A ameaça dos detritos em órbita assusta mais por seu caráter aleatório: uma lasca de metal em alta velocidade pode atingir qualquer corpo a qualquer momento, vinda de qualquer direção. Um parafuso de 1 cm pode adquirir a força explosiva de uma granada na hora do impacto e produzir efeitos encadeados – um perigo tanto para astronautas como para naves não tripuladas CREDITO: VITO QUINTANS_2021
O perigo do lixo espacial
Há milhões de artefatos humanos orbitando a Terra. Serão recolhidos antes de uma catástrofe?
Raffi Khatchadourian | Edição 178, Julho 2021
Tradução de Sergio Flaksman
Há várias décadas, a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) vem pairando ao redor da Terra numa órbita situada uns 350 km acima do nível do mar. Sua estrutura de massa considerável e retilínea, que lembra uma antena de tevê dos anos 1950, contém centenas de milhares de células fotovoltaicas e uma série de módulos pressurizados com a capacidade para receber quase meio milhão de toneladas, entre ocupantes vivos e equipamentos. Do ano 2000 para cá, a estação tem abrigado tripulantes humanos, que vivem numa área equivalente à de uma casa de seis quartos – o metro quadrado residencial mais caro da humanidade. A estação também é a estrutura mais veloz habitada por seres humanos: orbita nosso planeta a mais de 27 mil km/h, velocidade várias vezes maior que a da rotação da Terra. Um dia na estação, da aurora ao crepúsculo, dura apenas noventa minutos.
Nas primeiras horas de 16 de julho de 2015, membros da Força Aérea dos Estados Unidos (Usaf) perceberam uma novidade alarmante envolvendo a ISS. Desde a Guerra Fria, os militares norte-americanos operam uma rede per-manente de vigilância do espaço. A cada minuto, estações de rastreamento espalhadas pelo planeta transmitem uma torrente de dados para o Complexo da Montanha Cheyenne, no Colorado, uma casamata escavada no granito a mais de 500 metros de profundidade. Uma parte da informação é acumulada pelo Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte (Norad) e outros órgãos envolvidos com a segurança nacional dos Estados Unidos. Outra parte é encaminhada para o 18º Esquadrão de Controle Espacial, na Califórnia, que é o encarregado da prevenção de colisões celestes.
Pouco antes das três daquela manhã, a rede de vigilância detectou que um destroço estava voando em alta velocidade na direção da ISS. Era uma peça de detrito espacial bastante conhecida, que já tinha sido classificada como objeto nº 36912 no extenso levantamento dos artefatos na órbita da Terra conhecido como “catálogo Norad”. O objeto desprendera-se de um satélite meteorológico soviético, lançado em 1979 de uma base dos tempos da Guerra Fria, próxima ao Círculo Ártico. O satélite cilíndrico – semelhante a um boiler antigo – fora criado para durar menos de dois anos. Nas décadas seguintes, acabou desmantelando-se. Em abril de 2015, por exemplo, outro pedaço do mesmo satélite já tinha representado uma ameaça para a estação espacial.
Provavelmente, o objeto nº 36912 se desprendera do escudo térmico do satélite soviético; parecia relativamente leve, mais ou menos do tamanho de uma grande travessa de mesa. Fazia anos que pairava com segurança acima da ISS, mas sua massa e seu formato o tornavam extremamente sensível ao arrasto da atmosfera – ou seja: sua órbita se alterava dramaticamente ao acompanhar a expansão e a contração da atmosfera terrestre em resposta à atividade solar. Semanas antes, a atmosfera tinha inflado, o que fez com que a órbita do 36912 se tornasse bruscamente mais baixa.
A Usaf mantinha o fragmento sob estrita vigilância enquanto ele perdia altitude, ganhando velocidade a cada volta. No espaço, porém, é fácil que objetos menores escapem à detecção, e o 36912 só era visível para dois postos de radar, um no Alasca e outro na Flórida – até que sumiu completamente por mais de uma semana. No dia 16 de julho, quando reapareceu, os analistas da Usaf refizeram seus cálculos às pressas e descobriram que o objeto passaria bem perto da estação espacial às 5h29 (hora do Centro de Controle de Houston, no Texas). Ele ficaria a uns 22 km da espaçonave, mas penetraria uma zona de segurança em torno da estação conhecida como the box, “a caixa”. Em seguida, daria mais uma volta em torno do planeta, em altitude ainda menor, e então entraria numa distância com risco de impacto, ou “conjunção”. Se a chance de que algum objeto dentro “da caixa” colida com a estação for maior do que 1 em 10 mil (0,01%), acende-se o alerta vermelho. No caso do 36912, era maior que 1 em 1 mil (0,1%).
Às 2h44, o Esquadrão de Controle Espacial mandou um aviso a James Cooney, responsável operacional pela trajetória da estação. Cooney, um veterano da Nasa, estava em casa dormindo, mas um aplicativo em seu celular acionava um alarme estridente em casos assim. “O cérebro se conecta na mesma hora”, conta ele, já acostumado a ligações no meio da noite. Um mês antes, a Nasa precisara corrigir a trajetória da ISS para desviar a estação do fragmento de um foguete Minotaur, um antigo modelo de míssil balístico intercontinental que foi readaptado para o envio de cargas ao espaço.
Esse tipo de manobra já tinha sido executado mais de duas dúzias de vezes, e pode ser feito sem maiores problemas, desde que Houston seja avisada com mais de cinco horas e meia de antecedência. Desta vez, porém, quando ligou para a Força Aérea, Cooney descobriu que só faltavam umas quatro horas para o 36912 chegar a seu ponto mais próximo da estação. “Pedi que me repetissem a informação por garantia”, lembra ele. Nunca antes a estação espacial tinha enfrentado tamanha probabilidade de colisão anunciada com tão pouca antecedência. Desviar a estação espacial do caminho do destroço estava fora de questão.
Na mesma hora, Cooney transmitiu as informações para o diretor de voo do centro de Houston, Edward Van Cise. Em seguida, partiu para o centro de controle, onde entrou imediatamente numa tensa reunião a fim de discutir as opções disponíveis. Só havia uma possibilidade: instruir a tripulação a trancar a estação inteira – fechar as escotilhas que uniam os diferentes módulos – e buscar refúgio na cápsula Soyuz, a nave russa que podia servir-lhes de bote salva-vidas. A ISS tinha três ocupantes: um norte-americano, Scott Kelly, e dois russos, Gennady Padalka e Mikhail Kornienko. Uma vez a bordo da Soyuz, eles poderiam se desconectar da estrutura em colapso e retornar à Terra. Em toda a história da estação espacial, sua tripulação só tinha se refugiado a bordo da Soyuz em três ocasiões.
Van Cise entrou em contato com Kelly, que se exercitava numa esteira montada numas das paredes da estação. E avisou que estava “privatizando” a ligação. Traduzindo: a transmissão do centro de controle, que normalmente é franqueada ao pessoal em terra, não seria pública. Mais tarde, Kelly escreveria no diário de bordo que seu primeiro pensamento foi “Ih, fodeu”. No espaço, conversas privadas sem aviso prévio costumam ser prenúncio de más notícias: em sua missão anterior na estação espacial, em 2011, Houston havia “privatizado” a transmissão para informar a Kelly que sua cunhada, a deputada federal pelo Arizona Gabrielle Giffords, tinha sido baleada.
Quando soube que a ligação tratava de assuntos da Nasa, num primeiro momento ficou aliviado. Mas, em seguida, se deu conta da enormidade da situação. “Fodeu”, pensou, de novo. Na verdade, a chamada privatizada era apenas uma gentileza para que estivesse preparado quando o alerta fosse divulgado. A estação espacial usa a Hora Média de Greenwich; para a tripulação, portanto, o objeto nº 36912 colidiria com eles ou passaria raspando na estação às 12h01. O centro de controle instruiu Kelly a começar a fechar as escotilhas às 10h30, e refugiar-se com os russos na Soyuz às 11h51, ficando lá até ser notificado. Kelly interrompeu sua sessão de exercícios.
