Otonde Odera, chef de Idi Amin, e uma de suas mulheres: a principal invenção culinária dele foi o bode recheado, servido em posição vertical nos banquetes do ditador. “Todos ficavam surpresos ao ver um bode que parecia ter vindo direto do pasto, mas estava pronto para ser comido” CREDITO: MIRCO TALIERCIO_2011
O paladar dos tiranos
A intimidade gastronômica de cinco ditadores do século XX
Marcos Nogueira | Edição 176, Maio 2021
“Trabalhamos durante dois dias e duas noites. Juntamos pão de ló e chantilly para fazer um quadrado com 2 metros de lado. Depois, fizemos uma estrutura vertical de quase 3 metros de altura. E sobre essa base construímos a antiga Mesopotâmia. Esculpimos as ruínas com pão de ló, os rios com marzipã, as palmeiras e os animais com frutas. Decoramos a cobertura com flores de amendoeira e, bem no centro, fizemos uma cachoeira com raspas de coco.”
Abu Ali, cozinheiro no Ministério do Turismo do Iraque, recebera ordens para criar “o melhor bolo possível”. Foi o que ele fez, achando que a tarefa era apenas mais um teste que lhe aplicavam em seu período de treinamento. Ali trabalhava com um grupo de chefs que preparava as refeições das mais poderosas autoridades iraquianas e estrangeiras (em visita ao país): reis, embaixadores, parlamentares, militares estrelados. Em tal contexto, o bolo-maquete com cascata de coco não destoava demais.
Dois dias mais tarde, Ali viu sua obra-prima ser exibida na tevê estatal. Com a faca na mão, a cortar o bolo babilônico, estava o implacável, o sanguinário, um dos bigodudos mais famosos da galeria de tiranos do século XX: Saddam Hussein. Era aniversário do ditador iraquiano, que gostou da guloseima e contratou Ali para seu staff pessoal.
Assim como Ali, os cozinheiros Otonde Odera, Tomás Erasmo Hernández, Yung Moeun (a única mulher entre os chefs entrevistados) e uma figura que se oculta sob o codinome Senhor K trabalharam para autocratas de peso. Respectivamente: o ugandense Idi Amin Dada, o cubano Fidel Castro, o cambojano Pol Pot e o albanês Enver Hoxha. Figurantes nos livros de história, como todos os cozinheiros, os cinco dividem o protagonismo do livro Jak Nakarmić Dyktatora (Como alimentar um ditador), lançado em 2019 pelo jornalista polonês Witold Szabłowski, que no ano passado ganhou uma edição em inglês com o título How to Feed a Dictator.
Szabłowski selecionou os chefs de déspotas por variedade geográfica e cultural. “Eu queria perfis distintos, personagens da África, da Ásia, da América Latina, da Europa Oriental e do mundo árabe”, contou o autor em entrevista por telefone à piauí. No nosso canto do mundo, ele cogitou o temível Augusto Pinochet, mas não encontrou pistas sobre seus cozinheiros. O argentino Rafael Videla, o nicaraguense Anastasio Somoza e a coleção de generais brasileiros foram preteridos pelo carisma internacional do cubano Fidel Castro. O autor se deu ao luxo de descartar as anotações e entrevistas feitas com o chef do ditador líbio Muammar Kadafi. “Eu já tinha o Saddam”, disse o jornalista, com a indiferença de quem põe de lado uma cebola feiosa na feira livre.
Além de escancarar a cozinha de alguns líderes mais perversos – e controversos, se levarmos em conta o prestígio que Castro ainda tem em setores da esquerda – da história recente, o livro abre uma fresta por onde o leitor consegue espiar a sala de jantar e uma nesga do gabinete executivo dos ditadores. Cozinheiros, pela natureza da função, desenvolvem relações íntimas com seus patrões. Nos casos de Odera e do Senhor K, a intimidade serviu para que eles descobrissem meios de se tornarem indispensáveis e escapar da morte. As recordações dos dois são de puro horror. Abu Ali também temia Saddam, porém a autoconfiança o fazia crer que o patrão nunca mandaria executá-lo. Hernández ainda demonstra devoção fraterna por Fidel. A cozinheira de Pol Pot foi além, muito além disso: nutriu até morrer uma paixão platônica obsessiva por Pouk, apelido do líder do Khmer Vermelho entre os camaradas revolucionários.
No cotidiano de banquetes nababescos, os tiranos furtavam-se de relaxar e gozar. Sua relação com a comida encontra na paranoia um denominador comum – paira sempre a desconfiança de sabotagem, de envenenamento, de conspiração. A segurança de Saddam separava amostras de todo alimento servido ao chefe: caso ele se sentisse mal, elas seriam enviadas para análise química. O chef de Idi Amin, acusado de envenenar um filho do patrão, teve de fugir pelos fundos depois da sobremesa. O albanês Hoxha mobilizava o serviço de espionagem para vigiar o cozinheiro. Pol Pot só não via traidores no espelho – mas sua chef morava na China quando começou a matança geral nos quadros da Ângkar (“organização”, em khmer).
