O rapper e a polenta
Marcelo D2, ardente antibolsonarista, reata com Deus e se converte às delícias da vida em família
Filipe Vilicic | Edição 179, Agosto 2021
Em 12 de fevereiro do ano passado, o rapper carioca Marcelo Maldonado Peixoto, conhecido como Marcelo D2, se casou pela quarta vez. Após quinze meses de namoro, ele e a produtora artística Luiza Machado Peixoto se uniram em uma cerimônia simples, só para familiares e amigos próximos, num cartório no bairro do Catete, no Rio de Janeiro. Um mês mais tarde, a Covid-19 começou a se alastrar pelo Brasil, e os dois tiveram que se trancar em seu apartamento, num prédio de luxo no Leblon.
Com 53 anos, quatro filhos e dois netos, Marcelo D2 imaginava que a gravidez de Luiza, vinte anos mais jovem, só ocorresse em 2022. Mas uma viagem precipitou as coisas. Depois de oito meses de quarentena e supondo, como muitos, que a pandemia estava arrefecendo, o casal resolveu tirar uns dias de folga na Praia de Algodões, na Bahia. A ideia era comemorar o aniversário do rapper, em 5 de novembro, e de dois anos do início de namoro, no dia seguinte.
Em Algodões, no dia 6, Luiza resolveu preparar um ritual na praia para pedir por fecundidade. Seguindo suas crenças sincretistas, com influência da umbanda, ela acendeu velas e fez alguns cânticos. Como a praia estava deserta, o casal acabou fazendo amor ali mesmo.
Tanto o músico quanto sua mulher têm certeza de que foi naquele momento que conceberam Maria Isabel, a Bebel, cujo nascimento está previsto para o fim de julho ou início deste mês. “Achei que ia demorar mais para acontecer, pela minha idade. Mas foi rápido. Vou dizer que fiquei até com um pouco de orgulho de mim”, afirmou Marcelo D2, rindo, à piauí.
Quando se aproximou o Réveillon, os dois resolveram festejar a data na fazenda dos pais de Luiza, no interior de São Paulo. Estavam a caminho, quando receberam o resultado dos exames de Covid-19 feitos no Rio. Ele: negativo. Ela: positivo. O casal teve que passar o período de festas isolado do resto da família, numa casa menor da fazenda. “No dia 31, fomos dormir às oito da noite. Acordei com o barulho de fogos de artifício, à meia-noite, mas voltei logo para a cama”, contou o músico. Luiza teve sintomas leves, mas nem por isso as preocupações foram menores. “Ela já estava grávida, meu irmão. Ficamos muito assustados.” O exame feito pelo rapper indicou que ele tinha anticorpos contra o coronavírus. É provável que tenha contraído a doença meses antes da mulher, sem perceber.
A boa-nova da chegada de Bebel embalou o início de 2021 do casal. Até que, em fevereiro, Marcelo D2 recebeu a terrível notícia da morte de sua mãe, Paulete Maldonado, de 76 anos, vítima de um infarto. “Ela era o arrimo da família. A grande matriarca”, descreveu o músico. “Foi uma mulher à frente de seu tempo, a primeira a aceitar a homossexualidade de alguns amigos e parentes, assim como a maconha, os primos rebeldes que se opunham à ditadura e tudo o que era vanguarda.”
Com a morte da mãe, Marcelo D2 assumiu o lugar de “patriarca” da família, composta por sua irmã, três sobrinhos, além de seus filhos e netos. O rapper inclui ainda no clã os amigos muito íntimos, que ele chama de “agregados”.
Apesar do choque que lhe causou a perda da mãe, o músico contou ter encarado a morte dela com mais serenidade do que a do pai, Dark Gomes Peixoto, que faleceu há três décadas. “Eu era jovem, tinha 26 anos, fiquei indignado. Briguei com Deus. Fui tomado pela pergunta: ‘Por que Você levou meu pai?’ Deixei de acreditar nas divindades.”
Dessa vez foi diferente. Ele foi atrás das divindades. Na primeira semana de março, procurou orientação espiritual de um Ifá, oráculo porta-voz de orixás nas religiões africanas. “Foi maneiro ter ido lá, bater um tambor, botar a cabeça conectada de novo com a natureza. Nós, pessoas urbanas, esquecemos da Lua, da maré, do dia e da noite.” Por influência de sua mulher, ele também tende ao sincretismo. “Se me perguntam se Luiza é religiosa, eu retruco: ‘Qual religião?’ Ela acende vela para Santa Maria, bate tambor para Ogum, medita para Buda. Na real, o que importa é o que está dentro de nós.”
O rapper diz que, agora, está “de bem com Deus”. E compara: “Sou mais religioso do que aqueles bolsominions em aglomerações, que se juntam para rezar por Bolsonaro e por devastação da natureza, por morte de milhares de pessoas, por tudo aquilo que está mais próximo do que o Diabo prega.”
Quando o assunto é Jair Bolsonaro, Marcelo D2 não se controla. Menos ainda no Twitter, onde fez de sua página com 1,1 milhão de seguidores um espaço de oposição sistemática ao presidente e à direita em geral.
