Biden com Dilma, na posse do segundo mandato: o receio é de que os paralelos com o levante de 6 de janeiro em Washington se tornem óbvios demais para que a Casa Branca siga em silêncio CREDITO: ERALDO PERES_2015_AP PHOTO_IMAGEPLUS
O parceiro silencioso
Biden quer distância de Bolsonaro – mas quer o Brasil alinhado contra a China
Brian Winter | Edição 180, Setembro 2021
Tradução de Rogério Galindo
Desde que tomou posse em 20 de janeiro, Joe Biden encontrou tempo para conversar por telefone ou pessoalmente com líderes de mais de três dezenas de países, desde os muito grandes (China, Índia, Austrália) até os muito pequenos (Estônia, Emirados Árabes Unidos, Bélgica). A lista incluiu aliados próximos de Washington, como o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau e o presidente francês Emmanuel Macron, assim como figuras consideradas problemáticas, ou vistas como rivais, a exemplo do turco Tayyip Erdoğan, do polonês Andrzej Duda e do maior bicho-papão de todos: o russo Vladimir Putin. Na América Latina, Biden falou com os presidentes da Colômbia e da Guatemala, além de ter conversado com o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, o segundo líder a receber um telefonema de Biden depois da posse (o primeiro foi Trudeau), embora tenha sido um dos últimos a reconhecer a contestada eleição de Biden.
A ausência mais notável: Jair Bolsonaro, presidente do sexto país mais populoso do mundo, que chegou a bater continência para a bandeira dos Estados Unidos enquanto fazia campanha na Flórida e que, desde a sua posse, adotou a política externa mais abertamente pró-Washington implantada por um líder brasileiro desde o retorno da democracia em 1985. Nos últimos meses, de acordo com fontes que ouvi em Brasília e em Washington, emissários de Bolsonaro têm perguntado com alguma insistência sobre uma conversa com Biden. A resposta oficial é que o presidente dos Estados Unidos está ocupado – mas nenhum dos dois lados realmente acredita nisso. Na cúpula mundial sobre o clima, organizada pela Casa Branca em abril, Biden ouviu pacientemente os discursos de outros líderes globais, mas deixou a sala virtual minutos antes de Bolsonaro, o 19º orador do dia, tomar a palavra. Mais tarde, diplomatas norte-americanos insistiram que foi coincidência, mas uma autoridade brasileira me disse o seguinte: “Parece que Biden faz de tudo para evitar a gente.”
A interpretação parece correta. Biden tem claramente tentado manter distância de um líder que atiçou as chamas na Floresta Amazônica, negou fatos científicos básicos sobre a Covid-19 e questiona a integridade das eleições tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que segue – ainda – firmemente alinhado ao homem que perdeu o pleito em novembro de 2020: Donald Trump. Sim, Biden estabeleceu diálogo com outras figuras globais de que não gosta. Mas Bolsonaro é considerado um caso especial, sobretudo em função de sua tendência de partir para a guerra total e violenta, no Twitter e na vida real, contra seus críticos no Brasil e no exterior. Todo mundo em Washington se lembra do verão de 2019, quando as críticas de Macron aos incêndios na Amazônia desencadearam uma discussão pública, amarga e bizarra, que terminou com Bolsonaro insultando a esposa do presidente francês. O mais relevante é que a situação levou a um congelamento diplomático entre Brasília e Paris que dura até hoje. Manter uma boa distância entre Bolsonaro e Biden, que também tem um histórico de discussões acirradas, pode ter ajudado a impedir um confronto semelhante, permitindo assim que a relação bilateral mais ampla continue. Muitos acreditam que não falar nada é melhor do que gritar ou tuitar em LETRAS MAIÚSCULAS.
