CRÉDITO: ALEXANDRE ALVES_2023
O poema é tudo que resta da nossa tragédia
Jorge Augusto | Edição 206, Novembro 2023
BIOGRAFIA
meu pai apostava o feijão no futebol
tinha drible ligeiro, batia forte na bola
eu apostei a vida no poema
nas promessas que ele inventava
cada um escolhe o deus
que nos salva e condena
nunca acertamos um milhar
nenhuma pule premiada
não houve livro na lista dos mais
vendidos nada no jogo do bicho
no fim sobramos dois vagabundos
esperando explodir o fim do mundo
ele cansou, partiu primeiro, enquanto
eu vou indo, de domingo a domingo
pagando o preço do precipício que
é viver sem ter mais nada a perder.
BURACO NEGRO
esqueço que estou nesse buraco
imenso porque posso deixar
o corpo fazer seus movimentos
básicos uma estirada de braço
ir e vir em linha reta, ziguezaguear
numa pequena perpendicular
girar em torno do próprio eixo
sem sair do lugar, fazer peque-
na série de exercício muscular
nada que extrapole os poucos
passos demarcados, ou que ame-
ace romper fronteiras do espaço
não consigo ver a saída, o ponto
de fuga e parece que quanto mais
me movo mais afundo o buraco
cavo involuntariamente essa cela
que me soterra como uma planta
como grão que morre na promessa
nesse buraco sou o cabelo a unha
e o osso, o que sobrou do sonho
porta-retrato intacto sob o escombro
OBITUÁRIO PARA PEDRO GONZAGA
um peixe fora d’água morre
de asfixia um homem não
um homem negro se debate
morre de asfixia fora d’água
homens brancos respiram, não
morrem de asfixia fora d’água
peixes e homens negros devem
respirar, viver debaixo d’água
mas essa água não é rio ou mar
aberto oceano onde navegam
é água de criadouro ou aquário
onde moram num estreito 3×4
para não morrer de asfixia vivem
no aquário: Avenida Peixe, Lagos
Ilha de Maré, Prainha do Lobato
mas os peixes pretos não podem
sair do aquário senão morrem
asfixiados se debatendo no asfalto
SEM NOME
a marca de nascença
no peito do pé
na mão esquerda uma cicatriz
que ganhou empinando arraia
rosto desfigurado, resto e rastro
de um corpo sem nome
só os pais o reconheceriam
no detalhe dos traços
no B.O.: homem negro, de estatura
baixa, franzino, aparentando 9 anos
O POEMA NO FIM DO MUNDO
o poema nasce inimigo de si mesmo
ateu como uma criança, o tempo é seu deus,
não faz promessas, nunca se converteu
vive em rebelião contra o próprio corpo
bonito e morto como buquê de floricultura
trair-se em eterno adultério é o único remédio
para o fim do mundo, curar o
poema das ladainhas de luto e de luta
em luta está sempre em guerra
com todo o resto, contra tudo que existe
rebelde sem causa própria, bélico, babéli-
co, lírico e bandido todo poema é o ruído
que resta após o fim da festa, tagarelando
para surdos, como um robin hood tenta des-
esperadamente fazer o fim desse mundo.
o poema é tudo que resta da nossa tragédia
entende que não pode salvar nada, nenhuma
criança ou idoso, não há mais consolo algum
ele tenta prolongar o fim: último recurso,
sabe que a linguagem é um deus sem milagre, mas
recusa o luto no sacrifício eterno por outro mundo