ILUSTRAÇÃO: CLAUDIUS CECCON_2013
O radical de centro
Paradoxos de um intelectual
Fernando de Barros e Silva | Edição 77, Fevereiro 2013
Se ocorresse a alguém fazer um álbum ilustrativo das figuras do poder no Brasil, uma das mais curiosas seria o radical de centro. Não exatamente uma figurinha rara – muito menos do que ele próprio gostaria –, mas um tipo carimbado, ao mesmo tempo peculiar e sintomático do jeitinho brasileiro de reagir ao fim das utopias e vivenciar as frustrações da esquerda em escala mundial.
O radical de centro é, na sua origem, um intelectual que chegou atrasado ao espetáculo da História e foi pego no contrapé de suas convicções, mas a tempo de se emendar sem que virasse uma viúva inconsolável do mundo que se foi. Por exemplo, um intelectual da geração de Fernando Haddad. Fez sua educação político-sentimental mais ou menos entre o declínio da ditadura no Brasil e o fiasco planetário do socialismo, de meados dosanos 70 a 89, ano em que Lula também perdeu o trem rumo à estação Finlândia e Fernando Collor, da maneira destrambelhada que se sabe, colocou o país nos trilhos da modernização capitalista conservadora, onde até hoje nos encontramos (às vezes mais, às vezes menos).
O radical de centro deve seu enraizamento na paisagem brasileira a Fernando Henrique e Lula. Foi nos seus governos, quando o horizonte das mudanças de que eles eram portadores foi rebaixado e as perspectivas pessoais de certa esquerda paradoxalmente se ampliaram, que esse personagem meio desalojado de si mesmo finalmente se encontrou.
Hoje ele está em toda parte, transitando indefinidamente entre a empresa pública e a iniciativa privada, do cargo no governo (que ele chama de missão) ao assento no conselho de alguma empresa de proa (que ele finge ser um fardo). Hay que saltitar, pero sin perder las convicciones jamás – é este o seu lema.
Na direção de uma estatal, por exemplo, ele encontra energia para criticar os apadrinhamentos, a política de favores, o aparelhamento da máquina, os privilégios, com os quais, no entanto, convive de perto. Ao deixar o governo, procura transformar o desgaste acumulado durante anos de tensão retórica em gesto heroico e exemplo de resistência. Vira então colaborador regular de um jornal conservador, que faz oposição frontal e sistemática ao governo a que ele até a antevéspera servia. Afinal, é importante ocupar espaços na mídia burguesa, alargar o debate e coisa e tal.
O radical de centro viaja sempre a favor da maré, mas transmite invariavelmente a sensação de que rema contra ela. Ele é o neomonopolista do bom-senso, defende sempre o meio do caminho entre dois pontos. E de lá, do meio do caminho, trata de agarrar os dois. Entre apocalípticos e integrados, fecha com ambos, reconhecendo-lhes as razões. Tem um pé no reino (ou na ruína) socialista, outro no PMDB. Ou na aliança do PP de Paulo Maluf com o PT pós-mensalão. O radical de centro é uma espécie de malandro contemporâneo. Mas um malandro de consciência infeliz, que não consegue deixar de se levar a sério. O seu samba é triste.
Como intelectual que é, busca ser fiel às aspirações de juventude e ainda paga seu tributo ao pensamento sombrio da Escola de Frankfurt – é, afinal, um radical. Mas nunca deixa, ao mesmo tempo, de fazer a crítica construtiva àqueles que se protegeram na torre de marfim da teoria, sem pôr as mãos na massa – afinal, sabe reconhecer a importância das pequenas conquistas. Entre Adorno e Michel Temer, ele se equilibra sem sorrir.
A sua grande referência intelectual no Brasil é Roberto Schwarz, em quem enxerga, com justiça, o ponto mais alto que o pensamento de esquerda pode alcançar. Seu comportamento, porém, está mais próximo de outro Roberto, o Mangabeira Unger, aquele que certo dia acusou Lula de ser o presidente mais corrupto da história e tempos depois integrava o governo do mesmo Lula, brincando de salvar o país enquanto despachava de terno e gravata em uma secretaria qualquer de assuntos estratosféricos. Como esse outro Roberto, o radical de centro é hiperativo, participa de muitas comissões, acumula tarefas, anda sempre ocupado e parece sempre insatisfeito. Um pouco por tudo isso, e a despeito de sua cordialidade essencial, o veterano da esquerda o considera um tipo meio café com leite.
O radical de centro segue petista, apesar de tudo. Petista crítico, claro. Mas nutre ternura pelo PSOL, sentimento do qual intimamente se orgulha. Vê os psolistas como bons selvagens da política brasileira, rousseauístas numa época corrompida, grilos falantes a nos alertar para as ameaças da selva capitalista. O PSOL tem espaço cativo no seu coração, mas os hábitos e o padrão de vida do radical de centro são basicamente tucanos. Ele é uma espécie de condensado involuntariamente cômico e voluntariamente bem-sucedido do progressismo brasileiro.
E também é professor. Não precisa mais disso, mas gosta, acha bonito lecionar. Na sala de aula, inflama-se ao falar de ética, tema central de sua agenda pedagógica. Escreve frequentemente sobre o assunto. Vai, ou acredita ir sempre à raiz do problema. É um radical, como Marx. Na prática, vive como alguém de centro vive da política, de acordo com as possibilidades (e oportunidades) de sua época. À noite, com a cabeça no travesseiro, às vezes lhe toca refletir sobre os paradoxos insuperáveis da existência.
Outro dia o radical de centro ouviu pela primeira vez uma canção bem engraçadinha de Zeca Baleiro. Chama-se Pastiche. Os versos que não lhe saíram mais da cabeça diziam o seguinte:
Um anjo veio e me disse: gauche!
A vida veio e me pintou guache.