Na verdade, apesar do silêncio em nível presidencial, ou talvez por causa dele, a relação Brasil-Estados Unidos na gestão de Biden até agora vem desafiando as previsões apocalípticas, surpreendendo diplomatas de ambos os lados com sua agenda construtiva e pelo tom (geralmente) civilizado. À medida que 2021 avança, o eixo principal da relação foi gradualmente passando das mudanças climáticas e da Amazônia para as preocupações geopolíticas – ou seja, a China. O governo Biden pode não gostar de Bolsonaro, mas cada vez mais acha que o Brasil é um aliado decisivo no que acredita ser a questão mais central do século XXI, a escalada do confronto entre Washington e Pequim. Especialmente numa época em que outros países latino-americanos, como Peru, Guatemala e México, vêm se tornando mais hostis aos Estados Unidos, ou menos dóceis, o Brasil, com sua postura colaborativa, é considerado um parceiro importante demais para ser ignorado – ainda que seja liderado pelo chamado Trump dos Trópicos.
As visitas de importantes autoridades norte-americanas a Brasília em julho e agosto, lideradas por William Burns, diretor da CIA, e Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional, confirmaram essa virada mais pragmática. A agenda incluiu a próxima licitação do 5G no Brasil e alertas sobre a empresa de telecomunicações chinesa Huawei, cooperação em questões de segurança regional, que envolve a Venezuela, bem como itens mais banais. Ambas as partes consideraram as reuniões cordiais. Mas, logo abaixo da superfície, continua em ebulição um enorme debate dentro do governo dos Estados Unidos, nos círculos acadêmicos e políticos, sobre se ganhos de curto prazo fazem valer a pena o envolvimento com Bolsonaro, ainda que os dois presidentes mantenham a distância. O receio é que isso possa causar danos no longo prazo à reputação de Washington, especialmente porque Bolsonaro dá sinais constantes de que pretende deslegitimar ou cancelar as eleições de 2022, que, segundo as pesquisas atuais, ele pode perder.
Na verdade, as autoridades dos Estados Unidos e do Brasil hoje se questionam basicamente sobre qual é e como deve ser essa relação. De certa forma, isso reflete o tumulto extraordinário que os dois países viveram nos últimos anos, incluindo os dois maiores números de óbitos da pandemia global, estagnação econômica persistente e aumento da desigualdade, além de uma onda crescente de autoritarismo que colocou em perigo as democracias de ambos os países. Por outro lado, essa encruzilhada existencial não é nem de longe uma surpresa, considerando que se trata de países que, 197 anos depois de terem estabelecido relações diplomáticas, nunca souberam realmente como lidar um com o outro.
Em almoços cerimoniais em Brasília ou Washington, existe um cânone de frases célebres sobre a relação bilateral que diplomatas experientes (e alguns jornalistas) são capazes de recitar de cor. Brasil e Estados Unidos são as duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental, com histórias semelhantes de caldeirões multirraciais; os Estados Unidos foram um dos primeiros países a reconhecer a Independência do Brasil; dom Pedro II foi um dos primeiros governantes estrangeiros a pisar nos Estados Unidos, por ocasião do centenário do país em 1876, encantando o público norte-americano ao visitar a Exposição Universal da Filadélfia e testar a mais nova invenção de Alexander Graham Bell, o telefone, exclamando numa perplexidade infantil: “Meu Deus! Isso fala!” Um artigo de 1922 na Southwestern Political Science Quarterly, escrito por J. Fred Rippy, um destacado especialista em América Latina da Universidade de Chicago, afirmava que “as relações entre Estados Unidos e Brasil têm sido mais harmoniosas, talvez, do que as de quaisquer outras duas nações americanas”.
Desde então, o cenário se tornou mais complexo, com altos (quando o Brasil aderiu à causa aliada e enviou tropas para lutar na Segunda Guerra Mundial) e baixos (o apoio dos Estados Unidos ao golpe militar de 1964). Embora os laços bilaterais tenham se mantido quase sempre em tom cordial, muitos acreditam que a marca principal do relacionamento foi uma relativa ausência de vínculo – algo que o renomado brasilianista Albert Fishlow certa vez chamou de “A Relação Inexistente”. Nos últimos trinta anos, desde que o Brasil voltou à democracia e a Guerra Fria chegou ao fim, surgiram duas escolas de pensamento aparentemente opostas sobre como lidar com esse vácuo. A primeira é que os dois governos devem buscar um grande salto à frente, um breakthrough, que finalmente venha a cimentar (ou restaurar) sua proximidade natural. A outra, conforme articulada pelo falecido intelectual brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira e outros, é que Brasil e Estados Unidos são na verdade rivais com interesses inerentemente divergentes – e esse seria o motivo de tantas tentativas de colaboração culminarem em frustração, mal-entendidos e gafes.