Às dez da manhã, o centro de controle voltou a entrar em contato com Kelly, lembrando que ele e Kornienko tinham uma entrevista com noticiários matutinos na Flórida e no Kentucky. Segundo a Nasa, havia tempo de sobra: a entrevista levaria menos de vinte minutos, e o fechamento da estação só começaria dali a meia hora. “Sério?”, escreveu Kelly em seu diário de bordo. “Com um satélite em rota de colisão conosco?” Mas ele e Kornienko assumiram suas posições sem reclamar. “Estamos prontos para a entrevista”, avisou Kelly secamente, e olhou para o relógio. Então, respondeu perguntas sobre o Derby de Kentucky, fez algumas acrobacias em gravidade zero e tentou não dar sinal de que corriam perigo de vida.
Assim que o programa terminou, Kelly começou a fechar as escotilhas dos módulos norte-americanos da estação com toda a calma, flutuando por toda a estrutura – o laboratório, a cúpula, uma câmara de descompressão – com uma lanterna presa na boca e aumentando a iluminação da estação. Kelly perguntara a Houston se o fragmento a caminho da nave seria visível e, enquanto selava as escotilhas, recebeu uma resposta. “Vai ser num horário de noite orbital”, disse Houston. “Nenhuma chance de contato visual.” Kelly então pediu que lhe informassem a velocidade relativa. “Catorze km/s.”
“Entendi”, respondeu Kelly com voz clara, mas o número era assustador: a estação e aquele pedaço de detrito espacial se aproximavam um do outro a uma velocidade combinada de quase 50 mil km/h. Em órbita, um parafuso de 1 cm pode adquirir a força explosiva de uma granada de mão na hora do impacto – e o objeto nº 36912 era pelo menos dez vezes maior. Na época em que a blindagem da estação espacial estava sendo projetada, Donald Kessler, um astrofísico da Nasa, pediu a especialistas que disparassem pequenos objetos de metal contra latas de filme a velocidades altíssimas. A análise balística revelou que esses fragmentos podiam até penetrar na estação espacial sem resistência, mas, na hora de sair, podiam deixar buracos com contornos irregulares. O objeto nº 36912 representava a ameaça de produzir efeitos encadeados que poderiam destruir toda a estrutura.
Kelly concentrou-se no que fazia. Houston lhe recomendou que pegasse um desfibrilador e um kit médico. Recolheu ainda alguns artigos pessoais, pensando em Mike Foale, um astronauta norte-americano que servira a bordo da estação espacial Mir em 1997. Foale estava num módulo chamado Spektr quando uma nave de reabastecimento se aproximou da Mir depressa demais – parecia um tubarão, contaria mais tarde um dos cosmonautas a bordo, “um corpo negro que deslizava coberto de pintas” – e colidiu com ela. Para conter o vazamento produzido pelo choque, o Spektr foi isolado, separando Foale para sempre da sua bagagem pessoal, inclusive os pingentes de ouro que pretendia dar de presente à mulher e aos filhos. “É nele que a gente pensa sempre que fecha uma escotilha deixando coisas importantes do outro lado”, contou Kelly.
Depois de selar os módulos norte-americanos, Kelly juntou-se a Kornienko e Padalka na área russa da estação. Padalka, comandante da estação espacial, fazia o possível para transmitir confiança. Quando o centro de controle em Moscou quis saber do espírito reinante a bordo, ele respondeu: “Prontos para o combate!” Kelly se deu conta de que nenhuma das escotilhas dos cinco módulos russos tinha sido trancada. (Padalka e Kornienko dizem que têm uma lembrança diferente.) “Os russos não fecham as escotilhas como nós”, escreveu Kelly em seu diário de bordo. “Acham que é perda de tempo – para eles, no fim das contas, as duas coisas mais prováveis são o objeto passar ao largo ou provocar uma catástrofe. As possibilidades intermediárias são tão improváveis que não vale a pena se ocupar com elas.”
Kelly ficou surpreso ao encontrar os dois russos almoçando. “Estávamos com fome!”, Kornienko me contou. “Existe um provérbio russo que diz que guerra é guerra, mas o almoço nunca atrasa.” O estoque de alimentos da Soyuz dava apenas para mais três dias. Quem sabe quanto tempo poderiam ficar ali perdidos no espaço? Ainda sobravam catorze minutos, e Kelly decidiu comer também uma latinha de Appetizing Appetizer — um preparado que, mais tarde me contou, lembrava comida de gato, “na aparência, na consistência e, muito provavelmente, um pouco também no gosto”.
Em Houston, a equipe do centro de controle esperava apreensiva. Uma tela do tamanho de uma parede apresentava uma representação da órbita da estação espacial e imagens ao vivo do seu interior. Ed Van Cise movia o mouse do seu computador. Um funcionário da Nasa tinha os olhos fixos num monitor, uma das mãos cobrindo a boca. Outro se sentou com o manual de emergência aberto. Ele me disse: “Sabíamos o que fazer, mas não o que iria acontecer. Podia ser uma coisa terrível, mortes podiam ocorrer.”
Às 11h51, os três tripulantes se acomodaram dentro da cápsula Soyuz, um veículo pouco espaçoso, na forma de um cilindro estreito, situado no topo da estação espacial. Seu interior era coberto de interruptores e botões de controle. “Está escuro lá fora. Então está mais escuro que o normal aqui dentro”, Kelly escreveu em seu diário. “Está frio.” Ele usava um moletom preto da Nasa, e tinha baixado o capuz até quase esconder os olhos.
Os tripulantes foram instruídos a deixar a escotilha de entrada da Soyuz fechada, mas não travada – se a colisão do fragmento ocorresse com a cápsula, e não com a estação, eles poderiam retornar para ela às pressas. Kornienko se concentrava na escotilha, imaginando tudo o que precisaria fazer numa crise. “Ninguém dizia nada – silêncio”, ele me contou. Kelly também se impressionou com o silêncio repentino, com cada tripulante recolhido em seus próprios pensamentos. E escreveu em seu diário: “Eu só ouvia os sons dos exaustores internos da Soyuz e da minha respiração.”
A tensão cresceu mais, e Padalka disse: “É, vai ser uma grande merda se a gente bater.”
“Da”, Kornienko respondeu. “Uma merda.”
Um painel indicava a hora. Os homens acompanhavam a passagem de cada minuto preparando-se para a chegada de 12h01. Kelly percebeu que Kornienko olhava para fora, através da vigia. “Eu finalmente disse: ‘Misha, não vai dar para ver nada. Essa coisa vem voando a 50 mil km/h, e está escuro do lado de fora!’ Então, me dei conta de que eu mesmo não parava de olhar para o espaço e tentava ouvir alguma coisa, ficando tenso, e de repente percebi que, acontecendo a colisão, ninguém ia sentir porra nenhuma. Seríamos simplesmente pulverizados.”
Os três tripulantes caíram no silêncio de novo. Durante uns instantes, Kelly ficou ouvindo as músicas do seu iPod. “Quando chegamos a meio-dia e alguns segundos, eu fiz uma careta”, escreveu Kelly. “Passam-se trinta segundos. Um minuto.” Às 12h01, nada aconteceu. Padalka acionou o rádio.
– Moscou – disse ele. – Estão copiando?
– Perfeitamente. Como vão as coisas?
– Já são quase 12h02 – respondeu Padalka. Tudo tranquilo aqui em cima.
Depois de três minutos tensos sem comunicação de rádio, Padalka tornou a chamar a base:
– Moscou, continuamos esperando.
O rádio chiou e, finalmente, ouviu-se:
– Acabou!
O objeto nº 36192 passara ao largo da estação. Mais tarde, a Usaf calcularia que a distância entre o fragmento e a astronave tinha sido inferior a 2,5 km – distância que o 36912 poderia ter percorrido em menos que um piscar de olhos.
Três semanas mais tarde, incinerou-se na atmosfera.
O espaço ficou intocado durante os 14 bilhões de anos que separam o Big Bang e o outono de 1957. Aí vieram os objetos nos 1 e 2 no catálogo Norad: o Sputnik 1 – um globo lustroso de liga de alumínio de onde partiam quatro longas hastes – e o foguete que a União Soviética usou para lançá-lo, dando início à era espacial. O Sputnik girava em torno do planeta descrevendo uma órbita elíptica, mas a uma altitude tão baixa que o arrasto da atmosfera tirou-o de órbita em três meses. No ano seguinte, a Nasa lançou o objeto nº 5, a Vanguard 1, a uma altitude maior no espaço, e cumpriu suas missões científicas durante sete anos. À deriva desde 1964, a Vanguard 1 ainda gira em torno do planeta. No auge da Guerra Fria, o Sputnik e a Vanguard foram os emblemas triunfais de um futuro promissor. Hoje, são apenas sinônimo de ferro-velho.
