ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O pega-pega da Arte da Guerra
Um clássico chinês em adaptações policiais para todos os gostos
Adam Sun | Edição 22, Julho 2008
Sunzi, o senhor da Arte da Guerra, guru de legiões de executivos, militares, esportistas e expoentes da auto-ajuda, acabou, quem diria, na Estação Carioca do metrô, no centro do Rio de Janeiro. Detrás da porta de vidro, esse clássico da cultura chinesa, velho de 2 500 anos, encara impávido as levas de apressados que se atropelam pelos degraus. No constrito espaço entre o pilar e a escada, os passageiros têm de decidir entre dobrar à direita (zona sul), dobrar à esquerda (zona norte) ou seguir em frente — caso em que darão de cara com uma nutrida máquina de vender livros.
Aninhado como um pacote de Elma Chips, o no. 11 — é esse o compartimento de Sunzi — só deixa sua fortaleza em troca de 4,99 reais, e apenas depois de uma pugna ingrata, jamais imaginada pelo autor: a introdução de uma cédula de 5 reais na fresta do papa-notas se dá por um complexo cabo-de-guerra — põe nota, devolve nota, põe nota etc. — cuja vitória, no último assalto, certamente inspiraria alívio no velho Sunzi.
Ao dar a primeira folheada em sua recente aquisição literária, logo na página 4 o leitor tropeçará com a explicação: “Traduções de Everard Ferguson Calthrop (1908) e Lionel Giles (1910) — e cotejado com as edições de Jean-Joseph-Marie Mariot (1772), em francês, de Samuel B. Griffith (1963), Stephen F. Kaufman (1996), John Minford (2002) e William Lidwell (2006), em inglês.” E ainda: “Tradução de Candida de Sampaio Bastos.” Isso significa o seguinte: a obra foi traduzida para o português por Candida Sampaio a partir das sete obras em inglês. O original chinês, Sunzi Bingfa, é breve — tem 6 mil ideogramas —, ao passo que a tradução original de Lionel Giles ocupa menos de trinta páginas. Caio Bastos Toledo — o responsável pelas notas e comentários da tradução publicada pela editora DPL — se deu ao luxo de comparar esse opúsculo com cinco versões (e nenhuma em português).
É um cotejo de alhos com bugalhos, pois as traduções são tão díspares que não conversam entre si. Lionel Giles escreveu a propósito de Calthrop: “Omissões eram freqüentes, passagens difíceis eram deliberadamente distorcidas ou obscurecidas.” A obra de E. F. Calthrop é rara: sabe-se de uns exemplares espalhados em Cambridge e Oxford. “Consegui o texto com um amigo”, diz Caio Toledo. Já Candida Sampaio, afirma: “Recebi os originais pelo correio eletrônico. Não era identificada a autoria desse material.” Se algum leitor também se der ao trabalho de cotejar a edição DPL com o Sunzi em inglês, constatará que o autor é um só: o respeitado Lionel Giles.
Segundo a advogada Maitê Moro, especialista em direito da propriedade intelectual, a obra de domínio público — no caso, Sunzi Bingfa — não se confunde com a tradução para o inglês: “The Art of War é uma nova obra, protegida como tal pela lei dos direitos autorais.” A validade desse direito “perdura por setenta anos, contados a partir do 1º de janeiro do ano subseqüente à morte do autor”. Ou seja: em domínio público está Sunzi Bingfa, ao passo que The Art of War de Lionel Giles — ele morreu em 1958 — continua a ter dono.
Os excessos da DPL podem parecer café pequeno ante a proeza da editora Jardim dos Livros, cuja Arte da Guerra: Os Treze Capítulos Originais, lançada em tradução e adaptação de Nikko Bushidô, é um embuste desde o frontispício até o último capítulo. O livro, de 2006, traz na capa três afirmações bombásticas: “Tradução do chinês”, “Campeão de vendas”, “Edição completa”. Eis uma mentira: “Tradução do chinês”. A versão Jardim dos Livros é tradução do chinês feita através da língua de Camões mesmo.
Nikko Bushidô promoveu um mega-arrastão nas versões brasileiras de Sunzi Bingfa. Simplesmente surrupiou a produção intelectual de José Sanz (Record, 1983), Mirian Paglia Costa e Caio Fernando Abreu (Cultura, 1994), Sueli Barros Cassal (L&PM, 2000) e Ana Aguiar Cotrim (Martins Fontes, 2002). Não contente, Bushidô arrebanhou também o prodigioso editor Martin Claret e seu prestativo colaborador Pietro Nassetti, tradutor de grandes habilidades, como se verá adiante. E mais: reproduziu até o erro de atribuir a Sunzi uma frase de Santo Agostinho — “O objetivo das guerras é a paz” —, numa demonstração prática da técnica Lavoisier de tradução.
Tentou-se falar com o editor Claudio Varela para ouvir sua versão dos fatos e, principalmente, indagar-lhe se Nikko Bushidô seria uma pessoa, uma instituição ou um ectoplasma. Em vão.
Se o suposto Bushidô demonstrou exuberância na sua violação em série de direitos autorais, a Martin Claret foi seletiva ao criar a sua Arte da Guerra: apropriou-se apenas de uma versão portuguesa do Sunzi de Samuel B. Griffith, assinada por Ricardo Iglésias. Na operação, contou naturalmente com os préstimos de Pietro Nassetti, que se apossou do crédito de Iglésias. De quem o editor Claret, aproveitando a ocasião, tomou alguns trechos para si no prefácio.
Nos domínios de Claret, aparentemente a desatenção com o alheio é método. Em outubro passado, o repórter Euler Belém, do jornal goiano Opção, flagrou a pirataria praticada sobre uma tradução do grego da República de Platão (Fundação Gulbenkian, Lisboa, 1972), feita por Maria Helena Pereira. O Platão da Martin Claret, de 2001, tem como tradutor — sim, sim — Pietro Nassetti. Outra acusação de plágio partiu do poeta e tradutor Ivo Barroso. No artigo “Flores roubadas no jardim alheio”, publicado no site do Jornal de Poesia no final do ano passado, ele aponta as impossíveis coincidências entre a tradução de — sim, ele mesmo — Nassetti das Flores do Mal de Baudelaire e o trabalho do paulista Jamil Haddad (de 1958).
Pelo modus operandi, edições do passado e d’além-mar inspiram o erudito Pietro Nassetti. Na sua prolífica parceria com Claret, o azougue assina também traduções de Maquiavel, Nietzsche, Balzac, Dostoiévski, Shakespeare, Goethe, Rousseau, Aristóteles, Epicuro, Schopenhauer, Marx, Khalil Gibran, Ovídio, Marco Polo etc. etc.
“Se Martin Claret for denunciado, estará sujeito a até um ano de detenção pelo artigo 184 do Código Penal”, explica Maitê Moro. “Esse erro será corrigido. Vamos lançar uma nova tradução e está tudo resolvido”, diz o octogenário Claret, que, habituado à perene ligeireza, talvez mantenha em catálogo, distraidamente, toda uma coleção de vítimas de apropriação indébita. Para desvendar essa possível falcatrua, o leitor terá de dar uma de Sherlock Holmes. Aliás, também traduzido por Pietro Nassetti.