Certamente há indícios para sustentar esta segunda visão. Observadores de longa data ainda lamentam a viagem de Ronald Reagan a Brasília em 1982, quando o presidente norte-americano ergueu sua taça de vinho em um banquete para brindar “o povo da Bolívia” – aparentemente confirmando que, aos olhos do governo dos Estados Unidos, o Brasil seria sempre apenas mais um pobre país em seu quintal. Mais recentemente, a tentativa de Lula de escantear os Estados Unidos e intermediar um acordo nuclear com o Irã durante o último ano de sua Presidência em 2010 foi vista em Washington como a manifestação definitiva da importância exagerada que o Brasil se atribui no cenário mundial. Qualquer menção à espionagem feita pelos Estados Unidos, revelada em 2013 por Edward Snowden, então colaborador da Agência de Segurança Nacional, que fez com que Dilma Rousseff cancelasse uma esperada visita de Estado à Casa Branca, ainda leva a geração atual de diplomatas de ambos os países a balançar a cabeça e lamentar as oportunidades perdidas em áreas como comércio e cooperação militar. “Estávamos tão perto” – é o que se costuma ouvir.
O governo norte-americano, por sua vez, parece perpetuamente incerto sobre como lidar com qualquer grande país latino-americano que não seja um aliado incondicional ou um rival juramentado. Mesmo com a influência global dos Estados Unidos em evidente declínio, há gente em Washington que parece determinada a tratar o Brasil e o resto do Hemisfério Ocidental como uma espécie de museu de seus dias de glória do século XX, como deixa evidente a tentativa absurda do governo Trump de ressuscitar e defender a Doutrina Monroe, que, lançada na primeira metade do século XIX, alertava outros países para ficarem longe das Américas. Mesmo em governos de presidentes do Partido Democrata, as autoridades às vezes têm dificuldade em superar a antiga mentalidade da Guerra Fria e em ver o Brasil como ele de fato é. “Ainda estamos tentando descobrir se o Brasil é a Grã-Bretanha ou a França”, disse-me um funcionário que ocupou cargo de alto escalão no governo de Barack Obama, fazendo referência ao apoio quase incondicional dos britânicos aos Estados Unidos e à postura sempre independente dos franceses. Com algumas exceções notáveis, os servidores que lidam com a América Latina no Departamento de Estado e em outros lugares, em sua maioria são fluentes em espanhol e especializados em Cuba, Venezuela ou Guatemala – e muitas vezes admitem (em privado) que “não entendem de verdade” o Brasil, que responde por mais de 40% da população e do Produto Interno Bruto da região.
Do lado brasileiro, grande parte do establishment tradicional da política externa (isto é, fora do círculo imediato de Bolsonaro) ainda tenta forçar a mesma agenda de dez ou quinze anos atrás – incluindo um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidos (ONU) – embora uma década de crises, escândalos e problemas tenham devastado a reputação global do país e o rebaixado da sexta para 12ª maior economia do mundo. Ao colocar tanta ênfase na “reciprocidade” no relacionamento com os Estados Unidos, os diplomatas brasileiros muitas vezes parecem mais interessados no respeito do que nos resultados, sendo incapazes de superar velhos truques que não são mais relevantes ou que nunca tiveram muito a ver com os laços bilaterais. (Alguns continuam reclamando, por exemplo, da decisão do governo Bush, às vésperas da Guerra do Iraque, de destituir o diplomata brasileiro José Maurício Bustani de um órgão de controle de armas em Haia.) Ao longo dos anos, as autoridades brasileiras alternaram lamentos de que os Estados Unidos estão muito ocupados com guerras no Oriente Médio e suas crises internas para dar a devida atenção à América Latina, com declarações como a do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que a melhor forma de Washington ajudar o Brasil era “observando de fora, mantendo distância”. Ao dizer isso, em 2008, Jobim parecia expressar certo consenso tucano/petista.