De 1957 para cá, a humanidade lançou quase 10 mil satélites ao espaço. Todos eles, com exceção de apenas 2,7 mil, extinguiram-se ou foram destruídos. Custaram bilhões de dólares no total, mas foram lançados com plena consciência de que seria mais barato abandoná-los do que responder por sua manutenção. Alguns, como o Sputnik, se incineraram. Milhares de outros, como a Vanguard, continuarão em órbita por décadas ou séculos, girando em torno do planeta na forma de lixo balístico: um perigo tanto para astronautas como para naves não tripuladas.
A esses satélites, somam-se milhares de fuselagens de foguetes e incontáveis objetos menores – restos à deriva produzidos por desgaste, colisões ou explosões: coisas como parafusos e outras quinquilharias de metal. E ainda existem exotismos, como o objeto nº 43205: trata-se do automóvel Tesla Roadster em condições de funcionamento (com um manequim ao volante) que Elon Musk lançou ao espaço em 2018. Uma empresa chamada Celestis põe em órbita restos mortais humanos em cápsulas que ali ficarão por quase dois séculos e meio. (As cinzas de Gene Roddenberry, criador do seriado Jornada nas Estrelas, foram mandadas para o espaço a bordo do objeto nº 24779.)
Por muitos anos, os ônibus espaciais despejaram no espaço sua descarga séptica: a urina dos astronautas, transformada instantaneamente em nuvens de flocos reluzentes de gelo, é tida como uma das visões mais belas do espaço. Em 2007, a estação espacial descartou em órbita um tanque de amônia com mais de 600 kg. (Mais tarde, o tanque se incinerou acima do Pacífico Sul.) Há também os objetos que astronautas deixaram cair por acidente durante suas caminhadas no espaço: uma câmera, uma espátula, uma luva, um espelho e uma sacola contendo ferramentas especiais no valor de 100 mil dólares.
É uma tarefa extremamente difícil recuperar qualquer coisa pairando solta no espaço, seja um objeto grande ou pequeno, industrial ou de uso pessoal. É tão complexa que só foi levada a cabo em pouquíssimas ocasiões. Os militares acompanham a trajetória de cerca de 26 mil artefatos que orbitam a Terra, mas o sistema só reconhece objetos com mais de 10 cm. Isso significa que o total verdadeiro é muito maior. Um cálculo estima que haja 100 milhões de detritos de 1 mm. E 100 trilhões do tamanho de micrômetros. Vivemos cercados por uma aura de lixo.
Donald Kessler, o astrofísico da Nasa que colaborou no estudo do impacto na Estação Espacial Internacional dos resíduos em órbita, foi a primeira pessoa a se dar conta de que a poluição do espaço representava uma forma ímpar de risco ambiental em alta velocidade. Desde seus primeiros cálculos, ficou claro o que estava em risco: o problema, se ignorado, poderia resultar na destruição de qualquer um dos satélites em órbitas próximas à Terra, uma perda cada vez mais significativa em razão da importância crescente do espaço para a humanidade. Sistemas de comunicação entrariam em colapso. Instrumentos para uso científico – estudo do clima, ou de pandemias, por exemplo – se tornariam inoperantes. As perdas chegariam a bilhões de dólares, sem contar as vidas que também poderiam se perder.
Para Kessler, o espaço era uma paixão que vinha da infância. Ainda novo, no Texas, seu pai lhe deu de presente um telescópio para olhar as estrelas, e ele nunca mais perdeu o interesse. Depois de se formar no ensino médio, Kessler alistou–se no Exército e serviu no Comando de Defesa Aeroespacial, antigo nome do Norad. Em 1962, matriculou-se no curso de física da Universidade de Houston. Amável, seguro de si e versado em matemática, Kessler logo encontrou seu caminho para a linha de frente da pesquisa astronáutica. Antes mesmo de se formar, começou a trabalhar num programa da Nasa que admitia estudantes em meio expediente, dividindo os dias entre as aulas e o trabalho na agência. “Ele era brilhante”, conta Darren McKnight, engenheiro aeroespacial que trabalhou com Kessler em pesquisas. “Era capaz de olhar para um problema muito complexo e dizer: ‘Ah, é inversamente proporcional! Não é tão complicado assim.’”
Naqueles anos, o programa Apolo tinha realizado uma série de voos suborbitais bem-sucedidos, e caminhava rumo à primeira missão lunar. Kessler me contou: “Anunciavam que depois iríamos para Marte e entraríamos num processo que nos levaria até o cinturão de asteroides!” Antes mesmo de sua formatura, a Nasa lhe encomendou uma análise sobre o espaço entre a Terra e Marte para entender de que maneira uma astronave poderia contornar os grandes aglomerados de pedras que se entrechocam o tempo todo no caminho entre os dois planetas.
Kessler passou cinco anos estudando os asteroides, usando a estatística para calcular os efeitos das colisões e da fragmentação decorrente. Seu trabalho se converteu no modelo oficial da Nasa para o estudo de meteoros no espaço interplanetário. No entanto, a ambição de Kessler era maior. Na década de 1970, a humanidade já lançara ao espaço mais de 3 mil satélites – que, assim como os pedregulhos espaciais, podiam entrar em colisão e fragmentar-se. Era só uma questão de tempo. Kessler imaginou que seus modelos podiam ajudar a quantificar esses perigos, mas não pôde levar adiante suas pesquisas. Em meio a cortes de orçamento em quase todos os seus programas, a Nasa extinguiu o departamento de Kessler, julgando seu trabalho já concluído.
Kessler tornou-se controlador de voo do Skylab, uma estação espacial lançada pela Nasa em 1973. Em seguida, foi transferido para o Escritório de Efeitos Ambientais do Centro Espacial Lyndon B. Johnson, com a tarefa de estudar o impacto dos ônibus espaciais na atmosfera da Terra. Mas não era o trabalho que ele queria. Com quase 40 anos, ainda não tinha encontrado seu lugar.
Em meados da década de 1970, enquanto os Estados Unidos eram afetados pela crise do petróleo, o diretor do Centro Espacial Johnson, Christopher Columbus Kraft, decidiu que a Nasa iria iniciar uma nova missão especialmente ousada: pôr em órbita dúzias de gigantescas usinas de energia solar, que acumulariam a energia do Sol e a transmitiriam para a Terra na forma de micro-ondas. Persistente e ousado, Kraft era tão essencial para o programa espacial norte-americano que Neil Armstrong certa vez o definiu como o “chefe” do Centro de Controle de Missões. Sua nova ideia dependeria da engenharia espacial numa escala inédita: cada uma dessas usinas em órbita consumiria milhões de toneladas de material. Mesmo que fosse possível construí-las, ninguém tinha certeza quanto à segurança das micro-ondas de alta energia. Kessler me disse que estavam preocupados com o efeito desses raios “sobre a camada de ozônio, sobre as aves, ou mesmo sobre pessoas próximas aos pontos em que elas chegariam à Terra”.
O chefe do Escritório de Efeitos Ambientais da Nasa pediu a Kessler que dirigisse um estudo de avaliação dessas usinas espaciais de energia. Kessler não tinha o menor interesse nos efeitos das micro-ondas sobre a Terra, mas viu no projeto uma chance de voltar à sua pesquisa anterior. Ele então propôs fazer uma simulação dos efeitos da destruição de uma usina de energia em órbita. Argumentou que um evento dessa natureza poderia pôr em risco as missões dos ônibus espaciais. “Foi a desculpa que arranjei”, ele me revelou. “E eles aceitaram.”
Atirando-se no trabalho, Kessler descobriu que as ideias dominantes na Nasa em relação aos detritos em órbita baseavam-se numa premissa errada. Julgavam que bastava se preocupar com os artefatos incluídos no catálogo Norad. Os analistas que trabalhavam na preparação da primeira missão Apolo concluíram que os fragmentos menores se mostravam tão triviais que eram “desprezíveis nos cálculos de probabilidade de colisão”. Os destroços à deriva não eram uma questão ambiental, mas um mero problema de tráfego. Bastava evitar todo fragmento catalogado.
