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O pajé dos <i>gamers</i>

    Alexandre Borba Chiqueta, o Gaules: seu novo posicionamento político não ajudou a diminuir a rejeição que provoca em gamers de esquerda; seus aficionados são sobretudo de direita CRÉDITO: CRIS VECTOR_2022

vultos da internet

O pajé dos gamers

Como o jogador Alexandre Borba Chiqueta, o Gaules, venceu a depressão e se tornou um dos principais influenciadores digitais do país

Filipe Vilicic | Edição 190, Julho 2022

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No início de 2018, Alexandre Borba Chiqueta estava “no fundo do poço”, como ele descreve: “Tive depressão e vivia à base de remédios. Devia dinheiro a amigos, e minha namorada tinha terminado o relacionamento. Eu me sentia completamente sozinho.” Para vencer a crise pessoal aos 34 anos, em 5 de janeiro ele sentou-se à frente do computador, ligou a câmera do aparelho e começou a transmitir ao vivo partidas de Counter-Strike, um game de tiro.

Era um modo de resgatar seu passado como jogador e técnico de e-sports, como são chamados os campeonatos profissionais de esportes eletrônicos. Entre 1999 e 2008, ele havia competido em uma série de torneios e ganhado um título mundial na Suécia. “Quando fiz aquela primeira live em 2018, sentia que não tinha mais motivo para viver”, diz. “Eu tinha me afastado de familiares, muitos colegas me viam com menosprezo, só me sobrava um computador com webcam, o reconhecimento nos e-sports e o nome Gaules.” Era esse o apelido dele na época dos torneios, inspirado nos gauleses das histórias de Asterix, e que ele usa sem acento circunflexo no “e”, embora pronuncie “gaulês”, com a sílaba tônica no final.

As suas primeiras transmissões ao vivo na Twitch – uma plataforma de vídeos similar ao YouTube, com foco em lives, sobretudo de videogames e música – não atraíram mais que algumas dezenas de pessoas. Mas Gaules não desistiu. Quatro anos depois, seu canal na plataforma é um sucesso estrondoso. Com 3,5 milhões de inscritos, ele se firmou em 2021 como o maior streamer do Brasil e o segundo maior do mundo, superado apenas pelo canadense Félix Lengyel, o xqc, com 10,8 milhões de inscritos, segundo a empresa Streams Charts. No ranking, que considera a quantidade de horas assistidas dos vídeos de cada streamer ao longo do ano, Gaules contabilizou 165,39 milhões de horas, contra 274,96 milhões do líder.

Streamer é o nome dado à pessoa que ganha a vida se exibindo em vídeos ao vivo. Gamer designa o aficionado em jogos eletrônicos. Um e outro são peças essenciais de uma indústria que, segundo a consultoria Newzoo, movimentou no ano passado, em todo o mundo, 175,8 bilhões de dólares (cerca de 900 bilhões de reais) e pode alcançar 200 bilhões (na casa de 1 trilhão de reais) em 2023. É maior que a soma dos mercados globais de música e cinema. Somente no Brasil, estima-se que 74,5% da população tem o hábito de praticar jogos eletrônicos, mesmo que no celular, de acordo com a Pesquisa Game Brasil 2022.

Por isso mesmo, além de disputados pelo mercado, os gamers foram parar, nos últimos anos, na agenda de alguns políticos. Em 2013, cinco anos antes de chegar à Presidência, Jair Bolsonaro afirmou em um programa de tevê que videogame era “um crime” que se deveria “coibir o máximo possível”. Durante a campanha presidencial, em 2018, entretanto, ele mudou de ideia: defendeu benesses para os gamers, como a diminuição de impostos federais para consoles e jogos eletrônicos, e disse apoiar a regulamentação dos e-sports como modalidade esportiva.

Gaules entrou de cabeça na campanha de Bolsonaro. Atuou como cabo eleitoral voluntário e, poucos dias antes do segundo turno das eleições, em outubro de 2018, chegou a dizer em uma de suas transmissões: “Aqui, meu amigo, é 17 [número eleitoral de Bolsonaro] e confirma, velho. Na moral, mesmo. É Jair Bolsonaro neles. Falo com convicção. Quem não gostar, mano, sinto muito. Mas, se você quiser um fucking fantoche no governo, eu tô fora. Você fica com o Fernando Haddad e aí, velho, sei lá, procura um streamer comunista para você assistir, brother.”

