Sempre morremos de insuficiências, anomalias, falências, disfunções, paradas. Podem ser crônicas ou agudas. A linguagem dos atestados de óbito é a linguagem da franqueza WAKE (1974)_©MALCAH ZELDIS_SMITHSONIAN AMERICAN ART MUSEUM_WASHINGTON, DC_ART RESOURCE, NY_LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL 2012
O papa-defunto
No interior dos Estados Unidos, um profissional da morte relata sua experiência: “Aqui, na minha pequena cidade, como em toda parte do mundo, morre-se muito. Se não fosse assim, não teria como pagar as minhas contas. Cuido dos mortos. Mas os mortos não ligam. Se os preparo para o velório, se os visto com roupas limpas, se os deixo bonitos, não é por eles. É pelos vivos.”
Thomas Lynch | Edição 67, Abril 2012
Todo ano enterro uns 2 mil habitantes da minha cidade. Outros 2 ou 3 mil eu levo para o crematório para serem queimados. Vendo caixões, jazigos e urnas para as cinzas. Tenho um negócio paralelo com lápides e monumentos. Faço arranjos de flores sob encomenda.
Além dos bens tangíveis, negocio o uso do meu imóvel: 3 mil metros quadrados, mobiliados e equipados com uma abundância de frisos ao longo das paredes e sancas de gesso junto ao teto – tudo, claro, em tons pastel. A parafernália toda está penhorada e repenhorada até uma data bem lá no final do século. Minha frota de viaturas inclui um carro fúnebre, dois Cadillac Fleetwood e uma minivan com vidros escurecidos, que nosso catálogo de preços lista como veículo de trabalho e todo mundo na cidade chama de Táxi de Defunto.
Antigamente eu usava o método do preço unitário – o velho esquema do pacote completo. O cliente tinha que se preocupar com uma só cifra. Era uma cifra alta. Agora tudo é subdividido em itens. É a lei. Assim, existe um rol extenso de itens, preços e ressalvas (essas, em itálico), um troço parecido com cardápio de restaurante ou catálogo da Sears; às vezes, as opções que a lei nos obriga a oferecer acabam ficando com aquele jeitão de tranca elétrica ou desembaçador de vidro traseiro. Quase sempre eu me visto de preto, para que o pessoal não se esqueça de que o assunto aqui não são os Dodge Darts. O preço que aparece no pé da lista continua a ser alto.
Num bom ano, o bruto chega a quase 1 milhão, 5% do qual eu tenho a esperança de chamar de lucro. Sou o único papa-defunto da cidade. Tenho o monopólio do mercado.
O mercado, bem modesto, é calculado segundo o que se chama de taxa bruta de óbitos – o número de mortes anuais por mil pessoas.
O negócio funciona assim.
Imagine uma sala grande onde você deu um jeito de enfiar mil pessoas. Daí, em janeiro, você bate e tranca as portas, não sem antes deixar comida e bebida em abundância, televisão colorida, revistas e camisinhas. A amostragem deve respeitar uma distribuição etária com grande incidência de gente nascida depois da Segunda Guerra, a tal explosão demográfica chamada de baby boom, bem como dos filhos dessa gente – 1,2 filho por pessoa. Um em cada sete adultos é das antigas, uma turma que, se não estivesse no tal salão, na certa andaria por uma dessas comunidades da terceira idade, ou quem sabe numa casa de repouso. Essa é a ideia geral. O grupo incluirá quinze advogados, um curandeiro holístico, três dúzias de corretores de imóveis, um técnico de vídeo, alguns terapeutas e uma revendedora Avon. O resto é de biscateiros, gerentes de nível médio, gente sem jeito para nada ou aposentados.
Agora, vem a mágica – no final de dezembro, quando você escancarar as portas do salão, só 991,6 pessoas – um pouco mais, um pouco menos – sairão dali na vertical. Destas, 260 serão revendedoras Avon. As outras 8,4 terão se tornado a taxa bruta de morte.
Aqui vai outra estatística.
Dos 8,4 cadáveres, dois terços serão de velhotes, 5% serão de crianças e o resto (pouco menos de 2,5 cadáveres) será de pessoas nascidas no baby boom – na certa, corretores de imóveis e advogados –, um dos quais, sem dúvida, terá sido eleito para um cargo público durante o ano. Além do mais, três terão morrido de acidente vascular cerebral ou de problemas coronarianos, dois de câncer e apenas um de acidente de trânsito, um de diabete e um de violência doméstica. O pouco que resta terá morrido por intervenção divina ou suicídio – muito provavelmente, o curandeiro holístico.
