ILUSTRAÇÃO: FABIO CARDOSO
O poeta e o mundo
Nove poemas da polonesa que, em 1996, ganhou o Prêmio Nobel da Literatura
Wisława Szymborska | Edição 8, Maio 2007
Wislawa Szymborska nasceu em 1923, no vilarejo polonês de Bninie. Morava em Cracóvia desde os 8 anos. Levou uma vida singela, sem grandes atropelos. Durante a Segunda Guerra, foi funcionária do departamento de estradas de ferro. Mais tarde, trabalhou como secretária, ilustradora e, durante décadas, como editora de uma revista cultural. Começou a escrever poesia aos vinte e poucos anos. Em 1949, seu primeiro livro foi censurado pelo regime comunista, que o considerou obscuro demais para as massas. Talvez Szymborska tenha levado a sério a advertência, pois a obra que viria a consagrá-la é de uma desafetação exemplar. A dicção é coloquial, despojada de retórica e efeito poético. São poemas claros como água pura.
Mas é possível espantar-se com a água, e assim é Wislawa Szymborska: ela se surpreende, seja com as miudezas da vida, seja com os horrores da História. É uma poesia do assombro. Há um espanto de natureza quase darwiniana, suscitado pelo fato de estarmos aqui – nós e não outros. Há o que nasce da consciência de que ninguém está no centro de nada, de que o mundo segue adiante sem o nosso testemunho. Quanto à História, Szymborska a enfrenta sem abrir a guarda para sentimentalismos. O pior acontece, e será esquecido.
Em 1996, a poeta ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Tinha 73 anos e era praticamente desconhecida fora da Polônia. Foi talvez o único sobressalto de sua vida. No Brasil, Ana Cristina Cesar e Nelson Ascher traduziram alguns de seus poemas. Regina Przybycien, professora da Universidade Federal do Paraná, publicou na revista Oroboro uma pequena seleta de traduções. piauí publica nove poemas traduzidos em conjunto por Sylvio Fraga Neto e Danuta Haczyn´ska da Nóbrega; ele, a partir da tradução inglesa, ela, do original polonês. O discurso de Wislawa Szymborska na Academia Sueca foi traduzido do inglês por Rubens Figueiredo.
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Dizem que a primeira frase de um discurso é sempre a mais difícil. Bem, ela já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que as frases ainda por vir – a terceira, a sexta, a décima e assim por diante, até a última linha – serão igualmente difíceis, pois tenho de falar sobre poesia. Falei muito pouco sobre o assunto – quase nada, de fato. E sempre que falei me veio a furtiva suspeita de que não sou muito boa nisso. Portanto, minha palestra será bem curta. A imperfeição é mais fácil de tolerar em doses pequenas.
Os poetas contemporâneos são céticos e desconfiados até, ou talvez sobretudo, de si mesmos. Só com relutância confessam publicamente ser poetas, como se tivessem um pouco de vergonha. Mas em nossos tempos estrepitosos é mais fácil reconhecer nossos erros, ao menos se estiverem atraentemente embalados, do que reconhecer os próprios méritos, pois estes se mantêm ocultos mais no fundo, e nós mesmos nunca acreditamos muito neles… Quando preenchem fichas ou batem papo com estranhos – ou seja, quando não podem deixar de revelar sua profissão -, os poetas preferem usar o termo genérico “escritor” ou substituir “poeta” pelo nome de qualquer outro trabalho que façam, além de escrever. Burocratas e passageiros de ônibus reagem com um toque de incredulidade e alarme quando descobrem que estão tratando com um poeta. Creio que os filósofos enfrentam reação semelhante. Contudo, estão numa posição melhor, pois na maioria das vezes podem ornamentar seu ofício com algum tipo de título universitário. Professor Doutor de Filosofia: isso sim soa mui¬to mais respeitável.