É claro que houve exemplos de cooperação – esforços de segurança no Haiti ou participação dos Estados Unidos no programa Ciência sem Fronteiras de Dilma. Mas, no geral, a agenda bilateral às vésperas da eleição de Bolsonaro era praticamente a mesma de dez anos antes, com ambições de calibre relativamente pequeno, como viagens sem visto ou o fim da chamada “dupla tributação”. Os membros do grupo que defende um breakthrough sentiam-se como se estivessem se afogando. “É uma vergonha que as duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental não tenham um acordo comercial”, me disse um diplomata brasileiro com longa experiência nos Estados Unidos. “Será que você realmente precisa de dois séculos para fazer algo assim?”
Isso tudo explica por que Bolsonaro foi visto como uma oportunidade em Washington – até mesmo por alguns que sentiam repulsa por seu comportamento antidemocrático e violento. Por um lado, Bolsonaro sempre pareceu mais apaixonado por Trump do que pelos Estados Unidos, o que levantava questões sobre até que ponto uma parceria seria sustentável ao longo do tempo. Os devaneios armamentistas e antiglobalistas de Olavo de Carvalho e de seus vários discípulos, incluindo Ernesto Araújo, o primeiro chanceler de Bolsonaro, pareciam saídos da Fox News, a emissora da direita trumpista, e das guerras culturais dos Estados Unidos, e não da realidade do Brasil. Mas houve quem argumentasse que o entusiasmo de Bolsonaro podia realmente refletir uma mudança mais profunda na sociedade brasileira. Após o boom de 300% nas viagens de brasileiros aos Estados Unidos na década de 2000, pesquisas sugeriam que o Brasil tinha se tornado um dos países mais pró-americanos do mundo. Uma pesquisa do Pew Research Center, realizada em 2016, dizia que 73% dos brasileiros tinham uma opinião positiva sobre os Estados Unidos. Os fluxos de investimento e comércio entre os dois países também aumentaram de modo significativo. Quando Araújo proclamou, antes da posse, que “o céu é o limite” para as relações Brasil-Estados Unidos, houve quem se perguntasse em Washington se os líderes eleitos do Brasil finalmente estavam afinados com a opinião pública brasileira.
Há um certo debate sobre o quanto de fato houve de avanço durante os dois anos do chamado “namoro” entre Trump e Bolsonaro. Os Estados Unidos finalmente realizaram seu sonho de décadas ao conseguir acesso à base de lançamento de satélites de Alcântara, no Maranhão, e os dois governos chegaram a uma série de acordos que, embora técnicos, podem ser considerados importantes, sobre comércio, combate à corrupção e outras questões. Os Estados Unidos apoiaram o Brasil para se tornar membro da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma espécie de clube destinado principalmente a nações ricas, embora tenha causado constrangimentos a Bolsonaro ao preferir por um breve período a Argentina. Mas havia uma percepção generalizada de que os Estados Unidos estavam ganhando muito mais com o acordo do que o Brasil. Alguns diplomatas de ambos os países tinham a impressão de estar sendo incitados a criar uma agenda política para justificar a afeição pessoal dos presidentes, e não para atender aos interesses nacionais de seu país. Em função da conhecida aversão de Trump ao comércio internacional e à reputação radioativa de Bolsonaro entre os democratas no Congresso dos Estados Unidos, o suposto Santo Graal das relações bilaterais – um acordo comercial pleno – nunca foi viável, apesar de insistências ocasionais em contrário.
Tudo que tinha sido ganho parecia estar em perigo quando Biden venceu as eleições. Aparentemente, Bolsonaro nunca cogitara essa possibilidade. Duas semanas antes da votação, durante uma visita a Brasília de Robert O’Brien, assessor de Segurança Nacional de Trump, Bolsonaro disse: “Espero, se for a vontade de Deus, poder comparecer à posse [de Trump] […] não preciso esconder isso, é do coração.” À exceção de Kim Jong-un, da Coreia do Norte, nenhum grande líder global esperou tanto tempo para reconhecer o resultado da eleição: 38 dias. Mesmo depois da sangrenta insurreição no Capitólio em 6 de janeiro de 2021, Bolsonaro continuou a denunciar a “fraude descarada” na eleição, enquanto Ernesto Araújo afirmava que os norte-americanos que questionavam o resultado eram “cidadãos de bem” que não deveriam ser chamados de “fascistas”. O comportamento mais incendiário de todos partiu de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e então presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Depois de se encontrar na Casa Branca com a filha de Donald Trump, Ivanka, na véspera da posse de Biden, ele lamentou publicamente que os desordeiros de 6 de janeiro não tivessem sido suficientemente organizados ou carecessem de “poder bélico mínimo para […] matar todos os policiais lá dentro ou os congressistas que eles tanto odeiam”. Foi um tapa extraordinário na cara da democracia norte-americana.