Fidel é a exceção possível. O relato de seu chef sugere um homem afável com os auxiliares próximos, mas com distúrbios alimentares evidentes. O comandante passava dias sem comer e por vezes preparava, ele mesmo, o macarrão da madrugada. Diz o ex-funcionário que a mãe de Fidel era uma cozinheira soberba, autora de uma paella lendária. Temos, portanto, uma hipótese freudiana a ser investigada.
O livro alterna depoimentos dos cozinheiros na primeira pessoa com trechos em que Szabłowski assume a narração para desenhar o contexto histórico e contar os bastidores da apuração. O mais difícil, disse o autor, foi achar e convencer o chef de Saddam Hussein a falar. “Ele vive escondido desde a invasão americana em 2003”, contou. Quando Abu Ali finalmente entendeu que seus vizinhos não leriam o livro do jornalista polonês, montou-se um esquema mirabolante para as entrevistas. Szabłowski e o chef hospedaram-se no mesmo hotel em Bagdá, em andares diferentes. As sessões foram feitas no apartamento de Ali, com um intérprete contratado pelo jornalista, durante três semanas. “O hotel tem câmeras nos corredores, nos elevadores. Todos nos viam circulando e devem ter achado que participávamos de algum tipo de orgia”, brincou Szabłowski.
O jornalista afirma que Saddam não morava em nenhum dos palácios da Presidência em Bagdá, mas numa espécie de condomínio particular ignorado pela imprensa e “altamente secreto”, nas palavras do autor. Lá também ficavam as casas das pessoas que lidavam diretamente com a família Hussein. Com exceção do cozinheiro, os serviçais palacianos eram do clã Al-Tikriti, o mesmo do presidente. Isso significa que nasceram em Tikrit, no Norte do Iraque, cidade onde Saddam foi criado por um tio.
O chef vinha do Sul do país, de Hillah, perto das ruínas da antiga Babilônia. Quando adolescente, mudou-se com os pais para a capital e foi trabalhar no restaurante de um tio. Lá, aprendeu a cozinhar pratos como o pacha, buchada de carneiro mesopotâmica. “Você usa a pele do estômago para fazer uma bolsa, que enche com carne bem picadinha”, conta. “A maior iguaria são os olhos do carneiro.”
O depoimento do chef revela episódios do cotidiano de Saddam, sua família – a mulher, Sâdjida Khaïrallah Talfâh, e os filhos Udai e Qusai Hussein –, e membros do clã Al-Tikriti. Uma noite, Saddam enfiou um grupo de figurões num iate para um cruzeiro no Tigre e resolveu, ele próprio, cozinhar. Chamou Ali à mesa dos convidados e lhe ofereceu uma kafta que havia preparado. A carne estava insuportavelmente picante, e o cozinheiro não sabia como reagir perante o patrão. Enquanto a sua boca queimava, Saddam caiu na gargalhada. O ditador havia ganhado uma garrafinha de molho tabasco e resolvera pregar uma peça nos amigos naquela noite, exagerando no tempero. Feita a graça, deu 50 dinares ao empregado e o dispensou de sua presença. Na época, o valor correspondia a aproximadamente 300 dólares.
Entre os funcionários, o condomínio de Saddam era chamado simplesmente de “Fazenda”. Isso porque no complexo se criavam aves, cabras, ovelhas e vacas. Zijad, o açougueiro, todo dia abatia um cordeiro e vários frangos para o preparo das refeições. Havia também uma horta e tamareiras, e a pesca abundava nos lagos. Era dali que vinha o peixe para o masgouf – prato nacional do Iraque e comida predileta do tirano. Nele, o peixe é aberto em borboleta, marinado em temperos e grelhado no fogo de lenha frutífera. A tradição manda fazer o masgouf com espécies nativas do Rio Tigre, como o gattan e o shabout, ambos parentes da carpa.
O gattan também é a base de um prato peculiar de Tikrit, cuja receita Ali aprendeu com a mulher de Saddam e que ele chama simplesmente de “sopa dos ladrões”. A montagem do prato, outro favorito do ditador, se assemelha à da moqueca.
Você começa refogando numa panela grande algumas rodelas de cebola em óleo, depois acrescenta uma camada de peixe, que deve estar cortado em iscas e enfarinhado. Salpique salsinha e junte uma camada de tomates. Sobre esta, uma camada de damascos secos. Mais uma de tomates. Mais peixe. Uma camada de amêndoas. Outra de peixe. Se quiser, coloque passas também. Você deixa tudo quietinho na panela, sem mexer. Quando começar a ouvir o ruído de fritura, isso significa que o líquido do fundo já evaporou; então coloque água fervente até cobrir todas as camadas. Deixe cozinhar por 15 a 20 minutos, ajuste o sal e tempere com cúrcuma.
Saddam, segundo Ali, foi um patrão generoso. Quando gostava da comida, mandava presentear o chef com 50 dinares. Porém, quando cismava que a refeição estava salgada demais, o que acontecia com certa frequência, mandava descontar 50 dinares do salário. Quando recuperava o bom humor, voltava a elogiar a comida e mandava devolver a quantia que havia confiscado, acrescentando mais 50 dinares. Como um alto executivo, Ali ganhava um carro novo todo ano.