Mas não existem professores de poesia. Afinal de contas, isso significaria que a poesia é uma ocupação que requer um estudo especializado, exames regulares, ensaios teóricos com bibliografia e notas de rodapé anexadas e, por fim, diplomas conferidos com pompa. E significaria, em troca, que não basta encher páginas de poemas, mesmo os mais primorosos do mundo, para tornar-se um poeta. O fator decisivo seria um pedaço de papel que traz um selo oficial. Lembremos que o orgulho da poesia russa, o futuro ganhador do Prêmio Nobel Joseph Brodsky, foi certa vez condenado ao exílio em seu próprio país justamente com base nessa idéia. Chamaram-no de “parasita” porque não possuía o certificado oficial que lhe assegurava o direito de ser poeta.
Há muitos anos, tive a honra e o prazer de encontrar com Brodsky. Notei que, de todos os poetas que eu conhecia, ele era o único que gostava de se chamar de poeta. Pronunciava a palavra sem inibição. Ao contrário: ele a falava com uma liberdade desafiadora. Isso devia ocorrer, é o que me parece, por causa da lembrança das humilhações que sofreu na juventude.
Em países mais afortunados, onde a dignidade humana não é agredida tão facilmente, os poetas almejam ser publicados, lidos e compreendidos, mas fazem pouco, ou quase nada, para se situarem acima do rebanho geral e da roda-viva do dia-a-dia. No entanto, ainda não faz tanto tempo, os poetas se esforçavam para nos escandalizar com suas roupas extravagantes e seu comportamento excêntrico. Tudo isso era só para encher os olhos do público. Sempre chegava a hora em que os poetas tinham de fechar a porta atrás de si, despir suas capas, seus penduricalhos e outras parafernálias poéticas e enfrentar – em silêncio, com paciência, à espera de si mesmos – a folha de papel ainda em branco. Pois, no final, é isso o que de fato conta.
Não é por acaso que filmes biográficos sobre cientistas e artistas célebres são produzidos aos montes. Os diretores mais ambiciosos tentam reconstituir de forma convincente o processo criativo que gerou importantes descobertas científicas, ou o surgimento de uma obra-prima. E se pode retratar certos tipos de atividade científica com algum sucesso. Laboratórios, instrumentos diversos, máquinas complicadas em ação: tais cenas podem prender o interesse da platéia durante algum tempo. E aqueles momentos de incerteza – será que a experiência, realizada pela milésima vez com uma ínfima alteração, produzirá por fim o resultado desejado? – podem ser dramáticos. Filmes sobre pintores podem ser espetaculares, enquanto recriam todos os estágios da evolução de um pintor famoso, desde o primeiro traço a lápis até a pincelada definitiva. A música se expande nos filmes sobre compositores: os primeiros compassos da melodia que soa nos ouvidos do músico emergem, no fim, como uma obra madura em forma sinfônica. Claro, tudo isso é ingênuo, e não explica o estranho estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas pelo menos existe algo para se olhar e se ouvir.
Mas os poetas são os piores. Seu trabalho, inapelavelmente, nada tem de fotogênico. Alguém senta a uma mesa ou deita num sofá enquanto olha imóvel para a parede ou para o teto. De quando em quando, essa pessoa escreve sete linhas, só para riscar uma delas quinze minutos depois, em seguida mais uma hora se passa, durante a qual nada acontece… Quem agüentaria assistir a esse tipo de coisa?
Mencionei a inspiração. Poetas contemporâneos respondem de forma evasiva quando lhes perguntam o que é isso, e se existe de verdade. Não é que nunca tenham conhecido a bênção desse impulso interior. Só que não é fácil explicar a uma outra pessoa aquilo que você mesmo não compreende.
Quando ocorre de me perguntarem sobre o assunto, também me esquivo. Mas minha resposta é esta: a inspiração não é um privilégio exclusivo de poetas e artistas. Existe, existiu, existirá sempre certo grupo de pessoas a quem a inspiração visita. É formado por todos aqueles que conscientemente escolheram sua vocação, e fazem seu trabalho com amor e imaginação. Pode incluir médicos, professores, jardineiros – eu poderia fazer uma lista de mais de cem profissões. Seu trabalho se torna uma aventura constante, enquanto forem capazes de continuar a descobrir nele novos desafios. Dificuldades e reveses nunca sufocam a sua curiosidade. Um enxame de questões novas emerge de cada problema que eles solucionam. Seja lá o que for a inspiração, ela nasce de um contínuo “não sei”.