Bolsonaro não se esqueceu desses apoiadores. Em julho de 2019, escreveu no Twitter: “Um forte abraço, gamers!” A mensagem foi curtida por dezenas de estrelas dos e-sports, entre eles Gaules.

“E o MST? Porra, velho, gosta do MST, abre a casa aí pros cara sem-teto dormir na sua casa”, disse Gaules durante uma live em 2019, confundindo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O streamer também chamou os ativistas desse grupo de “vagabundos”. Enquanto comentava uma partida de seu jogo de tiro favorito, afirmou que “bandido bom é bandido morto” e que os mais pobres já “teriam tudo no Brasil”, por possuírem computador, televisão, internet a cabo e micro-ondas. “Eu nem tenho televisão”, acrescentou. E para finalizar: “Desculpa aí por falar um pouco da verdade, velho. E, se não gostou, o Jean Wyllys já puxou o bonde. Manda um DM [mensagem direta] para ele e pergunta para onde ele tá indo.” Depois de receber ameaças de morte, o então deputado federal pelo Psol se autoexilou na Europa.

Bolsonaro cumpriu ao menos uma de suas promessas eleitorais: promoveu quatro reduções nos tributos para consoles e jogos eletrônicos, a última em 16 de junho (com evidente interesse eleitoreiro). Mas isso não foi suficiente para Gaules continuar apoiando o presidente. “Em 2018, estava cansado do governo petista, por isso queria uma mudança, assim como me esforçava para que os outros pensassem como eu. Com a pandemia, Bolsonaro teve a oportunidade de ser uma das figuras mais importantes da história do país, mas lhe faltou empatia, compaixão e humildade”, ele diz à piauí. A sua indignação chegou ao auge quando viu Bolsonaro assumir uma postura negacionista, minimizar o perigo da Covid e se posicionar contra a vacinação. “Quando ele falou [em abril de 2020] que ‘não era coveiro’, ao ser questionado sobre os mortos pelo coronavírus, vi que se opor a ele já não era mais uma questão de ser de direita ou de esquerda. Simplesmente não dá para simpatizar com um presidente sem o menor tato humano.”

Gaules afirma que, hoje, ele é outro Gaules. E assegura que, da mesma forma que deixou de ser apoiador de Bolsonaro, mudou de opinião a respeito do que pregava nos primeiros anos na Twitch. “Eu tinha muita raiva acumulada, por efeito da depressão, e acabava por descontar dessa forma: replicando coisas que ouvia de amigos ou em casa. Agora aprendi a ter mais empatia com o outro lado.”

Em junho de 2021, Gaules começou a tornar pública sua nova postura política e reagiu da seguinte maneira a quem postava mensagens a favor do presidente em seu canal: “Se fizer campanha, vai tomar ban.” Ban (do inglês banishment, banimento) é a gíria usada para indicar que uma pessoa será expulsa do canal. Desde então, impera no chat a regra de que todos podem declarar seu voto, seja em quem for, mas devem evitar discussões políticas agressivas, como as que costumam ocorrer nas redes sociais. E Gaules não esconde sua opção para as próximas eleições presidenciais: vai votar em um candidato da chamada terceira via, e caso a disputa se resuma a Bolsonaro e Lula, vai votar nulo.

 

Gaules ganhou esse apelido quando jogava futebol com os amigos no Tatuapé, bairro de classe média em São Paulo onde morava com os pais e a irmã em uma cobertura. Ele associa a alcunha a características como coragem, lealdade e resiliência – esta última palavra, aliás, ele tatuou no dorso da mão direita (é uma de suas oito tatuagens). Seu sonho era ser jogador profissional de futebol, mas desistiu após lesionar o tornozelo em uma partida. Foi então que começou a jogar Counter-Strike como passatempo em uma lan house do bairro. Pouco a pouco, o game foi tomando a maior parte das suas horas.