Tendo estudado a maneira como asteroides colidiam, Kessler sabia que objetos muito pequenos podiam ser tudo menos desprezíveis. Mesmo um fragmento minúsculo poderia estraçalhar um satélite, espalhando ainda mais detritos. Depois que a população de objetos atingisse certa densidade, as colisões ocorreriam em cascata e seria impossível deter o processo. Os fragmentos cada vez menores, cada vez mais numerosos e cada vez mais uniformes em sua trajetória poderiam produzir o equivalente a uma tempestade de areia – cenário de pesadelo que ficou conhecido como “síndrome de Kessler”. A certa altura, o processo poderia até inutilizar todo o espaço próximo da Terra. Teoricamente, prosseguia Kessler em seu raciocínio, nosso planeta acabaria adquirindo um anel semelhante ao de Saturno – só que composto de lixo.
Em 1976, Kessler escreveu um “memorando interno” em que explorava três cenários possíveis, baseados em diferentes ritmos de lançamento de novos satélites: um conservador, um realista e o pior possível. No cenário realista, ele especulava, as colisões galopantes começariam dali a uns quinze anos e, em 2020, já teriam tornado certas faixas de altitude tão perigosas que uma usina de energia não teria como sobreviver inteira a dez anos no espaço. No pior dos casos, supondo que as colisões já viessem ocorrendo em cascata, a faixa de altitude ocupada pelos detritos espaciais ficaria dez vezes pior em 2020; ao final de dois séculos, “todos os objetos do catálogo estariam completamente destruídos, espalhando milhões de fragmentos pelo espaço”.
Para Kraft, essas conclusões eram teóricas demais. Embora as previsões de Kessler se apoiassem em dados experimentais bem conhecidos, elas ainda se baseavam exclusivamente em cálculos. Não se deixando abater, Kessler saiu à cata de mais dados. “Todos os meus superiores me diziam que eu devia estar fazendo outra coisa”, ele me disse. “Me perguntavam por que eu continuava teimando.” Quando soube que uma estação de radar da Força Aérea em Dakota do Norte tinha sido recalibrada pouco antes para produzir leituras mais sensíveis, Kessler pediu informações e descobriu uma grande quantidade de fragmentos à deriva que era ignorada pelos catálogos. Com a ajuda de um colega da Nasa, Burton Cour-Palais, Kessler tornou suas previsões mais precisas, concluindo que dali a pouco tempo aqueles objetos representariam um perigo maior que o de qualquer meteoroide. Ainda assim, depois de uma nova apresentação dos seus achados a Kraft, Kessler recebeu ordens de não investir mais do que 10% do seu tempo útil nessa pesquisa. A partir de então era comum ouvir o chefe do Escritório de Efeitos Ambientais resmungando pelos corredores: “Kessler e essas merdas de destroços!”
Então, em 1978, um satélite soviético de espionagem, o Kosmos 954, despencou do céu. Era movido a energia nuclear e o núcleo de seu reator carregava mais de 30 kg de urânio enriquecido. O Kosmos explodiu acima de uma região remota do noroeste do Canadá, espalhando resíduos radioativos por centenas de quilômetros. Equipes de resgate usando macacões e capacetes de proteção trabalharam em condições extremas – em certas áreas, com temperaturas inferiores a -40ºC – e batalharam duramente para recuperar o que pudessem.
A explosão do Kosmos 954 se transformou num incidente internacional, levando autoridades de todo o mundo a buscar informações sobre outros satélites largados à própria sorte. De uma hora para outra, o secretário de Estado norte-americano começou a falar dos perigos do espaço. Um especialista em guerra nuclear, depondo no Congresso dos Estados Unidos, declarou que as conclusões de Kessler eram “apavorantes”. Dirigentes da ONU, suspeitando que o Kosmos 954 colidira com outro objeto em órbita, procuraram Kessler. Burton Cour-Palais conta que a Nasa apresentou as pesquisas dirigidas por Kessler na segunda rodada das Conversações sobre Limites para Armas Estratégicas (Salt II, na sigla em inglês) com os soviéticos. “Nosso trabalho deu resultado”, disse ele.
Kessler resolveu então que ou trabalhava no projeto em tempo integral ou não trabalhava de todo. Fez questão de encontrar-se com Kraft, que lhe pediu uma nova apresentação. Dependia desse encontro o destino incerto do Skylab, a maior estrutura enviada ao espaço que, àquela altura, estava fora de controle havia anos. “Abandonamos o Skylab sem entender direito o que isto representava”, recapitulou mais tarde um dos superiores de Kessler. Era só uma questão de tempo até que o Skylab, como o Kosmos 954, despencasse na Terra ou fosse atingido por algum objeto e se estilhaçasse em múltiplos pedaços. O foguete que tinha transportado o laboratório espacial, por exemplo, já se espatifara nas águas do Atlântico.
Quando Kessler chegou ao encontro, espantou-se com a quantidade de dirigentes da Nasa na sala. Entre eles, estavam alguns superiores seus que eram contrários à sua pesquisa. Tinha clareza de que assim punha a carreira em risco, e mais tarde ele me disse: “Eu sabia que a minha história era boa.” Procurando se ater a soluções pragmáticas, explicou que havia descoberto que a maior fonte de detritos na época eram as carcaças de foguetes Delta, que explodiam em órbita muito depois de “considerados mortos”. Uma simples mudança no projeto do foguete poderia evitar as explosões. “A solução não era fazê-los passar menos tempo no espaço”, explica ele. “Era ir ao espaço de maneira mais responsável.”
Kraft se converteu em seguidor de Kessler. “Seria uma loucura parar agora!”, disse a ele, prometendo obter recursos para um estudo completo do problema. “Vá em frente”, decretou. “Sem perder mais tempo!”
Três meses depois, em julho de 1979, o Skylab despencava nas águas do Oceano Índico – “uma bola de fogo azul no céu estrelado da pré-aurora”, contam os registros da Nasa. Em seguida, a bola de fogo assumiu uma cor vermelho-alaranjada e se partiu em cinco pedaços. Quem acordou cedo naquele dia no sudoeste da Austrália pôde ver fragmentos em chamas. Em Perth, o estrondo sônico da queda sacudiu as janelas. A explosão do equipamento provocou uma chuva de fragmentos no deserto australiano, totalizando várias toneladas de metal. Ninguém saiu ferido. Mas a cidade de Shire of Esperance mais tarde multaria a Nasa em 400 dólares por despejo ilegal de lixo.
O universo pode ser infinito (o big sky, como dizem os astrônomos), mas mesmo uma extensão interminável de espaço pode ficar apertada se só pudermos usar uma parte de sua área. Kessler sabia que a região mais preocupante era a que está mais perto de nós: a chamada órbita baixa da Terra (LEO, na sigla em inglês), que se estende até uma altitude de pouco menos de 2 mil km acima do nível do mar. Na zona inferior da LEO, onde a gravidade ainda mantém alguma aparência de céu, persiste uma atmosfera com densidade suficiente para provocar a perda de energia dos objetos em órbita e fazê-los cair depressa de volta à Terra – processo de limpeza espontânea que limita a densidade dos destroços. É ali que se mantém a Estação Espacial Internacional, em parte por razões de segurança. Cerca de 650 km acima do nível do mar, começa a exosfera, onde a atmosfera é tão tênue que moléculas isoladas podem orbitar o planeta sem colidir umas com as outras. Essa parte da LEO é a preferida pela engenharia espacial. É longe o bastante da Terra para que um satélite se mantenha em órbita sem depender de energia, e perto o bastante para que os custos de blindá-lo contra a radiação solar e alimentar seus sistemas elétricos de comunicação sejam relativamente baixos.
Com um orçamento de apenas 70 mil dólares, Kessler formou uma equipe aguerrida: cinco especialistas que concordaram em dedicar parte do expediente ao estudo do congestionamento da LEO. Transformaram-se em detetives espaciais, colhendo indícios e pistas no caótico mundo acima das nossas cabeças. Para calcular a quantidade de destroços não abarcados pelo catálogo Norad, a equipe obteve acesso a um telescópio do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) instalado numa área de teste de mísseis em White Sands, no estado do Novo México, capaz de distinguir fragmentos com dimensões de apenas 1 cm. Toda vez que um ônibus espacial regressava à Terra, a equipe agia como se fossem peritos na cena de um crime. Muitas vezes, as janelas dos ônibus chegavam arranhadas pela colisão com objetos externos, mas normalmente não podiam ser removidas para análise. Houve um voo, porém, em que a janela chegou tão trincada pela colisão com algum objeto que precisou ser descartada. A equipe recolheu o componente rejeitado e descobriu que o estrago fora provocado por uma partícula de tinta que se desprendera de outro artefato em órbita.