Tudo isso criou um dilema para Joe Biden. Um veterano em política externa depois de 36 anos no Senado e 8 como vice-presidente, Biden chegou ao cargo conhecendo a América Latina melhor do que qualquer outro presidente na história dos Estados Unidos, tendo viajado à região treze vezes durante o governo Obama, que o encarregou de tentar reconstruir a relação Brasil-Estados Unidos depois do caso Snowden. Mas, quando foi eleito, Biden parecia estar com um espírito menos conciliador. Já tinha lançado o desafio durante a campanha, dizendo num debate que ofereceria ao Brasil 20 bilhões de dólares para proteger a Amazônia – mas que, caso isso falhasse, o país enfrentaria “consequências econômicas significativas” não especificadas. O episódio gerou mais confusão do que qualquer outra coisa. Diplomatas norte-americanos dizem que nunca conseguiram descobrir de onde Biden tirou o valor de 20 bilhões, que nunca mais foi ouvido publicamente. Mas o tom parecia estar definido. Bolsonaro não perdeu tempo para atacar no Facebook, escrevendo em português e inglês, caso alguém não tivesse entendido a mensagem, que não aceitaria “subornos” ou “infundadas ameaças” do Tio Sam.
A relação podia facilmente ter seguido esse caminho. Com Trump fora do governo (e das mídias sociais), Bolsonaro era agora a face mais visível do trumpismo no exterior, um vilão perfeito para a era do Twitter. Uma fatia relevante do público norte-americano, que historicamente dá à política brasileira a mesma importância que atribui a Papua-Nova Guiné, estava pronta para se mobilizar. Isso ficou claro com o alvoroço público que forçou a Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos a cancelar a programação que previa uma homenagem a Bolsonaro em Nova York em 2019, depois que todo mundo se opôs – do prefeito até importantes sindicatos trabalhistas. Em Washington, muitos parlamentares democratas, em especial os integrantes da ala progressista do partido, se opuseram fortemente contra qualquer tipo de envolvimento com o presidente brasileiro. Em Brasília, amigos influentes de Bolsonaro nos círculos conservadores brasileiros lhe diziam que um confronto ajudaria a mobilizar sua base, ao mesmo tempo que desviaria a atenção de sua gestão desastrosa da pandemia e da impopular aliança com o Centrão no Congresso, que começou a se formar já na renovação dos presidentes da Câmara e do Senado. Alguns até insistiram que a Rússia, que viam como parte do “mundo judaico-cristão”, seria capaz de tomar o lugar dos Estados Unidos como o aliado internacional preferido do Brasil. De maneira perigosa, os fatos locais apontavam para um conflito – com o desmatamento na Amazônia nos níveis mais altos dos últimos dez anos e ainda crescendo, e Biden determinado a dar às mudanças climáticas um peso inédito na história da diplomacia dos Estados Unidos.
Não existe um momento único que explique por que as pessoas de cabeça mais fria acabaram prevalecendo. Tendo diante de si diversas outras prioridades, incluindo a recuperação da pandemia, Biden e seus principais assessores parecem ter decidido desde cedo que o envolvimento pessoal com Bolsonaro devia ser o menor possível, uma abordagem que uma autoridade norte-americana comparou a extinguir uma fogueira ao deixá-la sem oxigênio. Diplomatas dos dois países, assim como o general Augusto Heleno, a quem se atribui a capacidade de dizer à família Bolsonaro o que fazer, trabalharam furiosamente nos bastidores para convencer todos a respirar fundo e ficar fora do Twitter. Na verdade, a palavra “Biden” não apareceu em nenhum tuíte de Bolsonaro desde 20 de janeiro, dia da posse, quando ele – ou alguém escrevendo em seu nome – parabenizou magnanimamente o novo presidente dos Estados Unidos e enfatizou a “longa relação entre Brasil e Estados Unidos”. Nos bastidores, Bolsonaro continuou a enviar cartas diplomáticas educadas a Biden, a maioria das quais não foi divulgada ao público, incluindo uma mensagem que um diplomata considerou “bonita” em 4 de julho, o Dia da Independência dos Estados Unidos.