Quando a empresa de embalagens de seu pai começou a dar prejuízo, a família teve de se mudar da cobertura para um apartamento de dois quartos. “Em um quarto dormiam meus pais, em outro a minha irmã e minha avó, que foi morar com a gente. Eu ficava em um colchão na sala, com o cachorro”, recorda Gaules. “Estávamos falindo, com o negócio da família quebrando.” Para ele, o jogo online foi uma válvula de escape daquela situação, ou um refúgio. “No início, ficamos muito preocupados em vê-lo sozinho, isolado, no computador”, conta a irmã, Nadia Borba Chiqueta, de 41 anos, jornalista e apresentadora de tevê e podcasts que adotou o nome artístico Nadia Bochi (contração das primeiras letras de Borba e Chiqueta).

Gaules afirma que os pais mudaram de ideia sobre o passatempo do filho quando ele começou a ganhar dinheiro com os jogos. Em 2001, seu time no Counter-Strike, o g3x, então composto por seis jogadores, recebeu apoio de empresas do ramo da internet, como a Intel, o que garantiu ao menos uma verba para comprar bons computadores e equipamentos de treino. O time logo se firmou como o melhor do país e começou a disputar campeonatos internacionais, com sucesso. Os prêmios eram produtos eletrônicos ou dinheiro, em valores que podiam chegar a 7 mil dólares (cerca de 16 mil reais na época). Em 2003, graças a um patrocínio, cada jogador do g3x passou a ganhar um salário mensal. A fama de Gaules se expandiu. “Fãs até me esperavam no aeroporto. Cheguei a disputar em mais de dez países diferentes em um mesmo ano.”

No meio dos e-sports, são comuns as histórias sobre o consumo de drogas. No ano passado, também vieram à tona denúncias de abuso sexual cometido por mais de uma dezena de gamers do sexo masculino. Gaules nunca foi citado nesses escândalos. Nas viagens, mal saía do hotel e da área dos eventos, sempre concentrado nas disputas. “Ele realmente se esforçava mais que a média, ficava muito concentrado”, diz seu amigo Igor Melro, conhecido nos e-sports como Vip e ex-membro do time de Gaules.

Apesar do sucesso, Gaules não ganhava muito dinheiro. Em 2007, com 23 anos, sua renda mensal girava em torno de 2,5 mil reais. “Naqueles tempos, o jogador de videogame tinha fama, mas não dinheiro.” Por isso, ele resolveu abandonar a carreira para se dedicar ao curso de publicidade, na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.

 

Quando estava no segundo ano da faculdade, uma colega dos tempos de e-sports o convidou para um estágio na Samsung, que em 2009 o contratou como analista de marketing. Ele ganhava o dobro do que tirava como gamer profissional, além de ter direito a benefícios, como plano de saúde. Mas Gaules não demorou muito a voltar ao mundo dos videogames.

Em 2010, soube que a Samsung iria patrocinar um evento de Counter-Strike em Los Angeles e se voluntariou para acompanhar a delegação de jogadores brasileiros. “Quando cheguei lá, me deparei com um mundo muito diferente daquele de quando eu era jogador. Os times agora tinham assessores de imprensa, editores de redes sociais, agentes, toda uma estrutura. E os jogadores ganhavam salário mensal na casa dos 10 mil reais.” (Atualmente, não é raro um craque nessa categoria faturar cerca de 50 mil reais por mês.)

Gaules pediu demissão da empresa, abandonou a faculdade poucos meses antes de se formar e decidiu investir na área de e-sports. Das empreitadas que criou, a mais bem-sucedida foi a Agência X5, especializada em gravar e transmitir campeonatos de jogos eletrônicos, por meio da qual ele firmou parcerias com grandes marcas da indústria, como a Riot, dona do game League of Legends e sua maior cliente. “Tínhamos contratos de mais de 1 milhão de reais”, conta.

A X5 foi um sucesso, até os clientes mudarem o jogo e começarem a gravar e transmitir eles mesmos os torneios. Entre 2015 e 2017, Gaules continuou a investir no mercado de e-sports, com a criação de uma feira dedicada ao setor e de um espaço de 4 mil m2 no bairro da Mooca, em São Paulo. Há cinco anos, todavia, uma série de eventos dramáticos o fez abandonar seus projetos.