Enquanto fazia o possível para entender melhor aquele ambiente, Kessler assumiu também um papel ativo para protegê-lo. Muitos funcionários da Nasa encaravam sua missão com ceticismo. Alguns cientistas que mapearam os destroços para o programa Apolo chegaram a assumir uma postura defensiva. “Perguntei a eles por que não tinham levado em conta esse fenômeno em cascata”, lembra Kessler. “Como resposta, eles me disseram que não tinham computadores com potência suficiente. Fiquei espantado. Eles usavam computadores que levaram o homem à Lua, enquanto eu fiz meus cálculos numa calculadora programável. Mas não falei nada, não queria deixá-los encabulados.”
Kessler sabia convencer seus pares com muita competência. Texano pacato, tinha talento para elegantes insights matemáticos, que podiam ser esboçados em um pedaço de envelope, e exibia uma vocação para o espetáculo. Depois de examinar a parte danificada da janela do ônibus espacial, guardou a peça consigo e, às vezes, ilustrava suas palestras tirando-a do bolso com um floreio dramático. Conquistou aliados dentro da Nasa para pressionar os fabricantes dos foguetes Delta a refazerem seu projeto. Mais tarde, ajudou a criar a primeira organização a reunir nações que exploravam o espaço, cujo trabalho sobre os destroços em órbita acabou sendo absorvido pela ONU.
Mas a diplomacia espacial nem sempre era fácil durante a Guerra Fria. Em 1968, os soviéticos deram início a uma série de operações experimentais antissatélite (conhecidas como Asat), em que uma espaçonave carregada de explosivos chegava bem perto de um satélite escolhido como alvo e se autodestruía, convertendo seus próprios estilhaços em armas. Kessler passou meses rastreando um misterioso enxame de objetos minúsculos e perfeitamente esféricos porque suspeitava que tivessem sido produzidos pelos soviéticos, com vistas a se prepararem para uma guerra nuclear. Mas a fonte daqueles detritos se revelou ainda mais inesperada: era um satélite soviético que ejetara o núcleo de seu reator antes de cair de volta na Terra. Os objetos esféricos seriam glóbulos de uma solução à base de metal líquido que também fora expelida pelo satélite. “Quando falamos com os soviéticos, eles admitiram que havia sido obra deles”, relembra Kessler. “Mas depois alegaram que não. E finalmente nos disseram que não havia com o que se preocupar porque o material acabaria evaporando.”
Os Estados Unidos também tinham seus segredos. Em 1985, Kessler foi convocado a participar do programa Guerra nas Estrelas, de Ronald Reagan, quando a Força Aérea resolveu criar o seu próprio programa antissatélite. O objetivo era alvejar um satélite com um míssil disparado por um jato F-15. Kessler implorou aos militares que desistissem do teste. “Explicamos que iria produzir muitos estilhaços”, lembra. Mas o Departamento de Defesa manteve-se inabalável. “Disseram que eu não podia saber o que aconteceria. O resultado bem podia ser só um furo de entrada e outro de saída, sem outros danos.” Tentando então aproveitar a situação da melhor maneira possível, Kessler tomou um voo para o Alasca a fim de observar a explosão do satélite na escuridão do espaço a partir de um telescópio em terra, mas não havia visibilidade. Um colega seu da Nasa embarcou num avião de alta altitude da Força Aérea para observar o evento acima das nuvens. Entretanto, embora o radar militar tenha indicado que houve centenas de detritos, ele só conseguiu ver dois. “Os fragmentos devem ser pretos”, disse pelo rádio. A primeira reação de Kessler foi discordar – os destroços deviam ser quase todos de alumínio reluzente –, mas acabou concluindo que o equipamento eletrônico da astronave destruída tinha sido carbonizado, envolvendo os estilhaços numa camada de fuligem. Pesquisas posteriores revelaram que a maior parte dos fragmentos em órbita era de fato muito escura – e que o telescópio de White Sands só tinha conseguido captar uma fração dos danos ambientais produzidos. A quantidade de objetos à deriva no espaço era bem maior – e mais destrutiva – do que mesmo Kessler e sua equipe puderam detectar.
Quanto mais Kessler estudava o espaço próximo à Terra, mais o futuro lhe parecia preocupante. Nos anos 1990, convenceu-se de que as colisões nas órbitas mais povoadas vinham aumentando em cascata, espalhando novos detritos por centenas de quilômetros. “Essas regiões instáveis serão uma fonte crescente de destroços de pequeno porte nas órbitas baixas da Terra”, advertiu. Em 1986, a carcaça de um foguete europeu se despedaçou, provavelmente por ter sido abalroada por algum objeto. Um de seus fragmentos passou anos em órbita antes de finalmente se chocar com o estabilizador de um satélite de reconhecimento francês. Em 1994, um satélite do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o MSTI-2, teve todas as transmissões interrompidas pouco depois do lançamento. A Nasa suspeita que algum fragmento minúsculo tenha atingido o aglomerado de cabos de transmissão do satélite, provocando um curto-circuito. O MSTI-2 converteu-se ele próprio em detrito à deriva, quase batendo com o ônibus espacial Endeavour e, depois, com a Mir.
A essa altura, Kessler já estava aposentado, mas continuava trabalhando para a Nasa, primeiro como empregado da Lockheed e depois, a partir de 2005, como consultor independente. Quando deixou a Nasa, vinha diminuindo o número de objetos produzidos pelo homem em circulação no espaço. As operações antissatélite, as Asats, tornaram-se menos frequentes, menos carcaças de foguetes explodiam, e o colapso da União Soviética interrompera temporariamente o programa espacial de Moscou. Por outro lado, um crescimento da atividade solar acelerava a combustão de muitos objetos em órbita baixa. Mas essa relativa calmaria não durou muito. Moscou retomou os programas espaciais, e outras nações se lançaram na exploração do espaço, comportando-se com a mesma imprevidência das antigas potências da Guerra Fria. Em 2007, as Forças Armadas chinesas realizaram um Asat sem aviso prévio, disparando um míssil contra um satélite meteorológico e espalhando uma quantidade tal de estilhaços que a ISS até hoje precisa manobrar para se esquivar dos fragmentos. Ao mesmo tempo, satélites e carcaças extintas de foguetes começavam a colidir, como Kessler havia previsto – um fenômeno mais preocupante que as explosões deliberadas, porque envolvia um risco imprevisível.
Em fevereiro de 2009, 790 km acima da península siberiana de Taimyr, no litoral ártico da Rússia, dois satélites intactos bateram de frente pela primeira vez. Um era propriedade da Iridium, empresa norte-americana de comunicações, e o outro, um satélite soviético Kosmos abandonado. Os dois trafegavam em altíssima velocidade. No momento do impacto, uma espiral de estilhaços se formou, como que fitas ao redor de todo o planeta. A colisão – combinada com os estilhaços produzidos pelo teste Asat chinês – acrescentou cerca de 6 mil novos objetos ao catálogo Norad.
O choque entre o Kosmos e o satélite da Iridium marcou o início de uma escalada dramática. “Estamos entrando numa nova era de monitoramento de destroços em órbita”, comentou Kessler. “E esta era será dominada por crescentes colisões catastróficas aleatórias.” Ele conclamou os programas espaciais a pararem de abandonar satélites em órbita, e sugeriu que talvez já fosse hora de resgatar alguns dos objetos fora de controle. “Como ocorre com tantos outros problemas ambientais, a redução dos detritos em órbita pode sair cara num primeiro momento, mas abrir mão de qualquer controle vai provocar uma calamidade a longo prazo”, declarou. Um dirigente da Nasa chegou a afirmar que assistíamos ao “início da síndrome de Kessler”. Mesmo assim, o congestionamento do espaço não parava de crescer: novos satélites eram lançados, mais detritos se acumulavam em órbita. Em julho de 2018, um relatório da Nasa afirmou que mais da metade dos objetos rastreados pelo 18º Esquadrão de Controle Espacial eram detritos. Produzidos principalmente por colisões no espaço.