Mas nenhum gesto teatral teria importância sem um progresso real na frente política, em especial na Amazônia. Há em Brasília quem diga que Todd Chapman, o embaixador dos Estados Unidos com chapéu de caubói nomeado por Trump e mantido por Biden durante os primeiros seis meses de seu governo, foi quem conseguiu suavizar as relações com a família Bolsonaro e, ao mesmo tempo, pressionar os brasileiros a concordar com uma ação mais dura na Amazônia. Discretamente, Chapman convocou um pequeno grupo de embaixadores de países europeus e se reuniu com ministros-chave que pareciam entender a importância de reduzir o desmatamento, incluindo a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, que depois levaram o caso ao presidente. Alguns membros da chamada “ala militar” pressionaram por uma ação mais forte, e a renúncia de Ernesto Araújo como ministro das Relações Exteriores em março também abriu espaço para mudanças.
Esses esforços culminaram com o discurso de Bolsonaro na cúpula do clima da Casa Branca, em que ele prometeu acabar com o desmatamento ilegal até 2030 e alcançar a neutralidade das emissões até 2050, ao mesmo tempo em que dizia que o Brasil estava “aberto à cooperação internacional” – chegando a usar uma gravata verde. John Kerry, enviado por Biden para tratar de clima, imediatamente questionou se o Brasil iria cumprir esses compromissos, ao mesmo tempo em que outros lembraram que aliados de Bolsonaro no Congresso continuaram – e continuam até hoje – a promover uma legislação ambientalmente desastrosa, como a chamada Lei da Grilagem. Mas a mudança de tom, somada aos dados preliminares que sugerem que o desmatamento pode ter parado de crescer nos últimos doze meses, ainda que sobre uma base de comparação altíssima, permitiu a Washington – que vinha exigindo resultado no desmatamento ano após ano, e não apenas promessas de longo prazo – ampliar seu foco para outros assuntos, sem deixar a questão da Amazônia de lado.
Na verdade, partes da relação bilateral nunca deixaram de existir, o que inclui desde exercícios militares conjuntos no estado de Louisiana até um acordo sobre a futura exploração da Lua. Mas a principal prioridade dos norte-americanos no relacionamento com o Brasil, e com muitos outros países, é sem dúvida nenhuma a China. A ideia de que Pequim não é apenas um rival, mas uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos e às democracias ocidentais em geral, rapidamente se tornou um consenso bipartidário em Washington, e não apenas uma idiossincrasia passageira dos anos Trump, como muitos observadores presumiram. Essa mudança, impulsionada por eventos como a repressão chinesa em Hong Kong e o genocídio do povo Uigur, bem como a aceleração da ascensão econômica da China em comparação com a dos Estados Unidos na esteira da pandemia, está levando a uma reformulação radical da política externa norte-americana. As comparações com a Guerra Fria são óbvias. A ascensão da China na América Latina nos últimos vinte anos foi amplamente documentada, com o comércio entre Pequim e a região explodindo de 18 bilhões de dólares em 2002 para 315 bilhões em 2020, enquanto se fortaleciam também os laços diplomáticos e na área de segurança. No ano passado, as exportações do Brasil para a China foram três vezes maiores do que as vendas para os Estados Unidos, embora os norte-americanos continuem sendo uma fonte muito maior de investimento. Os funcionários do governo Biden sabem que não podem pedir que o Brasil, ou qualquer outro país da região, faça uma escolha totalmente binária entre Washington e Pequim. Mas o medo é de que, caso o Brasil escolha a Huawei para construir sua rede 5G, isso seja um passo gigantesco que consolidaria por décadas a influência chinesa – econômica, política e militar – no maior país da América Latina.