“Eu poderia recusar Saddam?”, disse, referindo-se ao emprego oferecido. “Não sei, mas preferi não arriscar.” O bigodudo bonachão que distribuía dinheiro à la Silvio Santos também era o sujeito que fez carreira como torturador e assassino de desafetos. Como chefe do aparato de repressão do partido Baath, Saddam espancava os oponentes políticos com uma mangueira de borracha recheada de pedras, segundo Szabłowski. Ou enfiava-lhes uma garrafa de vidro no ânus, para então espatifá-la aos chutes.
Os filhos também se destacavam pela crueldade, em especial o primogênito Uday Saddam Hussein, que um dia matou o guarda do ditador e provador de sua comida, Kamel Hanna Jajjo, com uma barra metálica, por motivo nunca exatamente esclarecido. “Eu jamais havia visto Saddam chorar”, disse Ali sobre o impacto da morte do guarda, que era cristão. Durante o funeral de Jajjo, o chef testemunhou algo raro: Saddam aos prantos. O presidente ordenou que trancafiassem seu filho numa solitária, onde Uday permaneceu por quarenta dias. Em seguida, exilou-se em Genebra. Quatro meses depois, voltou ao Iraque e teve seu processo anulado e rotulado como “acidente”. Para o cozinheiro, “a única pessoa boa de toda a família Al-Tikriti era Saddam”.
O resto do mundo parece não concordar com o cozinheiro. A partir da primeira Guerra do Golfo, iniciada em 1990, o cerco foi se fechando ao redor do ditador do Iraque. O país atolou nos pântanos do Rio Tigre. As sanções internacionais levaram a escassez de comida para a população, algo que sequer foi sentido na autossuficiente Fazenda. Mas não porque Saddam estivesse lá.
Tomado pela paranoia, o tirano mandou construir palácios por todo o país. Dúzias deles. “Os melhores arquitetos, os melhores decoradores, os melhores pintores e os melhores escultores foram recrutados”, escreve Szabłowski. Cada uma das residências oficiais foi equipada com uma cozinha completa – no padrão Saddam de ostentação. Quando estava tudo pronto, os melhores chefs eram convocados para cuidarem da alimentação.
Com múltiplos palácios o tirano visava confundir espiões. Nunca se sabia de qual deles Saddam iria despachar e onde pretendia dormir. Ele se tornou um déspota itinerante, chegando sem aviso prévio às várias Babilônias que mandara erguer.
Para o devido funcionamento de tal estratégia, fazia-se necessário que cada palácio operasse como se Saddam estivesse lá naquele dia, todos os dias. Assim, todas as cozinhas preparavam diariamente refeições suntuosas, no almoço e no jantar. Depois, toda a comida era fatalmente jogada no lixo, conforme ordens dadas pelo tirano. Quando Saddam realmente aparecia em algum palácio, os seus alimentos eram preparados apenas por Abu Ali e sua equipe, que integravam a comitiva viajante do presidente e eram os únicos nos quais ele tinha confiança.
Ali acompanhou o ditador até os primeiros dias da ocupação do Iraque, iniciada pelos Estados Unidos em 20 de março de 2003. “Eu fiz meu último bastirma logo antes do segundo ataque americano”, recordou o chef. Bastirma é uma carne-seca condimentada, parente do pastrame da culinária judaica. O declínio do Nabucodonosor moderno se arrastou até o dia em que os militares norte-americanos o encontraram escondido num vilarejo na região de Tikrit, em 13 de dezembro de 2003. Perto do esconderijo, as tropas invasoras acharam um pouco de bastirma pendurado no ramo de uma palmeira.
Idi Amin Dada, presidente de Uganda entre 1971 e 1979, gostava de alimentar os crocodilos do Lago Vitória com os cadáveres desmembrados de seus desafetos. Se havia algo de previsível no temperamento de Amin, era sua irascibilidade. O ditador se irritava facilmente e, irritado, matava ou mandava matar com facilidade ainda maior. O chef do palácio presidencial em Kampala, Otonde Odera, sabia que qualquer vacilo poderia implicar em um mergulho com os répteis.
Uma vez, Odera preparou um arroz-doce. “É um prato simples: você ferve o arroz, coloca passas e uma pitada de canela”, descreveu o cozinheiro no livro de Szabłowski. Um dos filhos do presidente, Moses Amin, então com 13 anos, gostou tanto que comeu até “quase explodir”, nas palavras do chef. Logo depois, começou a sentir dores abdominais terríveis.
“Amin achou que seu filho tinha sido envenenado”, disse Odera. Em um ataque de fúria, o tirano de 1,93 metro saiu correndo pelo palácio aos gritos: “Se algo acontecer ao garoto, eu mato vocês todos!” O cozinheiro sabia que ele falava sério. Enquanto o pai surtava, Odera saiu pelos fundos com o adolescente e o levou ao médico da família Amin. Ao ser examinado, Moses expeliu um flato monumental, o que o fez melhorar imediatamente. O episódio rendeu semanas de piadas para Idi Amin. “Toda vez que ele me via, começava a rir e bater no meu ombro, exclamando: ‘Um peido! Um peido!’”, lembrou o chef.
Comandante das Forças Armadas, Idi Amin deslanchou o golpe de Estado que o levou ao poder em janeiro de 1971, quando o presidente Milton Obote fazia uma viagem oficial a Cingapura. Odera já trabalhava no Palácio de Kabaka no momento que o futuro ditador chegou atirando para tomar posse dos aposentos presidenciais. O chef de cozinha pensou em fugir ao ver as tropas insurgentes ocuparem o palácio, pois havia rumores de que elas estavam promovendo um massacre contra o seu povo, os Luo.
