o cuidado de citar cada um deles como de “pretensa autoria” do respectivo artista). “É um processo muito demorado e caro, por isso optou-se por não fazer essa análise”, diz um dos policiais que participaram da Operação Galeria – ele não quis ser identificado por não ter autorização da Polícia Federal para se manifestar sobre o caso. A rigor, o visitante do Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, onde as obras apreendidas foram expostas, ao deparar com um trabalho, não tinha como saber se era verdadeiro ou falso.
Em julho último, 84 dos 85 quadros de Márcio Lobão retornaram à casa do empresário no Rio. O juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal Criminal de Brasília, aceitou denúncia do Ministério Público Federal por suposta lavagem de dinheiro de apenas uma das obras apreendidas: o quadro Amazonino Vermelho, de Lygia Pape (1927-2004), adquirido pelo empresário por 40 mil reais e que não tem certificado de autenticidade – quando o valor de mercado é de cerca de 200 mil reais. A defesa de Lobão afirmou em nota à piauí que a apreensão do acervo foi ilegal e “pirotécnica”. Também disse ter solicitado na Justiça indenização por danos morais contra a União por causa da ação da Polícia Federal.
De todas as obras de arte apreendidas pela Lava Jato, 270 foram cedidas em comodato ao MON pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Logo começaram as suspeitas de que parte do acervo confiscado fosse falso. Como o quadro de Renoir encontrado na casa da doleira Kodama. A diretora do MON, Juliana Vosnika, conta que funcionários do próprio museu constataram que a tela não era autêntica, e por isso nem chegou a ser exposta ao público. Em 2015, o programa Fantástico, da Rede Globo, revelou que um trabalho de Joan Miró, que se supunha ser uma tela (com valor estimado de 16 milhões de reais) e a obra mais valiosa da coleção de Duque, não passava de uma gravura, com preço bem menor, 160 mil reais. Em julho último, quando a piauí esteve no MON, já não havia mais nenhuma “obra da Lava Jato” em exposição no museu.
Com a colaboração de Tatiana Pires.