ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
O quibe da Jandira
O delivery da deputada comunista
Rafael Cariello | Edição 89, Fevereiro 2014
Os quibes, quentinhos, foram postos à mesa diante da dona do restaurante Líbano Rio Express. Era hora do almoço, e os salgados vinham bem a calhar. O pequeno estabelecimento de comida árabe, inaugurado há seis meses, fica no 2º andar de uma movimentada galeria comercial de Copacabana, entre lojas de bijuteria, confecções de biquínis fosforescentes e vendinhas de artigos para turistas.
Os quatro quitutes, dispostos com capricho no prato, como um trevo de quatro folhas, vinham acompanhados de um simples limão, já partido. A dona do estabelecimento achou pouco, e mandou trazer também o molho de alho. Parecia preocupada com a opinião do cliente potencial. “Tá fininha a massa? Crocante?”, quis saber. “Repara como o recheio é úmido, temperadinho. Não está macio? Não está bom?” Estava. A descrição que ela fazia era precisa, e o quibe não faria feio nas melhores casas de comida árabe da cidade. Não havia razão para a ansiedade da proprietária, a deputada federal Jandira Feghali.
Além de neófita no ramo da gastronomia, Jandira é um dos principais quadros do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, cujos militantes, visando a uma sociedade sem classes, lutaram e foram massacrados pelo Exército brasileiro na região Norte, durante a guerrilha do Araguaia, nos anos 70.
Jandira entrou no partido mais tarde, no início da década de 80, época em que concluía seus estudos de medicina. Com 1,79 metro de altura e quadris largos, ela se espremeu num Voyage “sem ar-condicionado”, em 1986, e rodou o estado do Rio de Janeiro atrás de votos para ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa. Ganhou um problema de coluna desbravando as estradas fluminenses, o que a obrigou a interromper a campanha por alguns dias. Ainda assim, Jandira se elegeu.
Em 1990, deu novo passo e chegou à Câmara dos Deputados, em Brasília. Cumpre hoje o quinto mandato federal. Tem um eleitorado fiel, e sua atuação legislativa se destaca por projetos nas áreas da saúde e da cultura. Fisicamente, Jandira é reconhecível, sobretudo, pelos cachos volumosos de seu cabelo castanho-alaranjado.
Apesar do sucesso na carreira política, a mandatária comunista passou a considerar alternativas profissionais, de uns tempos para cá. “Queria deixar alguma coisa para os meus filhos, para o meu final de vida”, disse a deputada numa quinta-feira escaldante de janeiro, numa pequenina sala anexa à sua loja. “Sempre tive, também, a vontade de valorizar culturalmente a minha ascendência.”
Seu pai veio do Líbano para o Brasil em 1948, aos 18 anos de idade. Pretendia apenas passear, contou Jandira, mas se apaixonou pela filha de uma família de conterrâneos que vendia tecidos em Curitiba, e por aqui ficou. Foi na capital paranaense que Jandira nasceu, em 1957. Mas logo pegou a estrada, com os pais. Perseguindo oportunidades comerciais variadas, o casal viveu em Londrina e São Paulo, antes de se estabelecer na Baixada Fluminense.
Foi lá que seu irmão, Ricardo Feghali, descobriu o talento para a música. Ricardo é guitarrista e tecladista do grupo Roupa Nova, que nos anos 80 fez sucesso com canções como Dona e Whisky a Go Go. A própria Jandira toca bateria, e participou do grupo embrião do Roupa Nova, nos anos 70. Com o restaurante, ela e o irmão voltaram a se reunir num empreendimento comum. O multi-instrumentista é seu sócio na casa de comida árabe.
A deputada ainda falava do passado familiar quando o garçom apareceu, de repente, trazendo o produto mais famoso do Líbano Rio Express: o quibe de peixe, pièce de résistance da casa. Jandira explicou que herdou a receita do pai. Em uma de suas empreitadas comerciais, Albert Feghali começou a vender o quitute, com grande sucesso, no interior de São Paulo.
Seguiu-se um novo momento de apreensão. Numa das primeiras críticas gastronômicas que a loja recebeu, o jornalista reclamou do exagerado ponto do sal no quitute. Jandira atribuiu o problema ao tempo que o quibe provado pelo crítico passara no mostruário. “Ficou desidratado”, justificou-se. Esse que havia sido servido agora, recém-saído do fogão, estava equilibrado. A carne do peixe, finamente desfiada, compunha um recheio suculento envolto pela leve farinha do quibe, crocante no ponto ideal.
A casa serve in loco os clientes que aparecem no balcão. Mas sua especialidade mesmo é a entrega por encomenda, limitada aos bairros em torno de Copacabana. Há planos de expansão. Jandira e o irmão se uniram a um terceiro sócio, empreendedor antigo no ramo da gastronomia carioca, e com ele pretendem abrir, em breve, um restaurante maior, também em Copacabana. Vislumbram ainda uma terceira casa, no Leme. “Teremos novos pratos e uma carta de vinhos”, anunciou. Quando esse dia chegar, será possível ampliar a área de entrega para cobrir toda a Zona Sul da cidade.
Além das ambições comerciais, a deputada faz planos políticos para 2014. O partido lançou, no final do ano passado, sua pré-candidatura ao governo do estado. Naquela tarde, em sua loja, Jandira disse que, passadas mais de três décadas da filiação ao PCdoB, ela ainda crê no triunfo do socialismo. “Não acredito no capitalismo como solução para os problemas da humanidade”, explicou. “Nunca, nele, você vai superar a desigualdade, a má distribuição de renda. A marca do capitalismo é a exploração do trabalho e a concentração.”
Perguntei se a revolução significaria a transferência para o Estado de todas as propriedades e empreendimentos. Jandira argumentou que não, que há muito tempo já não se pensa assim. “Até Cuba está liberando os táxis para a iniciativa privada”, lembrou. “Pequena e média propriedade, não se discute. O que se fala hoje é em planejamento nos meios de produção maiores, estratégicos.” Afinal, com um sorriso no rosto, deu o exemplo que mais importava. “Esse delivery aqui, por exemplo, ninguém ia tomar.”