O rapper passou um bom tempo afastado da rede social, mas voltou a dar mais atenção aos tuítes às vésperas do segundo turno da eleição de 2018, incomodado com a perspectiva de vitória de Bolsonaro. No dia 26 de outubro, o candidato presidencial perguntou no Twitter: “Quem é Marcelo de dois?” O músico respondeu: “Eu. E tô fazendo campanha contra vc… Vc deve tá sabendo, né? Veio aqui perguntar! Ainda estamos numa democracia e posso fazer isso… vou roubar muitos votos de você.” Bolsonaro retrucou com duas palavras: “Seja feliz.” Para Marcelo D2, o atual presidente representa a “pior faceta do país”, com sua combinação de “milico, crente e milícia”.
Desde então, passaram a ser frequentes os confrontos do rapper com os filhos do presidente e políticos bolsonaristas ou ex-bolsonaristas, como o deputado estadual Márcio Gualberto, do PSL do Rio de Janeiro, e o vereador paulistano e youtuber Arthur do Val, o Mamãe Falei, do Patriota. Mas seus embates vão além desse público. Em dezembro de 2019, a Justiça de São Paulo determinou que ele apagasse tuítes em que associava o governador paulista João Doria, do PSDB, à morte de nove jovens por policiais militares na favela Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista, naquele mesmo mês. Em junho passado, nove policiais militares foram indiciados pela Polícia Civil de São Paulo por homicídio culposo, mas o caso ainda não está encerrado.
Marcelo D2 também é conhecido por não ter papas na língua quando compõe suas músicas. Durante a conversa com a piauí, ele cantou o trecho de uma das faixas inéditas de seu novo álbum com o grupo Planet Hemp. O lançamento do disco estava previsto para 2020, mas foi adiado para depois da pandemia, porque, segundo o músico, “só faz sentido voltar com a banda quando pudermos ter contato com os fãs”. O trecho da música diz: Eu tenho minha palavra/Ela tem valor/E a verdade é nua e crua/Não preciso de uma arma, seu bunda-mole, para ter respeito na rua/Andam em seus condomínios, malditos minions, fazendo arminha com a mão/Tem coisa mais cafona/do que rico roubando em nome de Deus cristão? Para enfatizar a letra, cantou num tom de voz agressivo, gesticulando as mãos como se estivesse numa manifestação.
A raiva não é novidade. Desde o álbum de estreia do Planet Hemp, banda da qual ele foi um dos criadores em 1993, o rapper é conhecido por sua veemência. Todas as dezessete faixas de Usuário, lançado em 1995, chamavam a atenção pela intrepidez com que defendia a legalização das drogas, denunciava a desigualdade social e atacava a violência policial, como no rap Porcos Fardados/Bicho Feroz: Porcos da lei são todos marginais/Matam pessoas inocentes e continuam em paz/Despreparados, incompetentes agem acima da razão/Ao invés de impor a segurança apavoram a população.
Polêmicas acompanharam regularmente o Planet Hemp. Naquele mesmo ano, o primeiro clipe da banda, com a música Legalize Já, mostrava pessoas consumindo maconha e teve sua exibição na tevê proibida antes das 23 horas. Mais conflitos cercaram o grupo. “De um lado, os fãs sofriam com a violência policial no meio dos shows. Do outro, os caras nos atacavam no bolso. Era muito comum cancelarem nossas apresentações por medo da repressão”, recordou.
Os tempos mudaram, e Marcelo D2 também mudou. Durante a pandemia, aconselhado pela mulher, o rapper resolveu abrandar o tom de suas postagens nas redes sociais e até o das músicas. Ele concluiu que suas mensagens eram “violentas demais para esse momento”. Agora, pretende promover mais união e menos embate. “Está na hora de ser empático, de estender a mão, de cuidar dos nossos. ‘Farinha pouca, meu pirão primeiro’ é um ditado popular que me incomoda muito. Deveria ser ‘farinha pouca, bota mais água’. Fica ralo, mas todo mundo come.”
Ele contou que, um dia, mirando o espelho, perguntou a si mesmo: “É isso que você quer pra vida, meu irmão? Ficar discutindo com Carlos Bolsonaro e Mamãe Falei?” E resolveu mudar de rumo: “Estou em um nível bem acima deles. Não quero ficar discutindo com esses caras que não conseguem ter uma conversa racional. Só sabem chamar os outros de comunista e maconheiro. Aí esperam que a gente retruque de forma simplória, chamando eles de fascistas.”
Marcelo D2 disse ter caído nessa armadilha, mas que está tentando sair dela. “Perdemos nesse campo de batalha entre quem xinga mais a mãe do outro, tá ligado? O outro lado, esses caras aí, não tem escrúpulo. Nós temos limites, então perdemos. Temos de mudar o terreno e os ares desse conflito se quisermos ganhar.” Mas isso não quer dizer que ele vai engolir qualquer coisa. Em 6 de abril passado, o rapper disparou no Twitter: “A metade da população passando fome… e também não é responsabilidade do capitão cloroquina. Qq merda faz lá então? Tá na presidência pra comprar mansão pra família.”