A etnia Luo é a mesma da família paterna de Barack Obama. Assim como os Obama, os Odera viviam na margem queniana do Lago Vitória, na região de Kisumu. Otonde foi o 14º filho de sua mãe – e o único a sobreviver a doenças durante a infância. Teresa Anaza pariu à noite, sozinha, numa trilha frequentada por hienas.
Depois de passar a infância numa situação de pobreza extrema – “mas não me lembro de ter passado fome” –, Odera tentou ganhar a vida como pescador. Mas seu barco foi destruído por hipopótamos. Então um primo que morava em Uganda conseguiu para ele uma vaga de ajudante de garçom num clube de campo mzungu – assim eram chamados os colonizadores britânicos – na capital Kampala.
Perspicaz e trabalhador, Odera logo arrumou um emprego de criado na casa de um alto burocrata do Império Britânico cambaleante. Aparava a grama, limpava janelas e ficava de olho no movimento da cozinha. Sem saber inglês, aprendeu a culinária dos colonizadores, também chamada mzungu, como se tivesse sido treinado no Palácio de Buckingham.
O talento na execução de pratos apreciados pela aristocracia – tanto de colonos quanto de colonizados – abriu o caminho de Odera para os palácios de Uganda. Em 1962, quando o país se tornou independente e os patrões britânicos fugiram de volta para casa, ele concorreu à vaga de chef de Milton Obote, então primeiro-ministro. Na prova, deveria preparar sopa de rabada, T-bone steak e pudim de frutas secas – pratos que estava mais do que habituado a fazer. Passou no teste e ganhou a admiração de Obote. “A culinária mzungu é a comida de quem quer ostentar poder”, afirmou o cozinheiro a Szabłowski.
O charme da gastronomia dos brancos funcionou ainda melhor com o temível Idi Amin Dada. O novo tirano era tão anglófilo que mandara formar uma banda de gaitas de fole, com os músicos usando kilt – o tradicional saiote masculino escocês –, nas cerimônias mais importantes do governo. Quando se sentiu rejeitado pelo antigo império, aproximou-se da Líbia de Muammar Kadafi e converteu-se ao islã. Obrigou todos os funcionários da cozinha, inclusive Odera, a se circuncidarem (prática que costuma ser adotada entre os muçulmanos, embora não seja obrigatória). Com a ajuda do patrão, o chef acumulou mais três esposas no decorrer do tempo de serviço – ele já era casado com uma queniana.
“Você me pergunta como eu podia cozinhar para um monstro daqueles”, afirmou Odera ao jornalista. “Bem, eu tinha quatro mulheres e cinco filhos. Amin me amarrou de um jeito que era impossível sair.” O chef presidencial também recebia mimos do tirânico empregador: assim que tomou o gabinete do pão-duro Obote, Idi Amin deu-lhe uma Mercedes novinha e equiparou seu salário ao do chef do melhor hotel de Kampala. “Eu amava meu emprego.”
Sob o comando do ensandecido líder, Odera pôs seu talento para brilhar. “Minha grande invenção foi o bode recheado.” Ele tirava a barbicha do caprino e removia as entranhas. Recheava o animal com arroz, batata, cenoura, ervilha, temperos e pedaços da própria carne, antes de levá-lo ao forno para dourar. “Como um toque final, colávamos de volta a barbicha”, descreveu, entusiasmado, o cozinheiro. “Todo mundo ficava surpreso ao ver um bode que parecia ter vindo direto do pasto, mas estava pronto para ser comido.” O bode era servido na posição vertical.
O dom culinário de Odera impressionou Szabłowski. “Ele tem mãos de ouro”, escreveu. O ex-chef de Idi Amin tinha 80 anos quando o jornalista polonês o encontrou no Quênia, onde voltara a viver, na mesma miséria que enfrentara, entre hienas e hipopótamos, na infância. Szabłowski levou o cozinheiro ao mercado, onde adquiriram os ingredientes de um jantar com frango assado, filés de tilápia – o hábitat original do peixe é o Lago Vitória – e legumes. “Eu comprava comida para cem pessoas sem levar nada anotado”, gabou-se o cozinheiro. De volta à aldeia, Odera arregimentou como ajudantes uma nora e duas netas. Todos, inclusive o jornalista, deviam ficar em silêncio enquanto ele aprontava a refeição. “Na cozinha, o ditador sou eu”, sentenciou.
“Em frente às panelas, Odera se transforma em outra pessoa”, descreveu Szabłowski. “Sua expressão muda, os movimentos se alteram; ele parece mais jovem e mais forte; sua postura fica mais ereta.” Enquanto o jornalista admirava o ritual culinário, o mago das caçarolas ugandenses jogou um punhado caprichado de sal na comida. “Vou salgar como eu fazia para Idi Amin”, advertiu Odera. O ditador gostava da comida bem salgada. Apesar do excesso de sódio, o prato encantou Szabłowski. Todos os chefs entrevistados para o livro cozinharam para o jornalista, mas Odera é de longe o seu favorito.