Gaules teve um princípio de depressão e resolveu procurar uma psicanalista. Nas sessões de terapia, descobriu uma série de traumas da infância e da adolescência. “Tive acesso a memórias profundas e complexas, que ficaram guardadas em algum canto da minha cabeça. As perguntas da terapeuta me levavam a esses lugares escondidos e, assim, minhas lembranças voltaram de forma nítida”, diz. Para ele, o isolamento atrás das telas na adolescência, jogando videogame, foi uma maneira de fugir dos problemas. Em meados de 2017, ele cessou o contato com todos os parentes. “Isso estourou como uma bomba atômica em nossa família. Passamos um tempão sem saber nem onde ele morava”, afirma sua irmã. “Sempre envio mensagens no dia do aniversário, mas ele jamais me retorna.” A última vez que enviou foi em 2 de dezembro do ano passado, quando o streamer completou 38 anos de idade.

Por causa dos problemas familiares e da depressão, Gaules resolveu vender sua parte nos negócios de e-sports. Depois disso, suas finanças se desorganizaram e a namorada rompeu com ele. Para pagar o aluguel de uma quitinete e as contas básicas, passou a depender da ajuda de amigos. “Uma vez, ele me ligou querendo me vender uma geladeira que tinha ganhado de presente de uma marca de energéticos”, lembra Melro. O amigo não quis comprar o eletrodoméstico, mas lhe fez um empréstimo em dinheiro. Quando Gaules começou a fazer as lives na Twitch, foi visitá-lo. Melro diz que percebeu os sinais de depressão do amigo, que estava com o visual abatido e havia descuidado completamente de sua quitinete. Viu um amontoado de louça suja na pia, roupas empilhadas num canto, o banheiro que parecia não receber uma faxina havia semanas. “A única parte arrumada era a cama dele, pois aparecia ao fundo nas gravações ao vivo.”

Em dezembro de 2017, Gaules chegou ao extremo da depressão. Ele conta que subiu no teto do prédio de três andares onde morava, caminhou até o parapeito e cogitou pular. Desistiu após ouvir o interfone de seu apartamento soar, ao longe. Era sua ex-namorada, que tinha ido visitá-lo. “Eu mal conseguia falar, estava confuso, tanto que não me lembro de todos os detalhes daquele dia”, afirma. A ex-namorada o levou ao Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, onde foi avaliado por três psiquiatras, que recomendaram sua internação em uma clínica para tratamento. Ele não aceitou a sugestão por ter medo “de acabar refém de familiares e da ex-namorada, caso fosse internado”.

 

Apesar da forte crise psicológica e do tratamento médico, Gaules teve a ideia em janeiro de 2018 de filmar a si mesmo enquanto jogava Counter-Strike na Twitch e narrar partidas de outros colegas. Nesse jogo de tiro, disputam dois times: os terroristas e os contraterroristas. Vence a equipe que eliminar mais inimigos, terminar com mais sobreviventes e cumprir um maior número de missões. Lançado em 1999, o Counter-Strike teve várias atualizações e até hoje é um sucesso, com mais de 20 milhões de adeptos ativos.

Nos primeiros quinze dias de 2018, as transmissões ao vivo foram um fracasso e nem de longe indicavam que Gaules estava na rota de virar o maior streamer do país. Seu canal na Twitch naqueles dias atraiu uma média de apenas quinze espectadores por vídeo. Em fevereiro, começou a ultrapassar a casa dos noventa. Uma forma de medir o sucesso dos canais das plataformas de vídeos é somando os minutos que o público gastou assistindo às gravações. Gaules gravou duzentas horas de lives (ou 12 mil minutos) e conquistou 2,4 milhões de minutos assistidos em fevereiro. Parece um número grandioso, mas é muito pouco para streamers profissionais. “Para me tornar oficialmente um parceiro da Twitch, com uma série de vantagens, eu precisava alcançar ao menos o dobro, uns 5 milhões de minutos”, diz ele.

Gaules passou a dedicar grande parte das horas do dia gravando a si mesmo e se exibindo na internet. Costumava iniciar as lives por volta das 19 horas e seguia direto até o meio-dia seguinte, num total de dezessete horas. Ele só suspendia as gravações para fazer as necessidades básicas. Após a transmissão, à tarde, almoçava e dormia – até o início da noite, quando retomava a rotina.