Não existem muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para ganhar a vida. Trabalham porque têm de trabalhar. Não escolhem este ou aquele tipo de trabalho por paixão; as circunstâncias de suas vidas fizeram a escolha por eles. Trabalho sem amor, trabalho maçante, trabalho cujo mérito consiste no fato de que outros nem isso têm – aí está uma das mais penosas desventuras humanas. E não há sinal de que os séculos vindouros produzirão qualquer melhora em relação a este estado de coisas.
Assim, embora eu possa recusar aos poetas o monopólio da inspiração, ainda os situo num grupo seleto de favoritos da Fortuna.
Neste ponto, certas dúvidas podem surgir na minha platéia. Toda sorte de torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos que lutam pelo poder com um punhado de retumbantes palavras-de-ordem também gostam de seu trabalho, e também cumprem suas obrigações com um fervor inventivo. Bem, está certo: mas eles “sabem”, e o que quer que saibam é o suficiente para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada, uma vez que isso pode reduzir a força de seus argumentos. Mas todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura necessária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à sociedade.
É por isso que dou tanto valor à pequena frase “não sei”. É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande nossa vida para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo “não sei”, as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter caído no chão como uma chuva de granizo – no máximo, teria parado para pegá-las e devorá-las com deleite. Se a minha compatriota Marie-Curie Sklodowska nunca tivesse dito a si mesma “não sei”, na certa acabaria lecionando química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias, e terminaria seus dias cumprindo esse trabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela não parou de dizer “não sei”, e essas palavras levaram-na, não só uma vez, mas duas, a Estocolmo, onde espíritos inquietos, indagadores, são de tempos em tempos contemplados com o Prêmio Nobel.
Poetas, se autênticos, também devem repetir “não sei”. Todo poema assinala um esforço para responder a essa afirmação, mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a hesitar, a se dar conta de que essa resposta particular era puro artifício, absolutamente inadequada. Portanto, os poetas continuam a tentar e, mais cedo ou mais tarde, os resultados da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, e presos num clipe gigante pelos historiadores da literatura, e passam a ser chamados de suas “obras”.
Às vezes, sonho com situações que não podem virar realidade. Imagino, por exemplo, que tenho uma chance de trocar umas palavrinhas com o autor do Eclesiastes, aquele comovente lamento sobre a vaidade de todos os esforços humanos. Curvo-me profundamente diante dele, pois é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois seguro a sua mão. “Não há nada de novo sob o sol – foi o que você escreveu. Mas você mesmo nasceu novo sob o sol. E o poema que criou é também novo sob o sol, uma vez que ninguém o havia escrito antes de você. E todos os seus leitores são também novos sob o sol – aqueles que viveram antes de você não puderam ler o seu poema. E esse cipreste sob o qual está sentado não cresceu desde o início dos tempos. Nasceu de um outro cipreste semelhante ao seu, mas não exatamente igual.
E, Eclesiastes, eu também gostaria de lhe perguntar que coisa nova sob o sol está agora em seus planos de trabalho. Um suplemento adicional às idéias que já expressou? Ou talvez esteja agora tentado a contradizer algumas delas? Em sua obra inicial, você fez menção à alegria – de que adianta se é fugaz? Então, será que o seu poema novo sob o sol vai falar da alegria? Já tomou notas, fez rascunhos? Duvido que você responda: ‘Já escrevi tudo, não tenho mais nada a acrescentar’. Não existe no mundo nenhum poeta que possa dizer isso, muito menos um grande poeta como você.”