O encanto de Idi Amin com o cozinheiro das mãos de ouro teve o final previsível. Acusado (falsamente, segundo o chef) de traição, Odera foi capturado por capangas do presidente e aprisionado em uma fossa escura. Na manhã seguinte, quando os guardas abriram o alçapão, ele imaginou que seria executado; em vez disso, deram-lhe a chance de ir embora para o Quênia, acompanhado somente da esposa número 1.
Dentre os vários mitos em torno do temível Idi Amin, o canibalismo é um dos que pairam mais forte no imaginário branco ocidental. Dizia-se que ele bebia o sangue de suas vítimas. Que comia o fígado delas. Se havia alguém no mundo capaz de confirmar tão tenebrosa boataria, tratava-se do cozinheiro do ditador de Uganda.
Às lágrimas, Odera jurou nunca ter presenciado rituais antropofágicos. “Eu nunca vi carne de origem obscura nas geladeiras sob minha supervisão”, afirmou o cozinheiro. “Lá só entrava a comida que eu mesmo comprava.”
O diretor e ator Mel Brooks, criador da série cômica Agente 86, não faria paródia melhor da espionagem na Guerra Fria. Quando o cozinheiro de Enver Hoxha, o homem forte da Albânia entre 1941 e 1985, viajava para visitar sua mãe numa aldeia, um carro com dois agentes do serviço secreto o seguia. E, seguindo este carro, havia outro veículo, com mais dois agentes cuja missão era vigiar os vigias do chef. A coisa era tão escancarada que o cozinheiro dava “bom dia” para a escolta “secreta”, e seus espiões o cumprimentavam de volta.
O último cozinheiro de Hoxha não quis ter a identidade revelada no livro de Szabłowski. No capítulo referente à cozinha do líder albanês, ele é tratado simplesmente como Senhor K. No país mais fechado da antiga Cortina de Ferro, a desconfiança ainda é o esporte nacional.
Na adolescência, K sonhava em ser mecânico de automóveis, mas o partido (comunista) determinou que ele se tornasse cozinheiro. Foi o que fez. Num dia qualquer, foi abordado por dois soldados numa obra em que cozinhava para os engenheiros. “Disseram que eu precisava fazer as malas, pois eles iriam me levar para outro emprego, na cidade de Vlorë, por um mês inteiro.” K sabia que nenhuma ordem do governo podia ser questionada. “A viagem era muito inconveniente. Minha mulher estava grávida. Mas, quando o partido decidia que você iria, você ia. Sem discussão.”
O tal emprego era na residência de férias de Enver Hoxha. O que seria um trabalho temporário acabou por se tornar permanente: K foi levado para a mansão do déspota na capital Tirana. O cozinheiro logo percebeu a enrascada em que se metera. O primeiro chef do líder comunista havia se suicidado, de acordo com a versão oficial. Mais tarde, outro cozinheiro desapareceu. Nunca mais deu as caras no serviço, “e era melhor não perguntar por quê”. “Mas eu queria viver”, relembrou K. Para tanto, precisaria deixar o patrão feliz e satisfeito. Tarefa complicada no caso de Hoxha, a quem faltava o carisma transbordante do furibundo Idi Amin Dada ou o lado quase bonachão de Saddam Hussein.
O guia supremo da Albânia era mais frio que a arquitetura socialista do Leste Europeu. Matava gente como quem afasta um objeto que impede o caminho. Na escalada ao poder, mandou executar até ex-colegas que sabiam do seu passado de mau aluno, sem falar nas garotas que haviam rejeitado suas investidas dom-juanescas na escola.
Conquistar Hoxha pelo estômago vinha com um desafio extra: o secretário-geral do partido era diabético e havia sofrido um infarto pouco antes de K ser recrutado. Seu cardápio era elaborado com a supervisão de uma junta médica e da enfermeira particular do tirano. Sua dieta permitia apenas a ingestão de 500 calorias por dia – em condições normais, recomenda-se o quíntuplo desse valor para homens. E o tirano albanês era um homem grande, de 1,95 metro.
“Por causa da dieta, Hoxha passou a maior parte da vida com fome”, disse o cozinheiro. “Apenas imagine o tipo de decisões que você tomaria caso estivesse o tempo todo com fome e de péssimo humor.” Para o próprio bem e para o bem do povo da Albânia, K tentava levantar o astral de Hoxha dentro das condições limitadas que tinha para trabalhar. Elaborou substitutos para o açúcar e se empenhou em entregar o máximo de sabor nas mínimas porções. “Quem sabe quantas vidas eu salvei desse jeito?”
Um dia típico do ditador começava, no café da manhã, com uma fatia de queijo e geleia. O almoço tinha sopa de legumes e um pedacinho de vitela, cordeiro ou peixe, com maçã verde ou ameixa de sobremesa. O jantar era uma porção de iogurte. Quanto à primeira-dama, Nexhmije Hoxha, uma disfunção na vesícula biliar era o pretexto para que ela se alimentasse quase que exclusivamente de cenouras.
Nem tudo, porém, era adoçante e cenouras na cozinha do poder em Tirana. No aniversário de um dos filhos do ditador, K serviu um leitão inteiro, com um chapéu na cabeça e um cigarro aceso na boca. “Hoxha gostava desse tipo de piadinha”, afirmou o chef. “A família toda falou daquele porco por anos.”