O retorno de Marcelo D2 às redes sociais não foi motivado apenas por sua vontade de se manifestar contra um governo que ele chama de “fascista, homofóbico, racista, representante do pior que tem na humanidade”. O outro objetivo foi divulgar seu sétimo álbum, Amar É para os Fortes, lançado em agosto de 2018, junto com um curta-metragem homônimo, a primeira aventura do músico na direção de um filme.
As músicas do disco e o curta contam a história de Sinistro – interpretado pelo filho mais velho de Marcelo D2, o rapper Stephan Peixoto, de 29 anos –, um jovem envolvido com bandidos de uma comunidade carioca que vai trabalhar em uma galeria de arte, onde se apaixona pela francesa Chloë. A história lembra a de Marcelo D2 e Luiza. Ela trabalhou em galerias de arte e planeja abrir com o marido um espaço de residência artística no Rio de Janeiro.
Tanto o trabalho musical quanto o cinematográfico foram elogiados pela crítica. Na Folha de S.Paulo, o jornalista Thales de Menezes deu cinco estrelas (cotação máxima) a Amar É para os Fortes, que ele chamou de “álbum visual”: “D2 apresenta o discurso mais sofisticado e concatenado do hip-hop nacional. Sabe ser incisivo sem truculência, mostra autoestima sem arrogância, bate pesado sem desrespeitar.”
A aventura cinematográfica também chamou a atenção da plataforma de streaming Amazon Prime, que resolveu financiar a minissérie Amar É para os Fortes, com roteiro de Antonia Pellegrino e Camila Agustini, que deve estrear em 2022. Por contrato, Marcelo D2 não pode revelar muita coisa sobre o projeto. Mas antecipou à piauí que ele mesmo fará a direção e os oito episódios partem de histórias de mães que vivem nas favelas cariocas.
O contrato para a minissérie não é o único dele com a Amazon. No início da pandemia, o rapper estreou um canal de streaming na plataforma Twitch, da mesma empresa. Lançado em 2011, o Twitch ganhou fama com a transmissão ao vivo de partidas de videogames e dos chamados esportes eletrônicos (ou eSports). Em 2014, foi vendido para a Amazon e ampliou sua influência por diferentes áreas, transmitindo vídeos ao vivo. A categoria “música” é o segundo principal mercado, depois do de videogames.
A história de Marcelo D2 com o Twitch começou logo no início da pandemia, em abril de 2020, quando precisou interromper a atividade artística. Um dia, o rapper sentiu uma profunda apatia. Foi tomado por pensamentos sombrios sobre o futuro. “Agora fodeu, meu irmão”, ele disse para si mesmo. “Se eu estou me sentindo assim, mesmo com uma carreira de décadas, imagina os artistas iniciantes. Muitos vão desistir.” Ele achou que estava entrando “em um lugar estranho, do qual não sabia se iria conseguir sair”. Luiza o acolheu e o consolou.
O ânimo do rapper mudou quando ele recebeu uma ligação de Zé Gonzales, o DJ Zegon, que também começou a carreira no Planet Hemp. “Cara, é um trabalho, fixo. Os caras estão fazendo um time de músicos pra testar uns quatro meses”, disse Gonzales, apresentando a proposta do Twitch.
“O que é esse Twitch”, perguntou Marcelo D2 para o filho Luca – do seu segundo casamento. “É o futuro!”, respondeu o rapaz de 18 anos que mora com o pai e Luiza. No fim de maio, o rapper começou a transmitir vídeos ao vivo: partidas de videogame – sempre de futebol –, conversas sobre música, ensaios musicais. A live mais popular até agora é a “Almoço dos cria”, aos sábados. Nela, Marcelo D2 e a família conversam com o público e ouvem música, enquanto preparam a refeição do dia. “Cria” é o apelido que ele deu aos fãs.
O contrato inicial com o Twitch foi para a transmissão de um mínimo de 24 horas de vídeos ao vivo por mês. Depois dos quatro meses de teste, o acordo foi ampliado para 60 horas mensais. O músico não revela o cachê, mas afirma que a remuneração “garante todas as contas do mês”.
A reportagem da piauí acompanhou duas gravações de Marcelo D2 para o Twitch. A transmissão ao vivo pode durar de quatro a seis horas, mas algumas ultrapassam as nove horas. Em 27 de novembro do ano passado, sexta-feira, a live durou aproximadamente duas horas e atraiu cerca de 24 mil espectadores. Participaram dois convidados: o produtor musical Nave Beatz e o compositor e diretor Kiko Dinucci.
“Procuro nos meus parceiros o que sinto falta em mim”, disse Marcelo D2, ao explicar a escolha. Ele contou à piauí sobre seu disco em produção, Assim Tocam Meus Tambores – Volume 2: “A ideia do próximo álbum veio quando eu estava comendo rabada em casa. Por que gosto tanto de rabada? Tem a ver com minha ancestralidade. Aí me levou para a história da minha família. Minha avó veio do Maranhão. Meus ancestrais me trouxeram a comida, o samba, o boteco, o terreiro, o quintal, a simbologia ‘da esquina da rua’, tá ligado? Como tudo isso que veio antes afeta tudo que sai de nós hoje, né, mano? Daí o disco ser sobre ancestralidade.”