“Ninguém se preocupa muito com isso, porque uma atitude responsável dá trabalho”, me disse Darren McKnight, diretor técnico da Centauri, empresa de serviços aeroespaciais. Faz pouco tempo, ele e seus colegas estudaram um aglomerado de detritos que paira a mais de 950 km acima do nível do mar. Atualmente, a cada dia, há cerca de sessenta ameaças de colisão nessa faixa. Cento e cinquenta quilômetros abaixo desse aglomerado, flutua outro ainda mais perigoso, em que dezoito dos maiores objetos abandonados na órbita do planeta tiram finas diárias uns dos outros. Em 2019, dois deles – um satélite de reconhecimento soviético e a carcaça abandonada de um foguete soviético com 8 toneladas de massa – chegaram a ficar separados por meros 85 metros. Se tivessem colidido, o efeito seria catastrófico. “O número de objetos catalogados duplicaria”, alertou McKnight. “Ou seja: um único evento teria produzido a mesma quantidade de detritos que sessenta anos de atividade espacial!”
Segundo seus cálculos, o choque ainda criaria 200 mil estilhaços “mortíferos”. Quer dizer: pequenos demais para serem rastreados, mas capazes de causar danos sérios a qualquer artefato. McKnight, como Kessler e outros, acabou por acreditar que uma faxina dos objetos abandonados em órbita baixa seria essencial para a estabilidade desse ambiente. Não existe uma forma prática de “aspirar” enxames de microdetritos. Mas a remoção dos objetos maiores pode evitar a formação de novos aglomerados. Em 2006, o sucessor de Kessler na Nasa, Nicholas Johnson, e o cientista Jen Chyi Liou escreveram o seguinte num artigo para a revista Science: “Só a correção do ambiente mais próximo à Terra – a remoção dos objetos maiores hoje em órbita – pode evitar futuros problemas.” Desdobrando os modelos de Kessler, afirmaram na época que, até 2020, pelo menos 5 mil desses objetos precisariam ser removidos a cada ano para evitar um pico desastroso no número de colisões.
Atualmente, McKnight coopera com pesquisadores de todo o mundo na escolha dos primeiros cinquenta artefatos a serem removidos dentre todos abandonados em órbita. “O pessoal ainda acha que a colisão Iridium-Kosmos foi a pior”, ele me disse. “Mas foi até pequena. Acham que foi ruim? Esperem só até acontecer uma trombada de verdade.”
Em abril de 2018, um foguete Falcon 9 da SpaceX decolou de Cabo Canaveral, atingiu a altitude de uns 500 km e então ejetou uma imensa cápsula não tripulada chamada Dragon, que usou propulsão própria para se dirigir até a ISS. A Dragon transportava toneladas de suprimentos – de uma impressora HP jato de tinta a apetrechos para caminhadas espaciais. O maior item que levava era uma caixa de espuma que pesava em torno de 100 kg. A bordo da estação, a caixa ficou guardada por dois meses. Não trazia os rótulos que a Nasa costuma usar nos objetos enviados à estação espacial. Com um pincel atômico, alguém escrevera direto na espuma “NanoRacks Remove Satt P/N: NR-MS-06”. Para os astronautas a bordo da ISS, a caixa era um mistério. Ricky Arnold, um astronauta norte-americano, perguntou a Houston se podia usar a caixa como mesa de trabalho improvisada. A resposta foi rápida e inequívoca: negativo. “Era o maior embrulho debaixo da árvore de Natal”, disse Arnold. “Ninguém sabia o que continha.”
Na primeira semana de junho, Houston comunicou à tripulação da ISS que dentro da caixa havia um veículo espacial não tripulado, a ser lançado da estação antes do fim do mês. Depois que entrasse em órbita, o tal veículo testaria uma nova tecnologia para remoção de detritos espaciais. Embora muitos métodos já tivessem sido sugeridos para recolher o lixo espacial – do uso de espuma pegajosa a poderosas rajadas de ar –, nenhuma tecnologia ainda havia sido testada com sucesso no espaço.
Andrew Feustel, o astronauta norte-americano da Nasa que comandava a ISS àquela altura, tinha visto em primeira mão os sinais de perigo do espaço: sulcos nas janelas da cúpula da estação e furos de um lado a outro em painéis de energia solar. Aqui e ali, o choque com lascas de metal tinha aberto furos nos corrimões externos da estação – um perigo para as caminhadas espaciais, pois as arestas do metal podiam rasgar os macacões dos astronautas. Embora todos esses indícios fossem alarmantes, Feustel sabia que a ISS corria um risco relativamente pequeno de ser atingida por detritos voadores, graças à sua baixa altitude. Em 2009, ele tinha participado de uma missão do ônibus espacial dedicada à manutenção do telescópio espacial Hubble, que orbita a Terra uns 150 km acima da ISS. Enquanto flutuava do lado de fora do telescópio, Feustel notou que sua superfície estava tão esburacada que lembrava uma paisagem lunar. “Um dos choques tinha penetrado totalmente na estrutura”, ele me contou. “Sem dúvida, qualquer partícula capaz de perfurar um artefato como aquele bem podia atravessar o corpo de qualquer um.” Arnold me disse que a ameaça dos detritos em órbita assusta mais por seu caráter aleatório: uma lasca de metal pode atingir qualquer um a qualquer momento, vinda de qualquer direção.
A caixa de espuma a bordo da ISS tinha ficado armazenada no maior compartimento habitável da estação, o Módulo de Experiências Japonês, um laboratório usado para testes conduzidos dentro ou fora da nave. Perto de uma câmara de descompressão cilíndrica do módulo, os dois astronautas abriram a caixa seguindo as instruções enviadas pela Nanoracks, uma espécie de Correios do espaço, responsável pela entrega do equipamento e sua retirada da embalagem. Os dois astronautas amarraram os pés ao piso para não saírem flutuando e trabalhavam usando luvas cirúrgicas. No interior da caixa, encontraram um aparelho em forma de cubo revestido por reluzentes painéis solares, com uma fita dourada semitranslúcida protegendo cada uma das bordas. Uma das faces do cubo era aberta, revelando seu interior atulhado de instrumentos. “Era um equipamento impressionante”, contou-me Arnold.
Os dois astronautas montaram o satélite numa bandeja, conhecida como “mesa deslizante”, que depois podia transportá-lo sobre esteiras, através da câmara de descompressão, até o exterior da nave. A ISS jamais tinha lançado um satélite daquele tamanho. As medidas do artefato foram calculadas com a máxima precisão, de modo a permitir sua passagem pelas aberturas da estação. Feustel deu a partida na mesa deslizante, e o cubo ingressou na câmara de descompressão. No dia 20 de junho, o satélite foi lançado no frio do espaço. Instalado na lateral da estação, um braço robótico de 6 metros de comprimento agarrou o artefato, segurou-o a uma distância segura e depois o largou. Feustel perguntou a Houston se o satélite iria fazer algum movimento especial. “Não”, respondeu Houston. “É só isso mesmo. Ele vai ficar parado aí por algum tempo.”
Com extrema lentidão o cubo começou a se afastar do braço robótico, assumindo uma órbita própria em torno da Terra – que, girando abaixo deles, era como uma grande esfera perolada de azul cristalino e branco de neve. Arnold correu para a cúpula a fim de gravar um vídeo enquanto o novo satélite se afastava. Afinal, artefatos assim quase nunca são fotografados do espaço. Para ele, o cubo se parecia com as espaçonaves atarracadas de Jornada nas Estrelas, usadas pelos Borg, os vilões da série. Arnold queria postar o vídeo no Instagram e legendar com “Resistir é inútil”, bordão dos Borg. Houston disse que não podia. O cubo era confidencial.
Enquanto sua carga mais preciosa separava-se aos poucos em grande altitude, a ISS passou por cima da Universidade de Surrey, situada a uma hora de Londres. Em seu campus espaçoso, um grupo de engenheiros se reunia num prédio de dois andares revestido de tijolinhos, batizado em homenagem ao autor de clássicos da ficção científica, Arthur C. Clarke. Ali funciona o Centro Espacial Surrey, que supervisionou a criação do atarracado satélite lançado pela ISS, que ganhou o nome de Removedebris (Remover detritos). A sala onde se reuniam tinha sido convertida num centro de controle com monitores nas paredes, um dos quais transmitia as imagens ao vivo de uma câmera do lado de fora da ISS, mostrando o Removedebris em órbita. A construção daquela máquina tinha custado a eles seis anos de muito trabalho. Ao vê-la flutuar no espaço, ficaram em êxtase.