Menos divertido foi o episódio em que Hoxha reprovou a versão dietética de hasude, um pudim à base de maisena, canela e castanhas. O garçom trouxe de volta a sobremesa praticamente intocada e o recado do patrão: aquilo não era hasude, era melhor não ter servido nada. “Fiquei apavorado, minha vida dependia dos pratos que eu preparava”, disse K, que encontraria a redenção numa véspera de Ano-Novo, com um doce albanês chamado sheqerpare. É um bolinho assado e embebido em xarope de açúcar. No Réveillon em questão, a sobremesa agradou tanto que o cozinheiro foi convidado a sentar à mesa com a família Hoxha. “O camarada Enver até me elogiou, o que era muito raro”, contou. “Você quer a receita?”
“Você precisa de três xícaras de farinha, meio tablete de manteiga, três ovos, uma xícara de açúcar, um pouco de fermento químico e baunilha. Para fazê-la do jeito que eu preparava para Hoxha, é claro, você deve substituir o açúcar por xilitol. Usando esses ingredientes, você faz a massa; para o xarope, você precisa de mais duas xícaras de açúcar, meia xícara de água e baunilha. Você despeja o açúcar numa vasilha, depois derrete a manteiga e despeja na cumbuca do açúcar. Junta os ovos, baunilha, fermento e farinha e bate até obter uma massa espessa e amarela. Faz bolinhas com essa massa e as distribui numa assadeira. Leva ao forno por 20 minutos a 180ºC. Está pronto quando começa a ficar marrom.”
Agora o xarope: “Aqueça o açúcar, a água e a baunilha numa panelinha. Quando começar a borbulhar, despeje sobre os bolinhos. Eu não podia servir assim para Hoxha, mas fica delicioso com chantilly e frutas.”
Na sua estratégia de sobrevivência, K se dedicou a emular a comida que a mãe de Hoxha servia ao ditador na infância, na cidade de Gjirokastër. Por sorte, sua irmã Sano Hoxha foi morar com ele em Tirana. O cozinheiro persuadiu a irmã a lhe repassar, escondida do irmão, as receitas que ela aprendera com a mãe. “Eu lhe falei da felicidade de Enver, não do temor pela minha vida”, disse. “Sano me ensinou a fazer shapkat [uma torta de espinafre] e qofte [kafta], do jeito exato que fazem em Gjirokastër. Mostrou-me exatamente quanto sal, quanta farinha e quanto tempero sua mãe teria usado.”
Com essa pequena trapaça, K garantiu a própria sobrevivência até a morte do patrão, em 1985.
No Camboja sob o jugo do Khmer Vermelho, estima-se que entre 1,7 e 2 milhões de pessoas tenham sido executadas entre 1975 e 1979. Enquanto esteve no poder, Pol Pot expulsou a população urbana para o campo, aboliu o dinheiro e obrigou todos a usarem a mesma roupa preta. Mas o que habita a memória de Yong Moeun, ex-cozinheira dos revolucionários khmer, é o doce sorriso do comandante. “Na primeira vez que encontrei o Irmão Pol Pot, fiquei sem palavras. Eu estava em sua cabana de bambu na selva, contemplando-o e pensando: que homem lindo!”
Moeun aderiu à Ângkar ainda na adolescência, levada pelo irmão mais velho e pelo primo Koy Thuon. Apaixonou-se pelo ideal revolucionário. “Quando Koy Thuon me disse que eu poderia ser útil como mensageira, levando uma carta ou encomenda, não hesitei”, recordou durante a entrevista com Szabłowski. Ela então partiu para a floresta na província de Rattanakkiri, na remota fronteira com o Vietnã, onde os guerrilheiros se escondiam. Apaixonou-se por Pol Pot, a quem os soldados chamavam de Irmão Pouk – “colchão”, uma referência à sua habilidade em apaziguar conflitos. A mocinha levou mais de um ano até saber que o objeto de sua adoração era casado.
“Uma lástima que a Ângkar mantivesse coisas assim em segredo. Mas eu fingi que não havia nada de errado quando me apresentaram à tia [Khieu] Ponnary, esposa de Pol Pot.” Afinal, Moeun também tinha um cobertor de orelha. Pich Cheang, seu marido e amigo do irmão dela, tornou-se uma liderança importante na guerrilha. Pol Pot não deixava de corresponder um pouco à paixão, retribuindo-a ao menos com simpatia. E foi assim que a organização determinou que Moeun se tornasse cozinheira do líder.
O problema era que Moeun não sabia cozinhar. Na primeira refeição que serviu a Pol Pot, uma sopa doce e azeda com vegetais e carne, o líder simplesmente refugou o prato. Com o tempo, a obstinada fã aprendeu a se entender com as panelas. E fazer a sopa que Pol Pot gostava de tomar temperada à moda tailandesa. Toda a cúpula do Khmer Vermelho preferia a gastronomia tailandesa à culinária tradicional cambojana.
Na mata, comia-se o que aparecesse pela frente. “Eu aprendi a fazer sopa de carne de tartaruga, mas Pol Pot não gostava muito”, contou Moeun. “Ele preferia sopa de cobra.” De vez em quando, os guerrilheiros abatiam um elefante e faziam carne-seca para garantir o estoque de comida. “Mas nossos líderes se recusavam a comer carne de elefante.”