A cifra mais conspicuamente ausente nas tabelas das seguradoras e nas pesquisas demográficas é aquela que chamo de “O Grande”. Ela se refere ao número de indivíduos em cada 100 pessoas que morrerão. A longo prazo, O Grande oscila aí mais ou menos por volta de… bem, 100% cravados. Se isso aparecesse nas tabelas, iriam chamar de expectativa de morte e ninguém mais compraria nada no mercado futuro. Apesar disso, é um número útil e traz seus ensinamentos. Diante dele, você talvez se esforce para descobrir o que fazer da vida. Talvez ele te leve a sentir certa afinidade com o resto da humanidade. Talvez ele te deixe histérico. Quaisquer que sejam as implicações da expectativa de morte de 100%, faça as contas de como esta cidade é grande e entenda por que ela me gera trabalho constante, ainda que imprevisível.
Aqui, morre-se em todas as horas do dia, sem nenhuma preferência por este ou aquele dia da semana, ou por algum mês do ano; não há predileções que definam uma alta ou baixa temporada para morrer. E nem o alinhamento das estrelas, a condição da Lua ou o calendário litúrgico têm qualquer coisa a ver com o assunto. A localização tanto faz, qualquer lugar serve. Eles partem de pé ou na horizontal, em carros Chevrolet ou em asilos, dentro de banheiras ou nas estradas interestaduais, em emergências de hospitais, nas salas de cirurgia ou em BMWs. E embora talvez dediquemos mais equipamentos ou mais importância a mortes que preferem ocorrer em lugares assinalados por iniciais – UTI é, de certo modo, mais apropriado do que Casa de Repouso Roseiral –, também é verdade que para os mortos não faz a menor diferença. Destarte, os mortos que enterro e calcino são como os mortos que os precederam, para os quais o tempo e o espaço viraram coisas de uma irrelevância mortal. Essa perda de interesse é, na realidade, um dos primeiros sinais seguros de que alguma coisa séria está prestes a acontecer. No momento seguinte, eles param de respirar. Ao chegar nesse ponto, é certo que tiro no peito ou choque e trauma provocarão mais rebuliço e tinta do que AVC ou HVC. Mas nenhuma causa de morte é menos permanente do que outra. Qualquer uma serve. Os mortos não ligam.
E o quem também não importa muito. Dizer “Eu estou bem, você está bem e, a propósito, ele morreu!” é, para os vivos, uma espécie de consolo.
É por isso que dragamos rios e fazemos varreduras em aviões acidentados e prédios bombardeados.
É por isso que a expressão “desaparecido em combate” é mais dolorosa do que “não resistiu aos ferimentos”.
É por isso que temos caixões abertos e todo mundo lê obituário de jornal.
Saber é melhor do que não saber, e saber que foi você é infinitamente melhor do que saber que fui eu. Porque, se fui eu o cara que morreu, você estar vivo ou fulano estar vivo não me interessará muito. Danem-se todos vocês, porque para os mortos não faz diferença alguma.
É claro, os vivos, tolhidos por seus advérbios de tempo e por seus cálculos atuariais, ainda se importam. Essa é a diferença e é graças a isso que consigo ganhar a vida. Os vivos são cuidadosos e, não raro, dedicados. Os mortos são descuidados, ou, talvez, sem cuidados. Seja como for, não faz diferença, para eles. Essas são verdades verificáveis e incontestáveis.
Minha falecida sogra, ela mesma uma verdade verificável e incontestável, adorava dizer bravatas a torto e a direito, à maneira do James Cagney – por exemplo: “Quando eu morrer, me joguem dentro de uma caixa e me larguem num buraco.” Mas toda vez que eu lembrava a ela que, em essência, era isso que fazemos com todo mundo, a mulher ficava emburrada e um tiquinho irritadiça.
Mais tarde, diante de um prato de carne assada, ela invariavelmente me saía com esta: “Quando eu morrer, é só me cremar e espalhar as cinzas.”