Para seu público, o diferencial de Gaules na época era que ele não se dedicava apenas às partidas de Counter-Strike. Nos vídeos, aparentando fragilidade, por vezes interrompia as falas ou perdia o fio do pensamento. “Quando era questionado sobre isso, eu explicava que estava à base de remédios e em tratamento de depressão”, conta. Isso o aproximou da audiência, motivada não só pela compaixão, mas porque parte dela se identificava com ele nesse aspecto.

Lucas Pereira, o Brexe, como é conhecido entre os jogadores, foi um dos fãs de primeira hora. Adepto de Counter-Strike, ele achou o canal de Gaules ao buscar bons jogadores que transmitiam disputas do game. “O que atrai no Gaules é que ele não faz só a live, mas interage muito com a tribo e conversa sobre todos os assuntos, desde política até problemas psicológicos, de forma totalmente sincera”, diz. “Por isso é comum tanto a tribo ajudar o Gaules, dando suporte em momentos de depressão, como ele mesmo nos apoiar em momentos difíceis.”

O esforço de Gaules foi bem-sucedido. Em março de 2018, ele gravou ao vivo 441 horas (o equivalente a mais de dezoito dias de transmissões) e chegou aos 8,7 milhões de minutos assistidos. Tornou-se, então, um streamer oficial da plataforma Twitch (cuja proprietária é a Amazon), com a qual atualmente possui um contrato de parceria remunerada. Sua média atual por mês ultrapassa a marca espantosa de 1 bilhão de minutos assistidos. Além de comentar campeonatos de videogames de todo o mundo, à maneira de um locutor esportivo, ele também narra partidas da NBA (a liga de basquete dos Estados Unidos), de futebol e automobilismo, dentre outros eventos. “Ter conversas pessoais proporciona aos streamers e espectadores a oportunidade de discutir assuntos em comum, fortalecendo o vínculo entre eles”, disse Anadege Freitas, diretora de conteúdo e parcerias da Twitch, à piauí. “Ser ouvido e acolhido por uma comunidade é algo que pode ser poderoso. Gaules frequentemente se refere ao impacto positivo que sua ‘tribo’ tem em sua vida pessoal.”

Foi em meados de 2018 que Lucas Pereira, o Brexe, então com 16 anos, enviou uma mensagem a Gaules se voluntariando para monitorar as conversas de seu ídolo no chat. “Aquilo era uma terra sem lei, onde as pessoas podiam falar o que quisessem”, recorda Brexe. Não eram raras, por exemplo, agressões verbais e conversas de cunho misógino, homofóbico e racista. Passados quatro anos, Brexe se tornou o braço direito de Gaules e ocupa agora o cargo de diretor de comunidade, conteúdo e negócios da marca, à frente de uma equipe de cerca de vinte pessoas. E continua monitorando o chat – com um time de sete moderadores –, para o qual foi estabelecida uma série de regras (como interditar ofensas e atitudes preconceituosas), que, se violadas, podem levar o usuário à suspensão ou mesmo ao banimento do acesso ao conteúdo da plataforma.

“Nossa meta é combater a toxicidade da internet, em muito associada ao mundo dos games, e assim criar um ambiente saudável. Gaules gosta muito de ajudar e ser ajudado pela tribo”, afirma Brexe. Um caso emblemático para o streamer é o de um garoto que estava em um hospital, acompanhando a mãe, que havia sido esfaqueada pelo marido (padrasto do menino), e encontrou um consolo ao participar das conversas no chat. “São histórias emocionantes que já fazem parte da rotina, aparecem todo dia”, diz Gaules. “Meu e-mail é lotado de pedidos de auxílio de pessoas da tribo. Sempre que consigo, ajudo, até financeiramente.”

A sua “tribo” costuma interagir de forma entusiasmada. Em 30 de março de 2020, um fã divulgou no YouTube sua homenagem, em forma de rap, cantando: É por isso que eu luto como um gaulês/Sei que vai demorar, mas vai chegar minha vez/Se eu cair duas, levantarei três./A dor valerá quando olhar o que fez./A minha tribo é minha família./A quem vou retribuir um dia/Por que eu sou um gaulês, gaulês!/Faça da minha luta a sua e sorria! Em agosto do mesmo ano, um site de notícias de videogames entrevistou um fã de apenas 8 anos que havia desenvolvido um game amador, As aventuras de um Gaules, em homenagem ao seu ídolo. Em 2 dezembro do ano passado, o streamer recebeu uma leva gigantesca de cumprimentos por seu aniversário, sob a hashtag GauDay – as homenagens chegaram a ser, naquele dia, o terceiro assunto mais popular do Twitter no Brasil. Em setembro de 2021, viralizou, também no Twitter, a doação que ele fez de 10 mil reais – além de ter arrecadado mais cerca de 5 mil reais entre seus seguidores – para ajudar na cirurgia de uma fã.