Quando Feustel perguntou a Houston se o satélite iria fazer o disparo de algum artefato, os engenheiros do Centro Espacial Surrey, que também acompanhavam a conversa, caíram na gargalhada. O satélite carregava diversos instrumentos balísticos programados para disparar de múltiplas cavidades – entre eles um arpão de titânio, com força suficiente para atravessar a parede externa de uma espaçonave, e uma rede de Kevlar com 7,5 metros de comprimento, projetada para capturar um objeto no espaço e conduzi-lo de volta à Terra.
A rede era uma fonte especial de ansiedade. Os dirigentes da Nasa estavam tão preocupados que ela pudesse disparar prematuramente, emaranhando-se na estação espacial que custara bilhões de dólares, que programaram o Removedebris para flutuar um mês inteiro para longe da ISS antes de dar início às experiências. Já no começo de 2020, na sala de controle do Centro Espacial Surrey, Richard Duke, engenheiro de projeto da equipe do Removedebris, relembrou: “Claro que não queríamos que nada acontecesse antes da hora [risos]. Era a nossa primeira vez, e tanta coisa podia dar errado.” Simon Fellowes, diretor de programa no Removedebris, disse o mesmo em outros termos: “A história jamais nos esqueceria se virássemos os responsáveis por recolher a estação espacial com uma rede!”
Num campo que é sinônimo da chamada Big Science, o Centro Espacial Surrey é um exemplo dissonante: trata-se de uma iniciativa pequena, de baixo orçamento, governada pelo espírito acadêmico e que se tornou pioneira no desenvolvimento de satélites pequenos e de custo mais baixo, conhecidos como CubeSats (Satélites cúbicos), alguns deles menores que uma caixa de sapato. “Nosso trabalho é fazer uma demonstração barata de novas tecnologias”, disse-me Duke. “Ninguém quer lançar um artefato novo de uma grande nave, porque não quer colocá-la em risco. Mas como irá adquirir experiência, se não puder lançar objetos novos?”
Nos anos 1980, surgiu na Universidade de Surrey uma empresa privada, a Surrey Satellite Technology, fabricante de veículos espaciais de porte médio, que mais adiante foi adquirida pela Airbus. O Removedebris foi criado a partir de um brainstorming entre os três interessados, em 2013. A essa altura, já era possível pensar num mercado para tecnologias capazes de resgatar objetos à deriva no espaço. A ONU emitira uma diretriz estipulando que todo operador de satélites precisava retirar seus veículos de órbita ao cabo de 25 anos. Ocorreu ainda um caso pioneiro especialmente sugestivo: em 2012, a Agência Espacial Europeia perdeu o controle de um satélite chamado Envisat na área mais congestionada do espaço, e manifestou interesse em financiar a criação de uma tecnologia para a remoção de detritos espaciais. O Envisat era um aparato de 8 toneladas, do tamanho de um micro-ônibus, rodopiando incontrolavelmente no espaço. Nas palavras de um antigo dirigente da agência, “um verdadeiro monstro”.
Dentro da Airbus, grupos de engenheiros já vinham testando por toda a Europa ferramentas capazes de trazer de volta um trambolho daquele tamanho. Na França, uma equipe desenvolvia um sistema de imagens usando raios laser, chamado Lidar, capaz de permitir que um satélite-faxineiro navegasse com precisão nas proximidades de um objeto abandonado. No Reino Unido, trabalhava-se na criação de uma espécie de canhoneiro de arpão inspirada na tecnologia oitocentista de caça à baleia. Na Alemanha, desenvolvia-se uma rede especial: na ausência de gravidade, a rede precisaria abrir-se com simetria perfeita e depois fechar-se em torno de um objeto sem provocar seu deslocamento. A Airbus testara a rede no vácuo, e também no “cometa do vômito”, apelido dado a um avião qualquer que faz mergulhos verticais para simular um ambiente de gravidade zero.
Em terra, não há como testar esses dispositivos no vácuo e em gravidade zero. Mas o Centro Espacial Surrey já projetara outras experiências orbitais de baixo custo e, depois do brainstorming, pediu 14 milhões de euros à União Europeia para coordenar um consórcio que testasse as tecnologias da Airbus no espaço. Fellowes foi nomeado diretor do projeto em 2015. “Um arpão e uma rede”, ele me disse. “Fora uma pedrada, o que poderia ser mais elementar?” Ainda assim, nada era simples no projeto. Alguns anos antes, Jer Chyi Liou, o cientista da Nasa, já advertira que, embora a remoção de detritos espaciais fosse premente, qualquer tentativa envolveria “enormes desafios técnicos e custos imensos”. O Centro Espacial Surrey vinha fazendo o possível para contradizer essa avaliação. Como Fellowes me confessou: “A bem da verdade, o projeto parecia impossível.”
Os problemas não se limitavam à engenharia. Complicações legais não permitiam que a equipe de Fellowes recolhesse detritos reais durante os testes: mesmo depois que uma espaçonave se despedaça, os fragmentos continuam a pertencer ao país que a lançou. O experimento precisaria criar seus próprios alvos. Com o tempo, o projeto foi assumindo a aparência de uma matriosca russa: no interior do satélite aparelhado com a tecnologia da Airbus havia vários CubeSats menores, que seriam disparados um a um. Para que pudessem transmitir dados uns aos outros, era preciso reservar frequências de rádio no mundo inteiro. “Nada simples”, disse Duke. “Tínhamos que comunicar o Japão, por exemplo, que íamos usar a mesma frequência em que funcionam as transmissões de tevê de lá.”
Até mesmo o envio do Removedebris para a ISS era complicado. Duke lembra: “Estávamos numa reunião com a Nasa para tratar de segurança e falamos então de uma coisa que chamávamos de HTA, e eles perguntaram o que era HTA. Explicamos que era a abreviação de harpoon target assembly (conjunto de alvo e arpão), e eles ficaram surpresos.” A equipe de Surrey projetou uma animação para demonstrar o funcionamento da mira, mas o filme só aumentou o espanto dos dirigentes da Nasa. “Eles ficaram pasmos – em silêncio absoluto. Depois pediram para assistir de novo, e aí nos disseram que só podíamos estar malucos!” Tudo a bordo do Removedebris tinha sido especialmente projetado para derrubar espaçonaves. “Um dos cientistas da Nasa nos pediu para confirmar, em tom incrédulo, se o Lidar envolvia mesmo o uso de um laser invisível ao olho humano, mas capaz de cegar alguém quando era ligado. Aí, ficamos constrangidos de dizer que, bem, descrito daquele jeito, a coisa parecia realmente perigosa.”
A equipe de Fellowes trabalhou meses para atender aos requisitos de segurança da Nasa. Chegou a provocar a explosão de baterias num estacionamento vazio. Quando a Nasa finalmente se deu por satisfeita, em 2017, a equipe de Surrey instalou uma espécie de alça no corpo do Removedebris para que pudesse ser agarrado pelo braço robótico da ISS assim que deixasse a câmara de descompressão da nave.
Pouco depois que a parte de engenharia ficou pronta, a equipe tomou conhecimento de uma notícia desconcertante: a Agência de Exploração Aeroespacial do Japão tinha lançado ao espaço um dispositivo semelhante, uma “rede de arrasto eletrodinâmica” com 800 metros de extensão, cujo objetivo era recuperar lixo no espaço. (A rede de arrasto japonesa foi criada com a ajuda de uma empresa que vinha fabricando grandes redes de pesca há mais de um século.) E o projeto, ainda por cima, tinha acabado de fracassar, embora tivesse sido plenamente apoiado pela agência espacial do Japão. “Ficamos assustados e preocupados”, Fellowes me contou. “Eles sabiam perfeitamente o que estavam fazendo. O que será que eles tinham deixado de enxergar?” Àquela altura, não havia muito que a equipe de Fellowes pudesse fazer. O Removedebris já estava embalado em sua caixa de espuma e aguardava no Cabo Canaveral a sua vez de ser testado no espaço.