Minha falecida sogra tentava transformar indiferença em destemor. As crianças paravam de comer e olhavam umas para as outras. A mãe das crianças suplicava: “Ah, mãe, não fale assim.” Eu pegava meu isqueiro e começava a brincar com ele.
Da mesma forma, o padre que me casara com a filha dessa mulher – um homem que adorava golfe, cibórios dourados e trajes eclesiásticos de linho irlandês; um homem que dirigia um grande sedã preto com interior cor de vinho e que vivia de olho numa vaga para cardeal –, esse mesmo sujeito, ao deixar certo dia o cemitério, sentiu-se no dever de me dar a seguinte instrução: “Não quero nenhum caixão de bronze. Não, senhor. Nada de orquídeas ou rosas, nem limusines. O que quero é uma caixa de pinho sem acabamento ou pintura, uma silenciosa missa sem música, sem incenso, e a cova rasa dos pobres. Nada de pompa e circunstância.”
Queria, explicou ele, ser um exemplo de simplicidade, de moderação, de piedade e de austeridade – plenamente sacerdotal e, ao que parecia, pleno de virtudes cristãs. Quando eu lhe disse que ele não precisava esperar, que, se quisesse, podia começar seu ministério de bom exemplo naquele mesmo dia; que podia largar o country club para dar suas tacadas no campo de golfe público, e trocar sua carruagem de rei por um Chevette de segunda mão; que, livre de suas casimiras, de seus sapatos de couro, de suas costelinhas de carne de primeira, livre de suas noites de bingo e de campanhas para angariar fundos, ele poderia transformar-se, em nome de Jesus, na própria encarnação de são Francisco, ou de santo Antônio de Pádua; quando eu disse, para concluir, que estava à sua disposição para ajudá-lo nesse intuito, que ficaria feliz em distribuir suas economias e seus cartões de crédito entre os pobres da paróquia, e que eu, quando o triste dever me chamasse, o enterraria de graça à maneira como, àquela altura, ele já estaria acostumado; quando disse essas coisas ao homem, ele não respondeu absolutamente nada, apenas assestou um olho selvagem em minha direção, do jeito como, anos atrás, o clérigo deve ter olhado para Sweeney, antes de lançar sobre ele a maldição que o transformou para sempre num pássaro.[1]
Evidentemente, o que eu estava tentando explicar para o sujeito é que ser um santo morto vale tanto quanto ser um filodendro morto ou um peixinho de aquário morto. Viver é a prova dos nove, e sempre foi. Santos vivos ainda sentem as chamas e os estigmas deste vale de lágrimas, a dor da castidade e as agruras da consciência. Uma vez mortos, deixam que suas relíquias falem por si, porque, como tentei explicar para o tal padre, para os mortos, não faz diferença.
Só faz diferença para os vivos.
Peço desculpas por estar me repetindo, mas esse é o fato central do meu ramo – depois que você morre, nada que se possa fazer por você ou com você será capaz de te trazer algum benefício ou te causar algum mal; qualquer ato vil ou gesto de decência terá impacto sobre os vivos, aos quais a tua morte acontece, se é que ela de fato acontece a alguém. São os vivos que têm de viver com essas coisas. Você não. Deles é a dor ou o contentamento que tua morte traz. Deles é a perda ou o ganho que ela provoca. Deles é o prazer e o sofrimento da memória. Deles é a fatura dos serviços fúnebres prestados e deles é o cheque que mandam pelo correio para pagar a conta.
E existe a resposta franca, fartamente comprovada, a qual, agora que parei para pensar, parece ser a de mais difícil compreensão para a velha parentela do teu marido ou esposa, para o padre da paróquia e para pessoas completamente desconhecidas que vivem me abordando na barbearia, em festas e em reuniões de pais no colégio, determinadas ou obrigadas pelo dever de me informar o que querem que eu faça com elas quando morrerem.
Descansem, é a minha resposta.
Quando você morrer, fique de papo para o ar, tire o dia de folga e deixe que o marido ou a esposa ou os filhos ou o irmão decidam se você vai ser enterrado, ou cremado, ou disparado do cano de um canhão, ou abandonado à própria sorte numa vala qualquer. Não é o teu dia de tomar providências, porque para os mortos não faz diferença.
Um outro motivo por que as pessoas vivem ensaiando comigo suas exéquias tem a ver com o medo da morte que todo mundo de mente sã tem. É uma coisa saudável. Evita que a gente faça besteiras no trânsito. Sustento que esse medo é uma coisa que devíamos ensinar para os filhos.