Mas Gaules não é unanimidade. O jornalista Pedro Zambarda, especializado na cobertura da cultura geek (que inclui os gamers), do site Drops de Jogos, tuitou em 21 de agosto de 2021: “O Gaules não é exemplo de streamer nem aqui e nem em lugar nenhum. É um caso de marketing bem aplicado.” Em conversa com a piauí, Zambarda explicou sua queixa: “Ele é um profissional sério, mas foge de críticas. Gaules me bloqueou no Twitter sem nem responder às minhas perguntas sobre uma denúncia. Nunca se posiciona.”

Zambarda escreveu, em março de 2021, que os fãs de Gaules, com apoio de seguidores do grupo de direita Movimento Brasil Livre (MBL), articularam denúncias em massa para levar à suspensão, no Twitter, da conta Gamer Antifascista por uma suposta “propagação de ódio”. Naquele mesmo mês, o Gamer Antifascista havia compartilhado um vídeo mostrando o discurso agressivo do streamer contra o MST e o MTST, de dois anos antes. Além de ter se desculpado publicamente pelas falas antigas, Gaules, que não teve participação na iniciativa de seus fãs, disse que era contra a suspensão do perfil antifascista no Twitter. Esse posicionamento, porém, não ajudou a diminuir a rejeição que ele provoca em gamers e tuiteiros de esquerda. Os aficionados de Gaules são sobretudo de direita.

 

Entre 2018 e início de 2020, a marca Gaules cresceu de forma substancial. Foi o período no qual seu canal na Twitch conseguiu conquistar os direitos de transmissão dos principais campeonatos de videogame do planeta. O sucesso pode ser atestado pelos números de sua audiência. Nos últimos dois anos, Gaules mais que dobrou o tamanho de seu público na Twitch, que hoje chega a 3,6 milhões de seguidores, dos quais cerca de 100 mil são assinantes que pagam uma mensalidade de 7,90 reais para ter acesso a conteúdos exclusivos, como chats privados e vídeos sem anúncios. Só com essas assinaturas, fatura mais de meio milhão de reais por mês. Ele também multiplicou por 5 os seguidores no Instagram (em junho com 1,7 milhões), por 5 no Twitter (997 mil) e por quase 3 no YouTube (720 mil). Estima-se que em 2021 cerca de 20 milhões de pessoas viram suas lives. O que o impulsionou tanto nos últimos anos? A pandemia.

“O único esporte que manteve todas as competições durante esse período foi o e-sport, o que naturalmente atraiu maior atenção”, avalia Gaules. Sua equipe, contudo, credita o triunfo também a outros fatores. “Solitárias, isoladas, as pessoas procuraram por companhia na internet e assim acharam a tribo”, comenta Brexe, que até identifica horários do dia nos quais o perfil do público segue majoritariamente essa tendência. De manhã, no período da tarde e no início da noite prevalece uma plateia mais jovem e interessada sobretudo em assistir às transmissões de partidas de videogame. De madrugada, o público muda. “É quando muitas pessoas que sofrem de insônia, depressão ou que simplesmente estão tristes, procuram a tribo em busca de conforto”, diz Brexe. “Tentamos ouvir e ajudar da nossa maneira, mas, em casos graves, sempre sugerimos consultas com psicólogos ou psiquiatras, ou mesmo indicamos os contatos do CVV.” O Centro de Valorização da Vida é um atendimento especializado na prevenção de suicídios.