No dia seguinte, 28 de novembro, ele transmitiu o “Almoço dos cria” durante cerca de quatro horas para 49 127 espectadores. Por volta de uma da tarde, faltando trinta minutos para começar a transmissão, 1,2 mil pessoas já a aguardavam no site do Twitch. Normalmente, Luiza acompanha todas as gravações, mas naquele dia teve de resolver um problema no Detran. Era a primeira vez que o rapper preparava o prato que serviria naquele almoço: polenta cremosa. Enquanto ele fazia a refeição, Luca acompanhava as manifestações do público no chat.
A experiência do Twitch culinário está agradando tanto Marcelo D2 que ele pensa em transmitir também os cafés da manhã da família, aos domingos. “O quadro pode chamar wake-and-bake”, sugeriu. A expressão em inglês tem duplo significado: refere-se tanto a quem acorda e coloca algo, como um pão ou um bolo, para assar no forno, como a alguém que usa maconha logo ao despertar de manhã. “Os números de público do Twitch são menores do que os de meus vídeos no YouTube, onde os clipes têm milhões de views. Mas no Twitch a comunidade interage, participa, é próxima. Aí que uma live com 2 mil será melhor do que 200 mil cliques no YouTube”, disse o músico, que até 26 de julho tinha mais de 90 mil seguidores na plataforma da Amazon. As transmissões são gratuitas, mas para assistir a alguns vídeos e ter acesso a áreas restritas, como o chat, é preciso fazer uma assinatura, que custa 7,90 reais mensais.
O álbum Amar É para os Fortes foi lançado após cinco anos de silêncio. Em 2013, quando finalizou seu sexto disco solo, Nada Pode Me Parar, Marcelo D2 pensou em largar a carreira artística. “Eu não precisava mais pensar em dinheiro”, disse. “Cogitei até abrir uma floricultura na Califórnia.” Em 2018, uma amiga da família foi assassinada durante um assalto. Ela era dona de um restaurante no bairro da Gávea, onde parentes e amigos se encontraram depois para se consolar mutuamente. Foi lá que ele ouviu um dos parentes dizer: “Amar é para os fortes.”
O rapper começou a refletir sobre a frase, e as ideias fertilizaram as músicas do álbum, lançado no mesmo ano. “O sentimento de vingança é o que vem no primeiro momento: ‘Vamo lá matar o bandido.’ Tipo de coisa que de nada adianta. Fui tomado por esse sentimento. Viver numa cidade como o Rio dá vontade de matar alguém, esganar, a toda hora. Então, para ter empatia pelos outros, mano, tem de ser muito forte. Entender o outro, os motivos da desigualdade social, do que leva a essa violência toda.”
Em julho do ano passado, ele convidou colegas artistas e fãs para colaborarem na produção do oitavo disco solo, Assim Tocam Meus Tambores, que ele planejou como o primeiro de uma trilogia. “Se este é sobre o tempo do agora, o segundo será sobre o passado e, o terceiro, sobre o futuro”, explicou. O álbum foi lançado em setembro, em plataformas de streaming, como Spotify e YouTube. Também foram feitas 5 mil cópias em vinil, pensando principalmente em colecionadores e DJs. Só no YouTube – onde os vídeos do canal do músico já foram vistos 160 milhões de vezes –, os clipes das músicas de Assim Tocam Meus Tambores somam mais de 3,2 milhões de views.
Bem-vindo Meus Cria, a faixa de abertura de Assim Tocam Meus Tambores, mostra a atual fase mais amena do rapper: Não tá mole pra ninguém/Mas o certo é o certo/Ninguém solta a mão de ninguém. Mas a defesa da legalização da maconha continua presente. A terceira das doze canções do disco, 4ª as 20h, começa com um áudio extraído do julgamento de Gilberto Gil, em 1976, durante a ditadura militar, quando ele foi pego com um baseado e acabou preso: Declarou que, entre aspas,/gostava da maconha/e que seu uso não lhe fazia mal,/nem lhe levava a fazer o mal. Já na voz de Marcelo D2, o refrão diz: Pra ficar macio, relaxadinho/Suave bem/E a mente navega bem.
Assim como os convidados do rapper, os assinantes do canal do Twitch puderam participar do processo de construção do disco. “Foi tudo feito com contribuições das ideias vindas do chat”, contou. Entre os parceiros, estão os cantores Russo Passapusso e Don L. Quando o público percebeu que não havia cantoras no álbum, Marcelo D2 pediu sugestões – e chegou até Juçara Marçal e Anelis Assumpção. Os fãs também o convenceram a trocar o áudio da contagem em inglês da decolagem de um foguete da Nasa, nos anos 1960, por um em português, feito pela tevê brasileira na época. E ainda lhe pediram uma parceria com Criolo. O músico ligou para o colega e fez o convite, que resultou na faixa Tambor, o Senhor da Alegria. Em As Sementes, os próprios fãs cantaram trechos, com gravações enviadas por meio do chat do Twitch. A letra diz: Não jogue fora as sementes/Guarde pra mim por favor/Vou transformar as sementes/Numa semente de amor.