Existe a crença – amplamente difundida entre mulheres que namorei, rotarianos aqui da região e amigos dos meus filhos – de que eu, por ser o papa-defunto aqui, tenho um fascínio anômalo e um interesse especial pelos mortos, que tenho acesso a informações sigilosas dos mortos e até um vínculo estreito com eles. Essa gente supõe, alguns talvez por razões defensáveis, que eu queira seus corpos.
É uma ideia interessante.
Mas a verdade é a seguinte.
Estar morto é uma – a pior, a última –, mas apenas uma da série de calamidades que afligem não só a nossa espécie, mas muitas outras também. A lista, de modo algum completa, inclui gengivite, obstrução intestinal, pedido de divórcio, auditoria fiscal, opressão espiritual, problemas de fluxo de caixa, insurreição política e mais isso, e mais aquilo e mais aquilo outro. Não há escassez de desgraças. Não tenho atração maior pelos mortos do que o dentista por gengivas inflamadas, ou o médico por entranhas podres, ou o contador pelo aumento vertiginoso dos gastos. Tenho tão pouco estômago para a desgraça quanto tem o banqueiro ou o advogado, o pastor ou o político – pois a desgraça é desleixada e anda por toda parte. A desgraça é o cheque sem fundo, o ex-cônjuge, a turba na rua, a Receita Federal – que, a exemplo dos mortos, não sente nada e, a exemplo dos mortos, não se importa.
O que não é o mesmo que dizer que os mortos não importam.
Importam, sim. Importam, sim. É claro que importam.
Segunda-feira passada, de manhã, Milo Hornsby morreu. A senhora Hornsby me telefonou às duas da madrugada para dizer que Milo tinha expirado e me pediu para cuidar de tudo, como se o estado dele fosse do tipo passível de recuperação ou melhora. Às duas da madrugada, arrancado à força da fase REM do sono, me passou pela cabeça dizer: Apague a luz, bote o Milo na função snooze, durma de novo e me telefone quando for de manhã. Mas Milo tinha morrido. Num instante, num piscar de olhos, Milo escapuliu de forma irremediável e ficou fora de alcance, para além da senhora Hornsby e dos filhos, para além de suas clientes na lavanderia, para além de seus camaradas do Clube dos Ex-Combatentes, para além do Grão-Mestre da Maçonaria, para além do pastor da Primeira Igreja Batista, para além do carteiro, do conselho de zoneamento, da Câmara Municipal e da Câmara do Comércio; para além de todos nós e de qualquer perfídia ou gesto de bondade que quiséssemos lhe dirigir. Milo morreu.
Letras xis em seus olhos, luzes apagadas, cortinas.
Indefeso, inofensivo.
Milo morreu.
É por isso que eu não desperto afobado, café, barba rápida, chapéu e casacão, não esquento o motor do Táxi de Defunto e saio pela via expressa de madrugada por causa do Milo. Ele não tem mais causa nenhuma. É por ela que faço tudo isso – por ela, que se tornou, no mesmo instante e no mesmo piscar de olhos, assim como a água vira gelo, a viúva de Hornsby. Vou lá por causa dela –, porque ela ainda pode chorar, se importar, rezar e pagar minha conta.
O hospital onde Milo morreu é o suprassumo dos hospitais. Tem plaquinhas em todas as portas anunciando um órgão, um processo biológico ou uma função do corpo. Gosto de pensar que, tomadas em conjunto, as palavras redundariam em A Condição Humana, o que nunca acontece. O que resta de Milo, os restos mortais, está no porão, entre EXPEDIÇÃO E RECEPÇÃO e LAVANDERIA. Milo gostaria disso, se ainda estivesse gostando das coisas. A sala de Milo se chama PATOLOGIA.
O linguajar médico para a morte enfatiza os distúrbios.