O registro público da reunião de Bolsonaro com Jake Sullivan, o conselheiro de Segurança Nacional, sugere uma tentativa cuidadosa de equilibrar os dois instintos do governo Biden. Um é obter do Brasil mais colaboração com a questão da China e na preservação da Amazônia. O outro é distanciar-se explicitamente do comportamento antidemocrático de Bolsonaro. “Fomos muito diretos ao expressar grande confiança na capacidade das instituições brasileiras de realizar uma eleição livre e justa”, disse Juan González, principal assessor de Biden para a América Latina, a jornalistas após a reunião. “Podemos colaborar em questões de segurança, cooperação econômica e mesmo assim ser muito claros” sobre a necessidade de manter a democracia, acrescentou. (González desmentiu a informação publicada na imprensa brasileira segundo a qual Bolsonaro teria dito que a eleição de Biden foi fraudada.)
Sullivan também causou incômodo em Brasília ao se reunir separadamente com governadores da região amazônica para discutir o desmatamento. Embora a reunião com Bolsonaro tenha levado a progressos em algumas áreas, os norte-americanos não receberam nenhum compromisso firme sobre a questão do 5G ou sobre o relacionamento com a China em geral. Bolsonaro nunca escondeu seu desprezo pelos chineses, alardeado abertamente durante a campanha presidencial, mas, sob pressão dos militares, do agronegócio e de outros interesses, deixou de tomar medidas que pudessem afastar um comprador tão importante das commodities brasileiras. Por causa dessa e de outras questões, os norte-americanos partiram de Brasília de mãos vazias e com a clara sensação de que o tempo pode estar se esgotando.
No entanto, há razões para acreditar que a visita de Sullivan será lembrada como um ponto alto no relacionamento bilateral, talvez por um bom tempo. Poucas horas depois, Bolsonaro fez algumas de suas ameaças mais explícitas até o momento contra as instituições democráticas do Brasil. “Acho que está chegando o momento [de uma ruptura com a Constituição]”, disse ele, numa entrevista de rádio. Nos dias seguintes, Bolsonaro encenou aquele desfile militar com o objetivo de intimidar o Congresso e fez ameaças e insultos aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Embora o governo Biden até agora tenha se eximido de criticar diretamente o comportamento de Bolsonaro, pode chegar um ponto em que os paralelos com o levante de 6 de janeiro em Washington se tornem óbvios demais para que as autoridades norte-americanas permaneçam em silêncio. Ninguém sabe o que o governo de Biden faria no caso de uma intervenção militar em Brasília para manter Bolsonaro no poder, ou qualquer outra tentativa explícita de roubar as eleições de 2022: se decretariam sanções ou se adotariam algum outro tipo de medida punitiva. Apesar do risco de uma manobra autoritária ser levado a sério por Washington, a esperança ainda é de que as instituições brasileiras no final serão fortes o suficiente para rechaçar qualquer ameaça. Enquanto isso, a próxima cúpula do clima da ONU em Glasgow, na Escócia, em outubro, também deve voltar a atenção do mundo para Bolsonaro e a Amazônia, com consequências imprevisíveis.
O outro espectro que paira sobre a relação tem nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. Com as pesquisas mostrando o ex-presidente prestes a voltar em 2022, as autoridades dos Estados Unidos já avaliam os possíveis desdobramentos. A Presidência de Lula em 2003-10 foi marcada por um relativo equilíbrio entre os dois países. Lula teve relações pragmáticas com os ocupantes da Casa Branca (mais com Bush do que com Obama, um mistério que deixa muita gente perplexa até hoje), mas manteve uma política externa claramente independente, que enfatizou os laços Sul-Sul, incluindo antagonistas dos norte-americanos como Cuba, Venezuela e China. Alguns observadores acreditam que um terceiro mandato de Lula poderia ser significativamente mais antiamericano do que os dois primeiros, dada sua aparente crença de que o apoio dos Estados Unidos foi fundamental para a Operação Lava Jato, que o mandou para a prisão e o tirou das eleições de 2018. Dentro do PT, há quem compare o apoio norte-americano a Bolsonaro ao apoio que Washington deu ao golpe de 1964, teorizando ao mesmo tempo, sem provas, que a visita de Burns, o diretor da CIA, foi de alguma forma planejada para minar a nova candidatura de Lula. Além disso, autoridades norte-americanas não deixaram de notar consternadas uma entrevista que Lula concedeu a um jornal chinês em julho, apelando para uma “parceria estratégica” com Pequim e expressando admiração pelo Partido Comunista por ocasião de seu 100º aniversário, embora também tenha enfatizado a necessidade de um “bom relacionamento” com os Estados Unidos.