Marcelo D2 confidenciou que sempre foi solitário. “Engraçado eu me abrir para tantas parcerias, para ouvir o público, bem no momento de maior isolamento da minha vida”, disse. “Vou filosofar dentro dessa loucura: a gente fala pelo vídeo, só que estamos dentro de nossas casas, assim podemos nos sentir mais seguros. É nosso lar, um ambiente confortável. Isso mudou as relações de trabalho. Ficou mais fácil criar algo tão cooperativo quanto meu último disco.”
Os videoclipes das músicas de Assim Tocam Meus Tambores foram reunidos em um filme de 38 minutos, disponível no YouTube, onde já foi visto mais de 1,1 milhão de vezes. Como tudo foi produzido durante a pandemia, as gravações ocorreram no apartamento no Leblon, protagonizadas por Marcelo D2 e por Luiza, que canta ao lado dele. O rapper gostou tanto da experiência colaborativa que resolveu repeti-la no novo álbum, Assim Tocam Meus Tambores – Volume 2, a ser lançado no mês que vem.
Com 14 anos, Marcelo D2 andava armado e roubava carros no bairro do Andaraí, na região Norte do Rio de Janeiro, onde vivia. “Eu era o gangsterzinho da área. Saía de casa com chinelos e voltava de tênis novo e mochila”, ele contou. Quando dois de seus amigos, também adolescentes, foram assassinados, a mãe, que era costureira, e prevendo o rumo que a vida do filho poderia tomar, praticamente o expulsou de casa. Resolveu mandá-lo para morar com o pai, que talvez pudesse dar um jeito no rapaz. O pai era empregado de uma fábrica no bairro do Catete e impôs como condição para receber o filho que ele arrumasse um emprego. Como não tinha nenhum, Marcelo D2 teve que viver alguns dias na rua, até conseguir uma vaga de ajudante de lustrador numa loja de móveis.
Ele já havia sido promovido a gerente da loja quando nasceu o seu primeiro filho, Stephan, do casamento com a fotógrafa Sonia Affini de Moraes. Mas decidiu abandonar o emprego para investir em uma barraca de camelô no Largo do Machado. Em 1992, conheceu Luís Antônio da Silva Machado, o Skunk. “Eu estava com uma camiseta com estampa do Dead Kennedys, a banda punk americana. Ele me parou e disse: ‘Porra, gosta de Dead Kennedys?’” Os dois se tornaram amigos. Foi nessa época que surgiu seu apelido D2, talvez porque ele usasse uma corrente no pescoço com o número 2, talvez porque fizesse referência a “dar dois pegas no baseado e passar adiante, sem ser fominha”.
Marcelo D2 era ligado na cultura hip-hop, praticava skate e era grafiteiro. Também tinha o hábito de escrever poesias e frequentava shows no Circo Voador e espetáculos de balé e ópera no Theatro Municipal. Por influência de Skunk, passou a se interessar mais por grupos norte-americanos de rap, como Public Enemy e Beastie Boys, e pelo punk rock.
Em 1993, os dois amigos criaram o Planet Hemp. Como nenhum deles tocava instrumentos musicais, resolveram enveredar pelo rap. Skunk segurava no vocal e fazia samples, mistura de sons feita num equipamento eletrônico e batida de base desse estilo musical. Em suas primeiras experiências, mesclou falas de Cid Moreira – à época apresentador do Jornal Nacional – com trechos de músicas.
No início, Skunk queria que as letras da banda fossem em inglês. Marcelo D2, apaixonado por samba e maracatu, insistiu no português. Logo se juntaram à dupla os músicos Joel de Oliveira Júnior, o Formigão (no baixo), Rafael Crespo (guitarra) e Wagner José Duarte Ferreira, o Bacalhau (bateria). Eles ensaiavam as apresentações de raps, cheias de gesticulações e expressões faciais, em frente a um espelho de corpo inteiro da quitinete do pai de Marcelo D2.
“Ficamos dois anos grudados. O Skunk revolucionou minha vida como um furacão. Quebrou vários preconceitos meus”, disse. “Ele era um neguinho que pegava travesti, boyzinho gay, maloqueiro na rua. E eu amava esse cara, meu irmão, era meu melhor amigo. Abriu minha cabeça.” A relação dos dois foi contada no filme Legalize Já – A Amizade Nunca Morre (2018), dirigido por Johnny Araújo e Gustavo Bonafé, em que Marcelo D2 é interpretado por Renato Góes e Skunk, por Ícaro Silva. Quando Skunk morreu em 1994, vítima da Aids, o rapper e guitarrista Bernardo Santos, o BNegão, o substituiu na banda. Um ano depois, o Planet Hemp lançou o primeiro álbum, Usuário. Um gigantesco sucesso.
Foi no lavabo de seu apartamento no Leblon que Marcelo D2 pendurou o disco de ouro recebido pelas mais de 100 mil cópias vendidas do álbum de estreia, assim como o de platina por Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para, o segundo disco, de 1997, que ultrapassou as 500 mil unidades. No espelho acima da pia afixou o convite, escrito à mão, com caneta: “Pegue um prêmio na janela e ensaie seu discurso.”