A gourmetização da elite revolucionária ficou evidente após 1975, quando a Ângkar tomou a capital Phnom Penh. O bâng, corpo de veteranos do partido, tinha privilégios que incluíam vinho e pão fresco toda manhã. A respeito de Pol Pot, Szabłowski reproduz o relato do norte-americano Nate Thayer, único jornalista ocidental a ter entrevistado o comandante cambojano:
Pol Pot tinha uma pequena horta, cuidada pela mulher e pela filha, e se alimentava de comida tailandesa contrabandeada. Eles [os líderes do Khmer Vermelho] prepararam um banquete especial para mim. Um tubo de batatas Pringles importadas, hambúrguer de carne de búfalo, Sprite e Coca-Cola mornas e uísque Johnnie Walker Black Label falsificado.
O grosso das tropas era formado por camponeses, vindos de aldeias remotas da floresta conquistada pelos comunistas. Quando chegaram pela primeira vez às cidades, eles foram vistos bebendo água dos vasos sanitários e degustando pasta de dente. A população urbana desalojada por Pol Pot comia quando encontrava alimento – e a definição de alimento foi se tornando cada vez mais elástica.
“Nos dias do Khmer Vermelho, as pessoas não comiam apenas ratos”, escreve Szabłowski. “Comiam gafanhotos, grilos, vermes, formigas vermelhas e suas ovas. Pegavam aranhas caranguejeiras na mata e as comiam cozidas ou assadas na fogueira. Assavam rãs embrulhadas na folha de bananeira. Comiam elefantes, tartarugas, lagartos, todo tipo de cobras, escorpiões e uma sopa feita com ovas de cupim.”
Moeun assistiu de longe à degringolada épica da utopia revolucionária. Assim que o Khmer Vermelho tomou controle do país, o marido dela foi nomeado presidente do Banco Central – mas aí o dinheiro foi abolido, e não havia mais por que haver banco algum. O casal foi então designado para a missão diplomática em Pequim. Seu marido, Pich Cheang, tornou-se embaixador na China, e Moeun, chefe da célula do Partido Comunista na embaixada. “Em outras palavras, Pich Cheang era meu subordinado”, disse a ex-cozinheira.
Se os chefs de Saddam, Idi Amin e Hoxha temiam ser mortos por seus patrões, Moeun aceitava tal risco com absoluta resignação. Quando a fome generalizada no Camboja se somou à guerra com o Vietnã, o colapso do regime se mostrou evidente. Antigos companheiros de luta eram sentenciados à morte por traição, em julgamentos sumários em que as “provas” não passavam de fofoca e paranoia. Os diplomatas do país no exterior recebiam convocação para retornar e, ao desembarcarem em Phnom Penh, eram conduzidos ao abate.
Moeun ficou à espera de uma convocatória desse tipo, mas a carta nunca chegou. “Se a Ângkar decidisse que eu havia cometido crime de traição, eu concordaria com a Ângkar; se a Ângkar me quisesse de volta, eu teria embarcado naquele avião; se a Ângkar decidisse que eu precisava morrer, eu morreria”, disse. “A Ângkar tem cem olhos, como um abacaxi. Eu tenho cem olhos? Não. Então acredito que a Ângkar vê melhor e sabe mais do que eu.”
Quando os vietnamitas ocuparam Phnom Penh, em 1979, o Khmer Vermelho recuou para a floresta. Moeun e o marido retornaram ao Camboja. A guerrilha só foi oficialmente encerrada em 1998, mesmo ano em que Pol Pot morreu. Na época da entrevista com Szabłowski, Moeun vivia em Anlong Veng, que foi o último bastião de resistência da Ângkar antes da rendição final. Era sustentada pelos filhos, donos de um posto de gasolina, e morava numa casa com tevê a cabo. “Eu gosto de futebol e de luta livre”, disse. “Tem um jogador de futebol com o mesmo sorriso gentil do Pol Pot. Quem? Não me lembro do nome. Mostre-me os jogadores famosos, e eu te direi quem é. Ah, é este aqui! Messi!” A guerrilheira e cozinheira morreu em 4 de março do ano passado.
Café da manhã, almoço e jantar eram prioridades baixíssimas para os revolucionários que enxotaram o presidente cubano Fulgencio Batista. “Ninguém pensava em comida, sempre havia algo mais importante a fazer”, contou Tomás Erasmo Hernández, que começou a trabalhar como guarda-costas de Fidel Castro logo após a tomada de Havana. “Eu fui o primeiro a imaginar que talvez o chefe ficasse com fome.”
Hernández fez uma fogueira no terreno da casa de Antonio Núñez Jiménez, intelectual com quem Fidel discutia a implementação da reforma agrária. Arrumou uma panela, uma coisinha aqui, outra ali e, quando el jefe saiu da reunião, uma sopa quentinha o esperava. “Não era minha atribuição, mas eu sempre gostei de cozinhar. E, assim, eu também não passaria fome.”