Isso jogou mais gasolina no debate que já existia dentro do governo norte-americano sobre até que ponto a Casa Branca deveria trabalhar com Bolsonaro no próximo ano. Alguns acreditam que resta pouco tempo antes que o Itamaraty volte ao seu modus operandi mais resistente aos Estados Unidos, e que Biden não está maximizando os ganhos potenciais com sua decisão de não falar com Bolsonaro. “É infantil”, reclamou uma autoridade norte-americana, observando que Biden não teve os mesmos escrúpulos ao se envolver com o presidente mexicano López Obrador, um líder latino-americano que também minou as instituições democráticas, embora não com a mesma severidade. Outros, ao contrário, temem que o governo Biden já tenha ido longe demais nas tentativas de dialogar com o governo Bolsonaro e não esquecem o que aconteceu na última vez que um líder sul-americano se aliou tão incondicionalmente aos Estados Unidos: Carlos Menem, na era das chamadas “relações carnais” dos anos 1990. A reação foi tão forte que, em pesquisas como a do Pew Research Center, os argentinos ainda estão entre as nações mais antiamericanas do mundo.
Se o mundo realmente está voltando a ser mais bipolar – uma disputa entre duas superpotências tendo a América Latina como importante campo de batalha por influência –, as relações de Washington em toda a região parecem destinadas a permanecer tensas, independentemente de quem esteja no poder. A China já tem mais influência em muitos países do que a União Soviética conseguiu ao longo do século XX, ao passo que os Estados Unidos não são os mesmos. Os governos, incluindo o do Brasil, resistirão aos esforços para induzi-los a tomar partido – e, se for absolutamente necessário, esperarão o máximo possível antes de se comprometerem. Alguns notaram que também aqui a história se repete: apesar de toda a conversa sobre o heroísmo do Brasil na Segunda Guerra Mundial em almoços diplomáticos, a verdade é que Getúlio Vargas manteve seu país fora da guerra até 1942, e só aderiu após um processo de negociação em que os Estados Unidos concordaram em ajudar a criar uma indústria siderúrgica no Brasil, entre outros benefícios. Um esforço semelhante hoje para ajudar a criar um “campeão nacional” do 5G no Brasil, que por sua vez poderia se tornar uma potência em outras partes da América Latina, foi sugerido pelas autoridades norte-americanas como forma de sair do atual dilema envolvendo a Huawei. Mas ninguém tem como saber ainda se Bolsonaro, Lula ou qualquer outro futuro presidente brasileiro aceitaria a ideia.
Alguns assistem a tudo isso, levam as mãos à cabeça horrorizados e se perguntam: isso está realmente acontecendo de novo? A relação Brasil-Estados Unidos está destinada a repetir para sempre velhos padrões? Alguns diplomatas de ambos os governos estão se esforçando, tentando criar um relacionamento com mais nuances. Mas isso também já foi tentado: há cem anos, o lendário diplomata e jornalista brasileiro Manuel de Oliveira Lima advertia em seus escritos que os interesses dos Estados Unidos e do Brasil divergiriam, que Washington se tornaria poderosa demais e insistiria em demonstrações de fidelidade das demais nações do hemisfério. Oliveira Lima deu o passo incomum de doar sua biblioteca pessoal de mais de 40 mil livros, mapas e obras de arte não para uma instituição brasileira, mas para a Universidade Católica da América, em Washington, na esperança de que isso produzisse um melhor entendimento entre as duas nações e, no futuro, uma relação mais equilibrada. Hoje, certamente é possível imaginar um futuro em que Brasil e Estados Unidos se acomodem num equilíbrio maduro, cada um dos dois se sentindo à vontade com o poder, o tamanho e os interesses nacionais do outro. Mas ainda não chegamos lá.