As apresentações da banda pelo Brasil tinham um componente de aventura. Era comum os organizadores dos shows cancelarem tudo sem aviso prévio, por medo de ocorrer uma batida policial. Em 1996, Marcelo D2 e BNegão só não foram presos em Salvador durante uma apresentação porque saíram às pressas, escondidos num carro – Marcelo D2 dentro do porta-malas, BNegão agachado no banco de trás. No ano seguinte, em Belo Horizonte, os músicos da banda passaram uma noite inteira dentro de uma delegacia. Em Brasília, depois de se apresentarem num festival, acabaram detidos e ficaram cinco dias na cadeia. O motivo do assédio policial era sempre o mesmo: fazer apologia do uso de maconha.
Conflitos entre os integrantes do Planet Hemp, principalmente as disputas de Marcelo D2 e BNegão, levaram ao fim da banda em 2003, três anos depois do terceiro álbum feito em estúdio, A Invasão do Sagaz Homem Fumaça. Os dois ficaram dez anos sem se falar.
Marcelo D2 começou sua carreira solo quando ainda atuava no Planet Hemp. Seu primeiro álbum, Eu Tiro É Onda, de 1998, superou as 150 mil cópias, mas ele acredita que foi com À Procura da Batida Perfeita, de 2003, que firmou sua identidade. “Passei a ser conhecido, aqui e no exterior, como aquele cara que mistura rap com samba. Bem carioca, bem brasileiro”, ele disse, sobre o disco que vendeu mais de 250 mil unidades. “Eu era um moleque suburbano do Rio, pobre, marginal. Comecei a fazer rap, ficar famoso, a autoestima foi lá para cima. Chego em Paris, em Berlim, todo mundo me recebe gritando, balançando as mãos pro alto.”
O dinheiro e a influência lhe permitiram algumas excentricidades. Em 2013, quando Luca, então com 10 anos, acordou com vontade de assistir à partida de futebol entre Milan e Barcelona, que aconteceria em Milão, Marcelo D2 comprou as primeiras passagens que encontrou para a Europa. No dia seguinte, pai e filho embarcaram no Rio de Janeiro. Na hora do jogo, estavam sentados no belo estádio de San Siro.
Durante a quarentena, outro plano ocupou a mente de Marcelo D2: investir em uma marca de produtos relacionados à cultura da maconha. “Quero colocar dinheiro no mercado da Cannabis conforme ele for legalizado. Hoje você vai a tabacarias e tem o dichavador, a seda, o bong, tudo para usar com a erva, mas o lugar não vende maconha. Baita hipocrisia”, disse o rapper. “A onda de legalização, que já pegou Europa, Estados Unidos, Canadá, Uruguai, México, vai chegar algum dia por aqui. O Brasil é a vanguarda do atraso.”
Ele acha coerente ganhar dinheiro com a venda da droga, se liberada, por ter carregado o estigma público de maconheiro desde a década de 1990. “Se em algum momento liberar a medicinal, começo a vender no dia seguinte. O Planet Hemp e eu somos marcas já associadas demais à cultura nacional da maconha. Quando eu falo ‘aquele maconheiro ainda’ [na música Bem-vindo meus cria] é porque para os ‘reaça’ sou ‘aquele maconheiro’. Mas também porque ainda sou aquele maconheiro que acredita nos mesmos valores que acreditava em 1993, quando comecei o Planet Hemp, tá ligado?”
Para Marcelo D2, as letras do Planet Hemp chamaram atenção para “o que se passa nas ruas, na vida suburbana, do favelado”. E ajudaram a transformar a visão da maconha pela sociedade. “Não faz mal como álcool ou cigarro, não torna a pessoa ruim para quem está ao redor, não existe motivo racional para impedir o uso adulto e consciente. Além disso, as propriedades medicinais são incríveis.”
Ele já usou a versão terapêutica como analgésico contra dores que sentia no braço, e sua mãe recorreu ao óleo à base de Cannabis para tratamento de lúpus e fibromialgia. “Quando há 25 anos a gente assumiu que é maconheiro foi para chamar atenção para essa nossa luta. Desde o início quisemos mostrar como a suposta guerra contra as drogas sempre foi usada como desculpa para perseguir o neguinho pobre e sua cultura. Por isso o samba já foi proibido no país, no início do século passado, assim como tentam perseguir a maconha e o funk do morro.”
Neste momento, porém, ele resolveu adiar o plano de investir no mercado da cultura canábica. “A gente caiu num lugar fascista pra caralho, meu irmão. Com esse governo aí… É desesperador. Enquanto Bolsonaro não sair, isso não muda, é momento de estar ativo, combatendo. Uma resistência principalmente às ideias que ele propaga. Legalizar é pouquíssimo provável antes de trocarmos de presidente.”
Na visão de Marcelo D2, parte da polícia e os políticos de extrema direita se apoiam no discurso do medo contra inimigos imaginários. “Eles falam assim: ‘Esse aí é comunista! Esse aí é favelado! Esse aí é maconheiro!’”, diz o músico, imitando uma pessoa com cara de nojo de comunista, favelado e maconheiro. “É mais um jeito de reprimir a cultura do favelado pobre.”