Durante todo o verão de 2018 no Hemisfério Norte, o Removedebris orbitou o planeta impelido pela inércia, enquanto a equipe de controle, em Surrey, se certificava de que tudo estava funcionando. Então, em setembro, os engenheiros transmitiram ao satélite a instrução de ejetar o CubeSat e, em seguida, disparar a rede em sua direção. Os comandos foram dados quando o satélite sobrevoava a Inglaterra, mas a experiência estava agendada para ocorrer no momento em que estivesse sobre a Ásia, onde a luz estaria melhor. Fellowes passou a noite em claro agarrado ao celular. O 18º Esquadrão de Controle Espacial também acompanhava tudo. Às duas da manhã, chegou de lá uma mensagem: algo tinha se projetado de dentro do satélite. Nas palavras de Duke: “Só confirmavam que estavam vendo dois objetos separados. Mas podia ser que o CubeSat tivesse sido acionado e a rede não. Ou que a rede tivesse funcionado, mas não o CubeSat.”
Às seis e meia da manhã, Duke correu para o escritório, onde encontrou Fellowes repassando os dados transmitidos pelo satélite. O Removedebris tinha gravado quase um minuto de vídeo, mas só conseguiam baixar alguns poucos quadros quando o satélite passava acima dos objetos. Num preto e branco fantasmagórico, o vídeo revelava um balé tecnológico silencioso em gravidade zero. O CubeSat ejetara-se para fora do Removedebris bailando na escuridão do espaço. Seu exterior espelhado parecia um tijolo reluzente, até que o gás pressurizado fez com que se projetassem dois tubos de alumínio, um de cada lado do objeto. Com isso, o CubeSat agora lembrava um plugue de tomada macho, com velas se abrindo entre os pinos, o que aumentara o seu tamanho. Entretanto, devido a um vazamento, um dos tubos de alumínio ficou em posição assimétrica em relação ao outro, fazendo com que o CubeSat começasse a rodopiar sem controle. Duke e os outros assistiam ao vídeo em transe. “Somos engenheiros, e tínhamos visualizado aquilo tudo na forma de tabelas, gráficos e cronogramas”, ele disse. “Nunca tínhamos pensado no impacto visual.”
Instantes mais tarde, a rede disparou a si mesma. Ao longo de todo o perímetro da rede, a Airbus fixara pequenos motores que funcionavam como pesos. Graças a eles a rede se abriu como uma tarrafa, numa explosão estelar, assumindo a aparência de uma reluzente criatura submarina pronta a engolir sua presa. A fim de tornar a experiência mais simples, a rede não estava presa ao Removedebris. Ela voou solta no espaço. Quando atingiu o CubeSat, os motores presos à sua malha se ativaram e o alvo, então, foi envolvido por seus fios: a rede empacotou o satélite, resultando numa única massa em movimento giratório. A imagem era uma experiência técnica, mas em parte também uma obra similar à do fotógrafo e cineasta Man Ray. “Entrei num transe”, me disse Fellowes. “Saí para andar e pegar um café, depois passei a hora seguinte assistindo às imagens de novo e de novo.” A experiência ocorreu em altitude muito baixa, para garantir que o CubeSat emaranhado na rede – o objeto nº 43621 – não permaneceria em órbita. Dali a meses, despencou na atmosfera e anos de pesquisa se reduziram a cinzas.
Em fevereiro de 2019, a equipe instruiu o Removedebris a disparar não sua rede, mas dessa vez seu arpão, contra um painel montado numa vara extensível. A força foi tão grande que o painel se soltou. Mas o arpão atingiu o painel exatamente no ponto pretendido, e prendeu-se a ele sem espalhar novos fragmentos e produzir mais lixo espacial. Duke me disse que a equipe achava o arpão mais adequado do que a rede para a captura de objetos maiores como o Envisat. Sempre havia o risco de destruir o alvo, mas a manobra era mais simples. (Numa das sedes da Airbus, vi um arpão imenso, ultramoderno, que me pareceu suficiente para pescar uma baleia.) O sistema da rede era bem mais difícil de operar, mas, em sua opinião, o sucesso da experiência parecia torná-la a opção mais atraente. “Era este o objetivo do teste”, comentou. Ainda não estava claro se alguma das duas ferramentas poderia ser usada em missões reais, o que ainda deveria ser testado em experiências posteriores. Por enquanto, a ideia era demonstrar a tecnologia, provar que podia funcionar.
Em 1979, Arthur C. Clarke imaginava um futuro em que lasers gigantescos manteriam o espaço livre de detritos, uma ideia que a Nasa chegou a estudar, mas não levou adiante. Alternativas não faltam. Várias empresas vêm competindo na busca de tecnologias para livrar o espaço de aparatos fora de controle, destiná-los a alguma nova finalidade ou mesmo consertá–los. A Nanoracks planeja converter foguetes em estações espaciais habitáveis, e vem trabalhando também num teste, ainda por realizar no espaço, de uma ferramenta capaz de cortar metal sem produzir limalha. Outra empresa, a Astrocale, com sede em Tóquio, levantou quase 200 milhões de dólares em capital de risco com o objetivo de abordar um artefato em órbita e assumir seu controle; o artefato que fará o papel de faxineiro especial foi lançado em março passado e ficará em missão durante seis meses.
Kessler, que tem hoje 81 anos, me disse que nenhuma solução técnica é claramente superior às outras. “O problema é muito complexo. Ainda bem que não preciso trabalhar nele. Porque seria necessário começar numa escala bem pequena.”
Alguns anos atrás, a Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) decidiu que era um desafio grande demais começar os trabalhos resgatando o Envisat. Então, relacionou outros objetos fora de controle e abriu uma concorrência para o resgate de um deles. Treze consórcios se apresentaram, entre eles grupos empresariais como a Airbus e a Astroscale. Em dezembro de 2019, a ESA anunciou um ganhador inesperado: um consórcio liderado por uma diminuta empresa iniciante da Suíça, a ClearSpace, que se comprometia a resgatar uma carcaça de foguete por pouco mais de 100 milhões de euros. O contrato acabou fechado por 86 milhões de euros. Seu plano é usar uma tecnologia ainda não testada – pinças robóticas, teoricamente reutilizáveis. “Imagine como seria perigoso cruzar os mares se todos os navios que já se perderam em algum momento ainda flutuassem à deriva”, disse na época o diretor-geral da ESA. “Esta é a situação atual na órbita da Terra, e não podemos deixar que continue assim.”
A Europa assumiu a frente no esforço de limpar o espaço, enquanto o programa de Kessler na Nasa fica cada vez mais anêmico. Em 2018, pouco depois da experiência da rede do Removedebris, conversei com Jer Chyi Liou, atual diretor do programa. Antes de deixar a Casa Branca, Donald Trump determinou que a meta da Nasa seria levar mais gente à Lua, uma missão que absorveria todo o orçamento da agência. Apesar de seu trabalho ter demonstrado a necessidade imperiosa de remover o lixo espacial, o próprio Liou acha que se trata de uma prioridade irrealista. Em vez disso, ele prefere dar ênfase à prevenção – exigindo observância mais estrita às regras existentes – e rea-lizar estudos mais aprofundados. Ele fora autorizado a usar um satélite para medir objetos errantes com dimensões milimétricas, mas em 2019, quando fui me inteirar do andamento do projeto, descobri que tinha sido extinto. A Nasa não permitiu que eu voltasse a falar com Liou no ano seguinte.
Ainda assim, como demonstram os modelos desenvolvidos por ele, um novo desastre orbital só fica mais e mais provável. Megaconstelações de satélites, como o programa Starlink de Elon Musk, estão sendo postas em órbita. Segundo uma estimativa recente, mantendo-se o ritmo atual, 50 mil novos satélites serão lançados para a transmissão de serviços de internet nos próximos dez anos. Enquanto isso, nas faixas inferiores da exosfera, o ambiente continua a se degradar. Em janeiro de 2020, muitos quilômetros acima de Pittsburgh, no estado da Pensilvânia, um telescópio desativado e um satélite militar morto só não colidiram por uma questão de 15 metros. Em maio do mesmo ano, um foguete chinês de 20 toneladas passou na reentrada bem sobre o Central Park, em Nova York, indo espatifar-se no Atlântico ao largo da costa ocidental da África. Era um lembrete de que existem massas enormes deslocando-se a velocidades vertiginosas não muito acima da superfície da Terra. Quase ao mesmo tempo, um foguete Fregat russo explodiu centenas de quilômetros acima do Oceano Índico. Até onde foi possível rastrear, deixou 65 pedaços. O catálogo Norad teve de ser atualizado.