ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
O palhaço trágico
Ferreirinha parou de achar graça na alegria
Bruno Moreschi | Edição 31, Abril 2009
De iPod nos ouvidos e mergulhado em si mesmo, Ronaldo Ferreira se maquia ao som da bela e desconsolada Gymnopédie I de Satie. Os radiantes potes de tinta amarela, azul e verde não foram nem retirados da mochila. No reflexo do espelho, surge um rosto tisnado de melancolia. O sorriso é negro, levemente côncavo, propositadamente borrado. Escuridão também nas pálpebras. Nas bochechas, a palidez da tinta branca. Cor viva, só mesmo o vermelho de duas lágrimas, uma em cada face. O palhaço Ferreirinha não vê mais motivos para rir. Dramático, sintetiza: “Agora ele chora sangue.”
Sentado numa cadeira de lata, um Ferreirinha cabisbaixo dá início ao espetáculo. Era a festa de aniversário do menino Humberto Farins, que fazia 7 anos. A excitação tomava conta da jovem platéia. Passado um instante de silêncio, Ferreirinha ergue a cabeça e lança uma questão existencial: “Há motivo para eu me levantar, crianças?” Já engatilhadas, umas poucas gargalhadas atravessam o ambiente. São logo seguidas de outra dose de silêncio. As crianças não se mexem, prontas a explodir de felicidade. Ferreirinha volta à carga: “Há de fato motivo para o palhaço se levantar, meus queridos?” Aqui e ali alguns insistem em rir, certos de que no próximo compasso a cadeira se desmanchará e o tombo do palhaço será uma alegria só.
Mas não foi o que aconteceu — e na sala transfixada houve a sutil metamorfose da expectativa em apreensão. Uma névoa de espanto baixou sobre todos. Assustadas, as crianças não responderam à pergunta do palhaço. Do que seriam as risadas, sobrou apenas o inútil conjunto de boquinhas abertas.
Ferreirinha se levantou e abriu os braços em cruz. Olhou para o céu e, perante o silêncio das esferas, soltou uma gargalhada de desespero: “Por que não chove mais?!” E, virando-se para o aniversariante, lamentou: “Mais um ano, Humbertinho. Mais um ano que se foi para você.”
Na noite desse mesmo dia, Ronaldo Ferreira teve de enfrentar a indignação de sua mulher, Suzana Ferreira, 34 anos: “Se você continuar com essa mania de não sorrir, vai faltar dinheiro no fim do mês.” O marido permaneceu calado no sofá. Na manhã seguinte, deixou um bilhete ao lado da caneca de leite de Suzana: “Seria inexplicável explicar o explicável. Sei que você está decepcionada. Isso vai passar. Ainda serei o palhaço lúdico pelo qual você se apaixonou.”
Escreveu só para ganhar tempo. Não pretendia voltar a ser o palhaço que durante anos animara exemplarmente os aniversários chiques dos bairros de Higienópolis, Jardins e Jardim Paulistano, em São Paulo.
Ferreirinha foi sempre um palhaço atualizado. Começou com o tradicional aperto de mão que dá choque e com a flor na lapela que esguicha água, mas logo se adiantou à concorrência. Quando apareceram os estojos de mágico, pediu à irmã que trouxesse dos Estados Unidos o mais completo que havia. Fez curso de malabares com tocha quando percebeu que a pirotecnia deslumbra as crianças. Comprou luzes de néon para iluminar o palco. Não mais: “Hoje eu quero a tristeza sem truques.”
A desolação chegou em novembro do ano passado, precisamente na hora em que cortou o bolo dos seus 37 anos. Estavam ele e a família. Quando todos foram dormir, ficou para trás e se pôs a assistir, pela décima sétima vez, seu filme predileto: O Homem Que Ri, de 1928, um clássico do cinema mudo alemão. Chorou como sempre ao ver o ator Conrad Veidt no papel do trágico palhaço Gwynplaine, em cujo rosto fora talhado à faca o perpétuo esgar de um sorriso. Ferreira se deu conta de que a alegria não se dissociava da