Mas a desistência do negócio não foi só por razões políticas. Mesmo porque a estratégia seria começar vendendo objetos inspirados pela cultura dos consumidores de Cannabis, como camisetas, seda para fazer o cigarro e instrumentos para fumar, o que já é permitido. Foi a pandemia que travou os planos. “Por que abrir uma loja sobre Cannabis se ninguém vai poder visitá-la?”, perguntou o músico. Ele não sabe “bolar”, ou seja, preparar um cigarro de maconha. Então, quando quer fumar, recorre à ajuda da mulher. Luiza é sócia do marido na produtora Pupila Dilatada. Participa da criação dos discos, clipes e outros produtos, além de apoiá-lo nas várias frentes de trabalho, organizando sua agenda. Também canta em algumas músicas.
Outra mudança que o casamento e a pandemia trouxeram para Marcelo D2 foi em relação à boemia. “Eu tinha uma vida desregrada, a Luiza também. Agora a gente quer construir um lar, não só um teto. Não bebo desde o Carnaval de 2019. Parei de cheirar, agora consegui de vez. Só nunca deixei de fumar maconha todo dia.” O músico afirma que jamais passou por internações. Mas relata ter visto “inúmeros amigos com graves problemas”. Para ele, o ponto central é que as drogas deveriam ser “problema de saúde pública, não de polícia”.
Desde que começou a morar com Luiza, em 2019, o rapper passou a dormir cada vez mais cedo e, agora, acorda por volta das seis da manhã. É uma mudança e tanto para quem tinha o hábito de se levantar no início da tarde. Quando está animado, ele vai, bem cedo, mergulhar no mar do Leblon. “Antes das sete da manhã, quando a praia ainda está bem vazia.”
Com planos de treinar boxe, Marcelo D2 pendurou um saco de pancadas no teto do quarto que serve tanto de dormitório do filho Luca (que dorme em um colchão no chão), quanto de estúdio para a gravação de lives. Mas, por enquanto, o saco só tem servido de decoração, pois o músico não se animou a golpeá-lo regularmente. O que ele faz todo dia é ler as notícias na imprensa, antes de acessar o Twitter, onde, afirma, “sempre tem alguma merda acontecendo”.
Vem da infância o hábito de ler jornal pela manhã. “Minha família não tinha dinheiro, mas, mesmo assim, meu pai nunca deixou de assinar o Jornal do Brasil”, disse. Há alguns anos ele abandonou a versão impressa e passou a ler os sites. Costuma checar tanto a imprensa tradicional quanto os “alternativos”, como ele diz.
Após fazer alguns posts no Twitter, Marcelo D2 toma o café da manhã com a mulher – mas ele prefere chá. Os dois conversam sobre as notícias, e Luiza o coloca a par dos compromissos do dia. Por volta das nove horas, o músico costuma buscar alguma “ponta” da noite anterior para dar “um dois”. Tradução: procura pela guimba de um cigarro de maconha.
As noites são reservadas para relaxar. Ele assiste séries de tevê e filmes ao lado de Luiza, e também disputa com Luca partidas de futebol no PlayStation. O aparelho passa boa parte do dia ligado na sala de estar e é uma das ferramentas de trabalho do rapper, pois ele transmite seus jogos com o filho em lives no Twitch.
Mas sua rotina é variada. Numa sexta-feira de manhã, por exemplo, fez uma reunião via Zoom com um patrocinador e deu uma entrevista para o programa Papo de Segunda, do GNT. Pouco antes do almoço, foi fotografado pela revista IstoÉ. Depois, gravou a live para o Twitch, o que lhe tomou o restante da tarde. Nesse dia, a transmissão trouxe conversas com colegas músicos e fãs a respeito de ideias para seu próximo álbum. O rapper e sua mulher foram dormir tarde, por volta das quatro da manhã, pois naquela noite descobriram a minissérie O Gambito da Rainha e avançaram pela madrugada adentro até assistir a todos os sete episódios.
Apesar da noitada televisiva, no dia seguinte Marcelo D2 levantou-se às oito da manhã. Era sábado e, pela manhã, permaneceu de shorts e sem camisa, calçando chinelos estilo Rider, enquanto assistia com Luca a um jogo de futebol do campeonato inglês. Ao meio-dia, preparou-se para apresentar o “Almoço dos Cria”. Vestiu uma camiseta, shorts largos, chinelo e não esqueceu de colocar uma corrente de ouro no pescoço.
Mesmo com várias atividades, virtuais ou não, que arrumou para fazer durante a pandemia, o rapper descreveu seu cotidiano na quarentena como “um tédio”. “Vou da sala para a cozinha, da cozinha para a sala, da sala para o banheiro, do banheiro para o quarto. Monótono, meu irmão. Eu estou é com saudade de Nova York. Ou de ir para a praia sem medo. Ou da pelada com cerveja com os brothers.”
Marcelo D2 se considera um privilegiado, porque a pandemia não o afetou financeiramente como a inúmeras pessoas do mundo da cultura, da música e do espetáculo. “Estou no topo da cadeia da indústria do entretenimento. O pessoal de backstage está sofrendo”, afirmou. “Tem profissionais que trabalham em meus shows sem dinheiro para pagar 400 reais de aluguel. Pedem para adiantar 50 reais para ajudar nas contas do mês.” Para ele, “a responsabilidade com todo esse pessoal” é uma das motivações para continuar trabalhando sem parar.