Fidel gostou da ideia de ter alguém que se preocupasse com suas refeições. Hernández fez da sopinha um hábito e foi, por quatro anos, cozinheiro informal. Até que Celia Sánchez, uma das principais combatentes da Revolução Cubana, o encaminhou para a escola de culinária. Para espanto dos colegas da guarda, ele aceitou e deixou o emprego que poderia lhe render uma sólida carreira militar.
Um dia, Sánchez convidou Hernández para cozinhar para Fidel de vez em quando, depois das aulas. Ela dizia que o comandante passava o dia todo sem comer, não gostava da comida feita por ninguém e ia à cozinha no meio da madrugada para fazer macarrão. O antigo segurança acabou por virar chef oficial de Fidel Castro.
Dos autocratas retratados por Szabłowski, Fidel é o único que ainda tem admiradores fora dos porões da deep web. Em Cuba, onde o regime castrista ainda persiste, o apoio popular à revolução de 1959 supera a revolta com os desmandos de seus líderes. É sintomático que o chef de Fidel se lembre com carinho do antigo patrão.
Hernández, ao contrário dos outros cozinheiros de ditadores, nunca associou sua proximidade com o poder ao risco de morte. Guarda, porém, algumas críticas ao líder cubano. Críticas amistosas, claro. “O maior problema do Fidel é que, na guerrilha, ele se acostumou a comer várias vezes ao dia”, disse o chef. “Era impossível planejar uma rotina. Para um cozinheiro, essa é uma situação complicada. Você tem que estar a serviço a qualquer hora do dia ou da noite.”
Meio incômoda e meio engraçada era a notória empáfia de Fidel, o rei dos sabichões. Ele sabia mais do que qualquer um sobre qualquer assunto – e isso incluía a culinária. Quando ia comer no hotel Habana Libre, sempre colava nos chefs. “Ele explicava como cozinhar lagosta, como fazer confit de pato e o preparo exato do pargo rojo [peixe caribenho do gênero Lutjanus, o mesmo do vermelho encontrado na costa do Brasil].” O hotel contratava os profissionais de cozinha mais qualificados de Cuba, mas eles precisavam ouvir pacientemente o discurso de Fidel – e, quando Fidel discursava, ele desligava o cronômetro.
O líder cubano deu aulas de culinária também para o brasileiro Frei Betto, que transcreve sua receita de frutos do mar no livro Fidel e a Religião (2016): “O melhor é não cozinhar camarões e lagostas, pois a fervura da água reduz substância e sabor e endurece um pouco a carne. Prefiro assá-los ao forno ou no espeto. Para o camarão, bastam cinco minutos ao espeto. A lagosta, onze minutos se é ao forno ou seis ao espeto, sobre brasas. De tempero, só manteiga, alho e limão. A boa comida deve ser simples.”
Afora algumas excentricidades, o relato do cozinheiro Hernández não descreve um sujeito chato à mesa como, por exemplo, Enxer Hoxha, o tirano da Albânia. Fidel era ávido consumidor de leite e seus derivados: queijo, iogurte, manteiga, sorvete. E era um caloroso entusiasta da ideia de difundir o consumo de produtos lácteos para o proletariado e o campesinato. O furor leiteiro se enraizava tanto em obsessões insondáveis quanto em flagrante advocacia em causa própria. Fidel tinha lá suas vaquinhas, mas uma, em particular, era a sua menina dos olhos. Chamava Ubre Blanca – em português, “Teta Branca”.
A vaca de Fidel aparecia quase diariamente nas páginas do Granma, jornal oficial do governo, análogo ao Pravda soviético. Ubre Blanca entrou até para o livro Guinness dos recordes, depois de produzir 109,5 litros de leite, em 16 de janeiro de 1982. “Fidel falava dessa vaca o dia todo, sem parar”, disse Hernández. Imitando o antigo chefe para Szabłowski, ele declamou: “Cinco mil vacas dessas bastam para abastecer Cuba de leite.” Ubre Blanca tinha escolta militar durante 24 horas, nos sete dias da semana, e comia apenas o que outros animais haviam provado antes, para evitar intoxicação ou envenenamento.
Nenhuma descendente alcançou a produtividade de Ubre Blanca, o que frustrou o império queijeiro que Castro planejava para sua ilha. Em 1985, quando a vaca recordista precisou ser sacrificada após desenvolver câncer na mama, o Granma a homenageou com um obituário comovente.
Com a queda do Muro de Berlim e o desmantelamento da União Soviética, o farol caribenho do socialismo começou a se apagar. Os russos largaram mão de sustentar Cuba, que se viu estrangulada pelas sanções impostas pelos Estados Unidos. O país se abriu à visitação de estrangeiros, o que favoreceu o antigo chef de Fidel. Hoje, Hernández é dono, na região de Havana Velha, do restaurante Mama Inés, atração turística pau a pau com a Bodeguita del Medio e com El Floridita – ambos frequentados por Ernest Hemingway antes da revolução socialista.
Szabłowski pretende continuar escrutinando o universo dos autocratas do ponto de vista da gastronomia. Atualmente desenvolve um projeto sobre a culinária da alta burocracia do lado Leste da Cortina de Ferro. Antes de desligar o telefone, o jornalista polonês tão interessado no estômago dos autocratas inverteu papéis e me fez uma pergunta: “Se você souber algo sobre o cozinheiro do Jair Bolsonaro, me dá um toque?”
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