O mundo – o que podemos pensar quando estamos apavorados com a sua amplidão e com a nossa própria impotência, ou quando estamos amargurados com a sua indiferença em relação ao sofrimento individual, das pessoas, dos animais e talvez até das plantas (pois por que estamos tão seguros de que as plantas não sentem dor?); o que podemos pensar sobre as suas vastidões penetradas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas começamos a descobrir, planetas já mortos? Simplesmente não sabemos; o que podemos pensar sobre este teatro imensurável para o qual temos ingressos reservados, mas ingressos cujo prazo de validade é risivelmente curto, delimitado como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos sobre este mundo – ele é assombroso.
Mas “assombroso” é um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Ficamos assombrados, afinal de contas, por coisas que divergem de alguma norma conhecida e universalmente aceita, de um truísmo ao qual nos habituamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso assombro existe per se e não se baseia numa comparação com outra coisa.
Claro, na fala cotidiana, em que não paramos a todo instante para ponderar cada palavra, todos usamos expressões como “o mundo comum”, “vida comum”, “o desenrolar comum dos acontecimentos”. Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as palavras, nada é usual ou normal. Nem uma única pedra e nem uma única nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem uma única existência, a existência de nenhuma pessoa neste mundo.
Tudo indica que os poetas terão sempre uma tarefa muito árdua à espera.
FOTOGRAFIA DO 11 DE SETEMBRO
Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este vôo
e não acrescentar o último verso.
POR UM ACASO
Poderia ter acontecido.
Teve que acontecer.
Aconteceu antes. Depois. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu, mas não com você.
Você foi salvo pois foi o primeiro.
Você foi salvo pois foi o último.
Porque estava sozinho. Com outros. Na direita. Na esquerda.
Porque chovia. Por causa da sombra.
Por causa do sol.
Você teve sorte, havia uma floresta.
Você teve sorte, não havia árvores.
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um freio,
um batente, uma curva, um milímetro, um instante.
Você teve sorte, o camelo passou pelo olho da agulha.
Em conseqüência, porque, no entanto, porém.
O que teria acontecido se uma mão, um pé,
a um passo, por um fio
de uma coincidência.
Então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso?
Um só buraco na rede e você escapou?
Fiquei mudo de surpresa.
Escuta,
como seu coração dispara em mim.
A ALEGRIA DE ESCREVER
Para onde corre este cervo escrito na floresta que escrevi?
É para beber da água escrita,
que desenha seu focinho?
Por que ele ergue a cabeça, escutou algo?
Apoiado nas quatro patas emprestadas da verdade
ele apura as orelhas sob meus dedos.
Silêncio – essa palavra ressoa na textura do papel
e afasta os galhos
que brotam da palavra floresta.
Sobre a folha em branco há letras espreitando
que podem tomar o mau caminho
formando frases ameaçadoras
das quais nada escapa.
Em cada gota de tinta há um bom estoque
de caçadores de olho na mira,
prontos a descer pela caneta íngreme,
cercar o cervo e apontar as armas.
Eles esquecem que aqui não há vida de verdade.
No preto-e-branco vigem outras leis.
Um piscar de olhos durará o tempo que eu quiser
e poderá ser dividido em pequenas eternidades,
cada uma com chumbo suspenso em pleno vôo.
Aqui nada acontecerá sem meu aval.
Contra minha vontade, nem uma folha cairá
e nem uma grama se dobrará sob o casco do cervo.
Então existe um mundo
onde eu possa impor o destino?
Um tempo que eu teço com uma corrente de sinais?
Uma existência que, a meu comando, não terá fim?
A alegria de escrever.
O poder de preservar.
Vingança de uma mão mortal.
A CORTESIA DOS CEGOS
O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os neons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
Ele lê-pois já não pode parar –
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
Ele gostaria de omitir – embora seja impossível –
todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.
BEM CEDO
Ainda durmo,
mas enquanto isso as coisas acontecem.
A janela embranquece,
a escuridão se acinzenta,
o quarto emerge de um espaço indefinido,
listas pálidas e instáveis buscam apoio.
Na fila, sem pressa,
pois isso é uma cerimônia,
amanhecem as superfícies do teto e das paredes,
as formas se destacam
umas das outras,
as da esquerda das da direita.
As distâncias entre os objetos vibram,
as primeiras luzes cintilam
no copo, na maçaneta.