Sempre morremos de insuficiências, de anomalias, de falências, disfunções, paradas, acidentes. E todas podem ser crônicas ou agudas. A linguagem dos atestados de óbito – o de Milo diz “Insuficiência cardiorrespiratória” – é como a linguagem da fraqueza. Da mesma forma, sobre a senhora Hornsby, em seu sofrimento, dirão que está deprimida, arrasada, que seu mundo desmoronou, que ela está em frangalhos como se houvesse na mulher alguma falha estrutural. É como se a morte e o sofrimento não fizessem parte da Ordem Geral das Coisas, como se a insuficiência de Milo e o choro de sua esposa fossem, ou devessem ser, fontes de constrangimento. “Reagir bem” para a senhora Hornsby significaria que ela está resistindo, suportando a tormenta, ou sendo forte para poder amparar os filhos. Temos farmacêuticos à disposição para ajudá-la. É claro, para Milo, “reagir bem” significaria estar de volta ao andar de cima do hospital, segurando a onda, mantendo os medidores e os monitores apitando a intervalos regulares.
Mas Milo está no porão, entre EXPEDIÇÃO E RECEPÇÃO e LAVANDERIA, dentro de uma gaveta de aço inoxidável, embrulhado em plástico branco, dos pés à cabeça, e – por causa da cabeça pequena, dos ombros largos, da barriga considerável, das pernas descarnadas e da cordinha branca da etiqueta de identificação amarrada no dedão e no tornozelo – ele se oferece, para o mundo, como um esperma gigante.
Assino um registro declarando que vou removê-lo e levo Milo embora. De certo modo, continuo pensando que Milo está se importando, o que, agora está claro, todos nós sabemos que não é verdade – porque os mortos não ligam.
De volta à agência funerária, no 1º andar, na sala de embalsamamento, atrás de uma porta com a plaquinha PRIVATIVO, Milo Hornsby flutua sobre uma mesa de porcelana, à luz de lâmpadas fluorescentes. Desembrulhado, estendido, Milo começa a ficar mais parecido consigo mesmo – olhos arregalados, boca aberta, submetendo-se novamente à gravidade dos corpos. Faço sua barba, fecho seus olhos, sua boca. É o que chamamos de ajuste das feições. Estas são as feições – os olhos e a boca – que nunca ficarão do jeito como eram, em vida, quando se abriam e se fechavam o tempo todo, se concentravam, faziam sinais, nos diziam alguma coisa. Na morte, o que nos dizem é que não farão mais nada. O último detalhe a ser tratado são as mãos de Milo – uma sobre a outra em cima do umbigo, numa atitude de descontração, repouso, serenidade.
Elas também não farão mais nada.
Lavo suas mãos antes de ajeitá-las.
Quando minha esposa saiu de casa, alguns anos atrás, os filhos ficaram aqui, assim como as roupas sujas. Foi uma notícia bombástica numa cidade pequena. Houve os mexericos e a boa vontade que fazem a fama de lugares como este. E embora tenha havido muito falatório, ninguém sabia exatamente como falar comigo. Minha impressão é de que as pessoas se sentiam desamparadas. E assim me davam travessas de carne assada, levavam as crianças para o cinema ou para passear de canoa, traziam as irmãs mais jovens para me visitar. O que Milo fez foi mandar a van de sua lavanderia passar na minha casa duas vezes por semana, durante dois meses, até eu conseguir uma empregada. Milo recolhia cinco sacolas de roupa de manhã e devolvia na hora do almoço, as roupas limpas e dobradinhas. Nunca pedi que fizesse aquilo. Eu mal o conhecia. Nunca fui à casa dele nem à sua lavanderia automática. Sua esposa nunca esteve com minha esposa. Os filhos de Milo eram crescidos demais para brincar com os meus.
Depois que a empregada começou a trabalhar lá em casa, fui agradecer ao Milo e pagar a conta. As faturas especificavam o número de partidas de roupa, as lavadoras e as secadoras, o detergente, os alvejantes, os amaciantes. Acho que o total chegou a 60 dólares. Quando perguntei ao Milo qual era o preço da coleta e da entrega da roupa em domicílio, o preço de passar, dobrar e separar tudo pelo tamanho, e de salvar a minha vida e a de meus filhos ao permitir que continuássemos a viver com roupas limpas, toalhas limpas e roupas de cama limpas, “Não se preocupe com isso” foi o que Milo respondeu. “Uma mão lava a outra.”
Coloquei a mão direita de Milo sobre a mão esquerda, depois experimentei o contrário. Depois voltei à forma anterior. Em seguida resolvi que não tinha importância. De um jeito ou de outro, uma mão lava a outra.
O embalsamamento me toma cerca de duas horas.
Já é dia claro quando termino.