A principal motivação, entretanto, é sua família. O músico disse que o nascimento próximo de Maria Isabel, sua filha com Luiza, encheu sua vida de esperança. Outro motivo de entusiasmo foi o nascimento, no ano passado, de Kalki, seu segundo neto, filho de Lourdes, de 20 anos – filha do seu segundo casamento. Ele também fala com satisfação do filho mais velho, Stephan, que prospera na carreira de rapper, com dois discos lançados e um terceiro em gravação.
Marcelo D2 disse que sempre tenta explicar aos filhos como eles são privilegiados e, por esse motivo, “devem mais para o mundo”. Luca, que tem hoje 18 anos, confirmou: “Quando ele está irritado, nunca é violento. O que faz é jogar na nossa cara os privilégios que temos e como não devemos reclamar.” O rapaz fez uma pausa e completou: “E meu pai está certo nisso.”
Mas não é fácil ser filho de um compositor de músicas polêmicas, com versos que passaram a estampar as bandeiras de ativistas. “Há dois anos, meu professor de redação soltou, no meio da aula: ‘Não vão ser igual ao Marcelo D2, vagabundo que não trabalha’”, contou Luca. “O professor não sabia que o filho do D2 era aluno dele.” O garoto imediatamente se retirou da sala do colégio particular na Zona Sul do Rio. O professor tomou uma advertência da diretoria e pediu desculpas. “Esse tipo de impressão ignorante que alguns têm do meu pai é fruto de puro preconceito. E olha que eu estudo em uma escola que se diz progressista.”
O músico está acostumado com situações parecidas. “Quando alguém quer me diminuir, me chamar de malandro, diz que sou negro. Se é o contrário, vai me elogiar, falar de meu sucesso, aí costuma falar que sou branco.” Ele disse que, quando faz sinal para um táxi, muitos motoristas aceleram o carro e não param. “Pensam que sou maloqueiro. Quando notam que é o D2, aí param na hora.” Filho de pai negro e mãe branca, o rapper se define como um “neguinho suburbano”.
Ele recordou de um diálogo que teve com Skunk em 1993, um ano antes da morte de seu parceiro musical: “Ele era negro puro e me questionou se eu era negro. Cheguei a pensar: ‘Não.’ Ele logo disse: ‘Tu é negro, sim. Você pode achar que não te veem como negro. Mas é como eles te veem. Pelo seu cabelo. Pela sua origem.”
Marcelo D2 acredita que nos tempos de sua juventude era ainda pior. Seguranças o impediam de entrar no supermercado, mulheres protegiam suas bolsas quando o viam e às vezes até mudavam de calçada. Ele acha que vozes “suburbanas, da periferia”, como a dele e a do Planet Hemp, ajudaram a diminuir o preconceito. “Hoje tem o Emicida no Theatro Municipal de São Paulo, com rap, samba e negritude, e o documentário AmarElo – É Tudo pra Ontem entre os mais vistos da Netflix.” O documentário mostra os bastidores do show de Emicida no teatro paulista.
Entre a primeira conversa com a piauí, em novembro, e as últimas trocas de mensagem, em julho, Marcelo D2 parece ter reencontrado a esperança também com relação ao Brasil. “Há ares novos. Vai acabar a onda fascista. O Biden venceu nos Estados Unidos. Trump, um safado, mentiroso, sexista, machista, abusador, racista, foi varrido”, comentou. “Bolsonaro é uma imitação piorada de Trump. Pode até ser que seja o último desses caras a cair. Mas vai ser varrido.”
Ele disse ter se empolgado com o primeiro discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após a anulação de suas condenações pela Lava Jato, em 10 de março passado. “A fala do Lula foi emocionante por podermos finalmente ver um líder com real status de presidente nos falando: ‘Sinto muito pelo que está acontecendo com o país.’” Marcelo D2 chegou a citar de cabeça alguns trechos do discurso. “Quando votamos em Lula é pela vontade de diminuir a desigualdade social, pelo sentimento de progredirmos juntos. Utópico? Pode ser. Só que o voto, as conquistas, prometem um objetivo lindo e o procuram”, afirmou. “Agora, quem vota em Bolsonaro quer o quê? Matar e queimar?”
O músico contou que, no dia seguinte ao pronunciamento de Lula, acordou animado. “Resolvi até me vestir bem, mesmo que fosse pra ficar em casa. Voltei a olhar nos olhos de meus filhos com a confiança de que podemos ter um presente e um futuro melhores no Brasil.” Ele acha que o PT “acertou, mas também errou muito no passado”, mas tem confiança de que “o Lula agora vai querer fazer tudo certo para limpar a imagem”. Para o rapper, na eleição presidencial de 2022, o mais importante será impedir a reeleição de Bolsonaro. “Ele tem que sair direto para a prisão, pelos tantos crimes que comete contra os brasileiros. Dá desejo que ocorra coisas bem piores com ele. Mas se for para a cadeia, fico feliz.”
E se esses novos ares não chegarem ao Brasil, como ele gostaria? Se 2022 repetir 2018? “Se isso acontecer, qualquer pessoa sã da cabeça, vivendo no Brasil neste momento, tem ao menos a vontade de ir morar em outro lugar.” Se Bolsonaro vencer, ele disse que faz as malas – e se muda para os Estados Unidos.
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