As coisas deixam de ser impressões, já existem,
como o que ontem foi deslocado,
o que caiu no chão
e o que está contido nas molduras.
Apenas os detalhes continuam invisíveis.
Mas atenção, atenção, atenção,
tudo indica que as cores estão retornando
e mesmo a mínima coisa recebe de volta sua matiz,
acompanhada de uma ponta de sombra.
Raramente isso me surpreende, mas deveria.
Normalmente eu acordo, testemunha atrasada,
o milagre finalizado,
o dia definido
e a aurora magistralmente transformada em manhã.
AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS
Quando eu falo a palavra Futuro,
a primeira sílaba já pertence ao passado.
Quando eu falo a palavra Silêncio,
o destruo.
Quando eu falo a palavra Nada,
crio algo que nenhum não-ser comporta.
ENCONTRO INESPERADO
Nós nos tratamos com extrema cortesia,
dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo.
Nossos tigres bebem leite.
Nossos falcões preferem o chão.
Nossos tubarões se afogam no mar.
Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta.
Nossas cobras perderam seu lampejo,
nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas.
Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos.
Caímos em silêncio no meio da conversa,
e não há sorriso que nos salve.
Nossos humanos
não sabem falar uns com os outros.
O FIM E O INÍCIO
Depois de toda guerra
alguém tem que fazer a faxina.
As coisas não vão
se ajeitar sozinhas.
Alguém tem que tirar
o entulho das ruas
para que as carroças possam passar
com os corpos.
Alguém tem que abrir caminho
pelo lamaçal e as cinzas,
as molas dos sofás,
os cacos de vidro,
os trapos ensangüentados.
Alguém tem que arrastar o poste
para levantar a parede,
alguém tem que envidraçar a janela,
pôr as portas no lugar.
Não é fotogênico
e leva anos.
Todas as câmeras já foram
para outra guerra.
Precisamos das pontes
e das estações de trem de volta.
Mangas de camisas ficarão gastas
de tanto serem arregaçadas.
Alguém de vassoura na mão
ainda lembra como foi.
Alguém escuta e concorda
assentindo com a cabeça ilesa.
Mas haverá outros por perto
que acharão tudo isso
um pouco chato.
De vez em quando alguém ainda
tem que desenterrar evidências enferrujadas
debaixo de um arbusto
e arrastá-las até o lixo.
Aqueles que sabiam
o que foi tudo isso,
têm que ceder lugar àqueles
que sabem pouco.
E menos que pouco.
E finalmente aos que não sabem nada.
Alguém tem que deitar ali
na grama que cobriu
as causas e conseqüências,
com um matinho entre os dentes
e o olhar perdido nas nuvens.
PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA
Nós o chamamos de grão de areia,
mas ele não se considera nem grão nem areia.
Vive perfeitamente bem sem um nome,
seja genérico, particular,
provisório, permanente,
incorreto ou preciso.
Nosso olhar, nosso toque nada significam para ele.
Ele não se sente observado e tocado.
E o fato de que caiu no parapeito
é uma experiência nossa, não dele.
Poderia cair em qualquer outro lugar,
sem saber se parou de cair
ou se continua caindo.
A janela tem uma bela vista do lago,
mas a vista não se vê a si mesma.
Ela existe nesse mundo
sem cor, sem formato,
sem som, sem cheiro e sem dor.
O fundo do lago existe sem chão
e sua margem, sem beira.
Sua água não se sente nem seca nem molhada
e suas ondas nem uma nem muitas.
Elas quebram surdas a seu próprio barulho
em pedras nem grandes nem pequenas.
E tudo isso sob um céu que por natureza não é céu,
onde o sol se põe sem se pôr
e se esconde sem se esconder por trás de uma nuvem indiferente,
agitada por um vento
que sopra apenas por soprar.
Um segundo passa.
Outro.
Um terceiro.
Mas esses três segundos são apenas nossos.
O tempo passou feito um mensageiro com notícias urgentes.
Mas isso é apenas nossa símile.
O personagem é inventado, sua pressa imaginária,
sua notícia desumana.