CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
O rei do gozo
A gloriosa aposentadoria do touro Sherlock
Christian Carvalho Cruz | Edição 194, Novembro 2022
Não fosse um detalhe, coisinha besta de nada nesses tempos em que produtividade virou felicidade, o touro Sherlock estaria com a vida mansa. Célebre por sua excelsa contribuição à pecuária brasileira, morando sozinho num cercado com árvores sombrosas, pasto fresco, ração e água, o que mais poderia desejar um touro em Uberaba, Minas Gerais? Bem, talvez uma companheira com quem pudesse acasalar. Isso seria uma experiência inédita para Sherlock: esse guerreiro da inseminação artificial se despediu do batente sem ter concluído uma só cópula efetiva.
Por nove anos, o incansável Sherlock trabalhou numa central de coleta e venda de esperma bovino. Forneceu 542 mil doses de sêmen que geraram cerca de de 340 mil crias, hoje espalhadas por mil rebanhos de Norte a Sul do Brasil e em países como Paraguai, Bolívia e Colômbia. O proprietário do bicho, Luciano Borges, há quarenta anos no ramo de melhoramento genético de gado Nelore, desconhece outro touro que tenha permanecido tanto tempo “produzindo”. A média é de seis anos de serviço.
Nascido em 2012 no Rancho da Matinha, em Uberaba, ele mal completara 2 anos quando Borges o mandou para a central da ABS, multinacional anglo-americana situada na cidade vizinha de Delta. Ali, Sherlock começou a pegar no batente: três vezes por semana, era conduzido à área de coleta, onde uma vaca o aguardava. Depois de ter seu prepúcio higienizado por um funcionário, ele se insinuava em preliminares meio bruscas, com fungadas, cabeçadas e lambidas. Chegava a montar seu corpanzil de 1 tonelada sobre a vaca – mas, quando estava a centímetros da glória, o funcionário desviava seu pênis para dentro de um tubo de plástico revestido de látex macio, aquecido a 37ºC, e com um coletor no fundo. Era nessa imitação sem graça das partes íntimas de uma fêmea que Sherlock depositava até a última gota da sua sina.
Um touro Nelore no auge costuma produzir de trezentas a quinhentas doses de sêmen por dia. Sherlock produzia novecentas, às vezes mil, chegando a 1,5 mil em manhãs inspiradas. Cada ejaculação dá de 5 a 8 ml. Esse volume é distribuído em doses únicas de 0,25 ml, que são congeladas dentro de tubinhos plásticos e armazenadas em nitrogênio líquido a -196°C.
Uma dose de sêmen bovino faz uma inseminação e é vendida por cerca de 50 reais. Estima-se que os esforços de Sherlock tenham rendido mais de 20 milhões de reais em nove anos de labor – sem contar as 8 mil doses que ele deixou no freezer ao tirar o time de campo, em junho. Na praxe do setor, os proprietários que levam seus touros para produzir em centrais de esperma recebem royalties de 20% a 30%.
Quantidade não é tudo para um bovino de alta performance. Sherlock excedia-se também na qualidade genética. “A principal característica dele era gerar, de maneira muito padronizada, descendentes com altíssima eficiência alimentar”, diz o zootecnista Arthur Vieira, que trabalha na central da ABS. “Isso quer dizer que os filhos do Sherlock ganham mais peso comendo menos.” É o Santo Graal dos frigoríficos, o Eldorado da picanha maturada. Ou, como define Vieira, Sherlock foi “uma Ferrari que rodava 20 km com um litro de gasolina”.
Ele foi também um operário saudável e manso, o que significa menos gastos com veterinários e remédios, menos brigas com outros machos e menos peões para cuidar do bicho. “Acompanhei toda a carreira do Sherlock e nunca o vi agressivo ou doente um dia sequer”, recorda Vieira.
Até que chegou o momento em que o touro foi chamado ao RH e saiu da firma. Segundo Vieira, é natural que as qualidades genéticas de touros produtores de sêmen declinem conforme a idade avança. Sherlock aguentou três anos além da média. Deixou uma leva de reprodutores tão ou mais produtivos do que ele foi: há pelo menos setenta filhos, netos e bisnetos de Sherlock batendo cartão em centrais de esperma atualmente.
“Um ser vivo transformado em máquina de imprimir dinheiro. É a objetificação da vida em prol do acúmulo de capital”, critica o professor Francisco Garcia Figueiredo, coordenador do Núcleo de Justiça Animal na Universidade Federal da Paraíba. “Será que essa era a vontade do touro?”, pergunta. Em 2018, a Assembleia Legislativa paraibana transformou em lei um projeto concebido por Figueiredo e apresentado pelo deputado Hervázio Bezerra (PSB-PB): o Código de Direito e Bem-Estar Animal, que, entre outras coisas, proibia a inseminação artificial de bichos no estado. Desde então, mais da metade do código foi questionada judicialmente. Em 2019, acolhendo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Associação Brasileira de Inseminação Artificial, o Supremo Tribunal Federal suspendeu o dispositivo da lei que vetava o procedimento.
A lei paraibana inspirou-se na Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, de 2012. Redigido por um grupo de 26 doutores capitaneado pelo neurocientista canadense Philip Low, esse documento afirma que mamíferos, aves, anfíbios e até alguns moluscos, como o polvo, possuem estruturas nervosas que produzem consciência. “Isso significa que eles sofrem”, disse Low ao apresentar a declaração. Segundo o neurocientista, existem diferentes tipos de consciência, mas o modo como seres humanos e demais mamíferos sentem dor e prazer é muito semelhante.
É com base nesses princípios que Figueiredo considera Sherlock “um animal escravizado que não pôde exteriorizar sua libido livremente”. Ao menos agora, seria justo que ele tivesse a oportunidade de romper seu celibato involuntário. Do Rancho da Matinha, casa de Sherlock, a veterinária Rafaela Kava Schuchamn pede calma. Sexo, diz ela, não é o objetivo principal dos bovinos, que “passam 70% do tempo se alimentando e ruminando”. Mas ter a companhia permanente de uma fêmea em seu piquete sombreado não está fora de cogitação. Ajudaria, diz Kava, a evitar o estresse. A veterinária calcula que Sherlock terá de cinco a oito anos de vida pela frente. Quando ele vier a faltar, será o primeiro touro do Rancho da Matinha a ganhar um mausoléu na propriedade. No que vai escrito na lápide, ninguém ainda pensou. Deixo, pois, uma sugestão ordinária: “Esse gozou.”