Dentre os novos fãs de Gaules, destacam-se dezenas de figuras famosas, principalmente esportistas, como o velocista Paulo André – semifinalista nos Jogos Olímpicos de 2020 e vencedor de uma medalha de prata dos Jogos Pan-Americanos de 2019 –, que mandou um recado ao streamer quando participou como competidor da última edição do reality show Big Brother Brasil. “Tem uma pessoa que me ensinou [sobre resiliência], e que eu conheci através da internet, que é o Gaules. Você é uma pessoa incrível. Saiba que eu te admiro muito, amo você, por você fazer tudo pela vida das pessoas”, disse ele no programa.

Gaules chama muito a atenção de jogadores de futebol adeptos dos jogos eletrônicos, como Neymar. O atacante da Seleção Brasileira e do Paris Saint-Germain chegou a gravar lives de partidas de Counter-Strike com Gaules, no fim de 2020. Também aderiram à onda jogadores como Casemiro, volante do time espanhol Real Madrid, e Lucas Paquetá, meio-campista do francês Lyon.

No ano passado, Gaules recebeu um e-mail de assessores de Ronaldo Nazário, o Ronaldo Fenômeno, convidando-o para uma reunião com o ex-camisa 9 da Seleção Brasileira. Na conversa, o craque lhe pediu dicas de como se dar bem na Twitch. Em novembro do ano passado, lançou seu próprio canal na plataforma, o Ronaldotv, que exibe, inclusive, partidas de outro videogame de tiro, o Call of Duty. Do encontro, nasceu o podcast Fenômenos, com Ronaldo e Gaules, lançado em dezembro passado e cuja primeira temporada, de dez episódios, apresenta entrevistas com Neymar e o atleta de e-sports Gabriel Toledo, ou FalleN, tido como um dos maiores craques da área. No lançamento do podcast, Ronaldo disse: “Durante a pandemia, passei a jogar games com maior frequência e acompanhei muitas lives do Gaules. Foi aí que nasceu a ideia de me tornar um streamer. Lancei a Ronaldotv e me aproximei muito do Gaules, ele se tornou um parceiro nos games.”

Os negócios da empresa de Gaules com a Twitch, os patrocinadores e os anunciantes lhe permitem embolsar em torno de 250 mil reais por mês, segundo seus cálculos. Ele diz que chega a comprometer quase metade de sua renda pessoal com doações. Como exemplo, cita a que fez em maio de 2020, de 156 mil reais, para a ong Central Única das Favelas (Cufa), além de ter arrecadado, entre seus seguidores, outros 60 mil reais para a mesma entidade. O valor da primeira doação foi definido depois de ele atrair 156 mil espectadores para assistir ao vivo a um campeonato de games. Um dos releases de sua assessoria de imprensa fala também de doações para compra de oxigênio em Manaus, quando a pandemia se agravou na cidade, e também para o Pantanal, durante as queimadas que atingiram a região.

“Os que acham que só mudei por razões comerciais, por ter feito media training, estão cegos pelos extremismos e não veem as transformações que desejam para o mundo acontecerem bem na frente deles”, afirma Gaules. Ressalta-se que hoje ele está rodeado de uma equipe coesa e que tem vários contratos a cumprir com marcas como Red Bull, Banco do Brasil e Nivea, sem falar na NBA.

As transformações vividas por Gaules afetaram também a sua aparência. “Cheguei a pesar 60 kg em 2018, no auge da depressão. Hoje, estou com 102 kg, mais saudável, apesar de precisar perder um pouco de peso.” Ele tem 1,80 metro de altura. Neste ano, Gaules se mudou da quitinete onde vivia para um apartamento alugado de 110 m2, em Santana de Parnaíba, na região dos condomínios de alto padrão de Alphaville, na Grande São Paulo. É uma moradia temporária. Ele e sua noiva, a também streamer Letícia Pereira, conhecida como Lett, querem se mudar para um apartamento próprio de 440 m2, em um condomínio de luxo em Barueri.

O casal planeja se casar em 11 de novembro. “Só não fizemos a festa até agora por causa da pandemia. Queremos reunir os amigos da tribo e transmitir tudo ao vivo pela Twitch”, conta Gaules. Além do casamento, “sair do quarto” será para ele o passo mais importante que vai tomar. “Entendo que está na hora de pegar uma mochila, com uma câmera acoplada, e começar a filmar. Por isso, tenho um projeto em que vou mostrar atletas se aventurando pelo mundo.” Seria o momento de Gaules escapar do computador e imergir no que ele mesmo chama de “mundo real”.