Toda segunda-feira de manhã, Ernest Fuller vem ao meu escritório. Ele sofreu um trauma grave na Coreia. Os seus concidadãos desconhecem os detalhes do ocorrido. Ernest Fuller não manca, o corpo é íntegro, e por isso todo mundo pensa que foi alguma coisa que viu na Coreia que o deixou ligeiramente simplório, de vez em quando perplexo, o tipo que estanca o passo abruptamente no meio das longas caminhadas diárias para ficar parado, refletindo a fundo sobre o significado do lixo, e se detém para contemplar demoradamente tampinhas de garrafa e embalagens de chiclete. Ernest Fuller tem um sorriso nervoso e um aperto de mão de peixe morto. Usa um boné de beisebol e óculos de lentes grossas. Todo domingo à noite, Ernest vai ao supermercado e compra os jornais populares expostos junto aos caixas, com manchetes que em geral envolvem gêmeos siameses, astros de cinema ou discos voadores. Ernest é um ás da leitura dinâmica e um prodígio da matemática, mas por causa do trauma que sofreu nunca teve emprego e jamais se candidatou a nenhum trabalho. Toda segunda-feira de manhã, Ernest me traz recortes de matérias de jornal com títulos como: HOMEM DE 200 QUILOS CAI DO CAIXÃO – UMA NOTÍCIA DE PESO, ou EMBALSAMADOR DAS CELEBRIDADES DIZ QUE ELVIS É ETERNO. Na manhã de segunda-feira em que Milo Hornsby morreu, o recorte de jornal de Ernest tinha a ver com uma urna cheia de cinzas, em algum lugar da Inglaterra, que emitia suspiros e grunhidos, às vezes assoviava, e achavam que em breve começaria a falar. Cientistas locais não conseguiam explicar o caso. Tinham feito vários testes. No entanto, a viúva das cinzas, deixada com nove filhos e sem nenhuma propriedade, está convencida de que seu afetuosamente amado e drasticamente reduzido esposo está tentando lhe transmitir os números da loteria. “Jack jamais deixaria a família na mão”, diz ela. “Nós éramos tudo para ele.” Há uma foto dos dois, a viúva e a urna, o vivo e o morto, a carne e o bronze, a vitrola e o cachorrinho da vitrola. Ela está com a orelha em pé, atenta, à espera.
Estamos sempre esperando. Esperando uma palavra amiga ou os números da quina vencedora. Esperando um sinal ou um prodígio, alguma mensagem de nossos queridos mortos a indicar que eles ainda se importam. Ficamos contentes quando fazem coisas fora do comum, quando se erguem dos túmulos, ou caem do caixão, ou falam conosco em nossos devaneios. Ficamos felizes da vida, como se os mortos ainda se importassem, tivessem um projeto, ainda estivessem vivos.
Mas o fato nu e cru, triste e bem sabido, é que a maioria de nós ficará nos caixões, mortos por muito tempo, e que nossas urnas e sepulturas jamais emitirão som algum. Nossa razão e nossos réquiens, nossas lápides e missas fúnebres nem nos levarão ao paraíso nem nos impedirão de lá entrar. O sentido de nossas vidas e as memórias delas pertencem aos vivos, assim como nossos enterros. Qualquer existência que os mortos porventura tenham neste momento, eles só a têm por causa da fé dos vivos.
Por aqui, aquecemos a sepultura nos enterros de inverno, como se fossem carícias preliminares antes de escavar a terra. Serve para desprender a geada que endurece o solo de modo a permitir que o coveiro e sua retroescavadeira façam a cova. Enterramos Milo na quarta-feira. Felizmente, o que enterramos ali, num caixão de carvalho, logo abaixo da linha da geada, tinha deixado de ser Milo. Milo tornara-se a ideia de si mesmo, um acessório permanente da terceira pessoa e do pretérito perfeito, a perda de apetite e a insônia da esposa, a ausência em lugares onde o procuramos, a ruptura dos hábitos das coisas que fazíamos juntos, o braço ou a perna amputados que continuamos a sentir, nossa mão que lavava a outra. J
[1]Lenda irlandesa. Um clérigo iracundo condenou o rei Sweeney a vagar pela Irlanda nu e agitado feito um pássaro. Com frio e com fome, Sweeney começou a levitar, e de suas costas surgiram asas. Em pouco tempo, transformou-se em pássaro.
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