Para o painel da fachada, a Sociedade de Cultura Artística promoveu um concurso entre Di Cavalcanti, Burle Marx e Jacob Ruchti. Venceu o figurativismo de Di Cavalcanti FOTO: BANCO DE IMAGENS DIGITAIS_ PROJETO PILOTO RINO LEVI_FAU / CEATEC / PUC CAMPINAS
O rescaldo
Em São Paulo, o novo Teatro Cultura Artística mobiliza políticos, empresários e arquitetos e seu projeto é aprovado e tombado a toque de caixa
Fernando Serapião | Edição 33, Junho 2009
O sargento Fernando Procópio trabalha há 25 anos no Corpo de Bombeiros de São Paulo. A jornada é de 24 horas, com descanso de 48. Sua base é o quartel da rua da Consolação, próximo ao centro. Com três andares, o prédio tem refeitório, área de treinamento e dormitórios. Na madrugada de 17 de agosto passado, um domingo, depois de atender ocorrências triviais, Procópio descansava no quarto do 2º andar, que tem meia dúzia de camas e televisão. Faltavam duas horas e 26 minutos para terminar seu turno quando, às 5h04, o plantonista soou o alarme. Havia um grande incêndio em um teatro na rua Nestor Pestana.
Um grupo de intelectuais da elite paulistana criou, em 1912, a SCA, Sociedade de Cultura Artística. A ata da fundação foi assinada na sede do jornal O Estado de S. Paulo, e até hoje o estatuto determina que o conselho da Sociedade deva ser presidido por um diretor do jornal. Inspirada em similares européias e, sobretudo, nos salões literários de Paris, a Sociedade surgiu para promover palestras sobre temas ligados à cultura, aos quais se seguiriam recitais de música clássica.
Os saraus – custeados por mensalidades e ingressos – no começo eram organizados em diversas casas de espetáculos, como o então novíssimo Teatro Municipal. Com o passar das décadas, as palestras foram abandonadas e a instituição passou a ser conhecida – e admirada – pela programação de música erudita, balé e ópera. Em boa medida, a Sociedade de Cultura Artística foi responsável pela formação cultural de um setor da burguesia paulista, que pretendia mimetizar hábitos europeus.
Desde os primeiros anos, a SCA cogitou construir uma sede. Em 1919, a diretoria comprou uma gleba de quase 5 mil metros quadrados, numa ruela que desembocava no começo da rua da Consolação. Sete anos depois, encomendou um projeto a Ricardo Severo, engenheiro português radicado em São Paulo. Uma escolha ideal: Severo fora um dos fundadores da Sociedade e era sócio do escritório Ramos de Azevedo, o mais ativo arquiteto da cidade na primeira metade do século passado. Ele desenhou um suntuoso teatro em estilo neocolonial (com platéia de 2 400 lugares), jardins, restaurante, galeria de exposição e biblioteca. Sem recursos, o plano ficou no papel. Quinze anos depois, nova encomenda, dessa vez ao escritório de Severo, que desenhou um edifício art déco (com 1 500 cadeiras). O projeto também não vingou.
Em 1940, Esther Mesquita, filha de Júlio Mesquita – o diretor do Estadão –, fez uma nova encomenda. Solteira, culta, fluente em cinco línguas e melômana, foi ela quem consolidou a SCA. O escolhido foi Rino Levi. Paulistano, ele estudara em Roma e se tornara conhecido por aclimatar o racionalismo modernista aos trópicos. A obra era um reflexo de sua personalidade séria e contida.
O Teatro Cultura Artística foi inaugurado em março de 1950, com concertos regidos por Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. O prédio mereceu registro nas principais revistas internacionais de arquitetura. Era o mais moderno teatro brasileiro, com dois auditórios sobrepostos – o menor, no térreo, e no primeiro piso, a sala maior, cuja acústica sempre foi admirada.
Em resposta ao terreno triangular, Levi criou uma massa em leque, posicionando o palco principal não na orla, mas na empunhadura do leque, localizada no fundo do terreno. A curvatura da última fileira da platéia da sala maior foi espelhada na imensa parte elevada da fachada principal. Essa parede curva, voltada para a rua, se transformou no principal elemento do projeto – ela refletia a platéia, relacionava-se com o desenho da rua e, principalmente, era suporte de um grande painel.
Com 48 metros de comprimento, por oito de altura, o painel veio a ocupar, como uma bandana, a testa do prédio. Não se trata apenas de uma obra de arte aplicada à parede, mas de um elemento constitutivo do projeto, tal qual um pilar ou uma abertura. Para escolher o artista, a Sociedade promoveu um pequeno concurso entre Di Cavalcanti, Burle Marx e Jacob Ruchti. A despeito da opinião de Levi, que preferia o abstracionismo de Burle Marx, a diretoria foi acadêmica e escolheu o figurativismo de Di Cavalcanti. Desenhada em papel, a obra repleta de figuras femininas foi executada em pequenas pastilhas de vidro. O painel reinaria absoluto sobre o bucólico casario da região.
Trinta e oito segundos depois do alarme o sargento Procópio e outros seis bombeiros estavam dentro do enorme caminhão AE 24. Acompanhado por um carro-resgate, o mamute sobre rodas precisou de três minutos para percorrer o quilômetro e meio de distância até o incêndio. A poucos metros do teatro, o sargento percebeu que a fumaça negra era abundante e pediu ajuda.
O entorno do Cultura Artística não é o mesmo de quando foi inaugurado. O fundo do teatro é sombreado por prédios residenciais com altura média de vinte andares. As duas construções laterais possuem arquitetura temática, inspiradas em torres medievais. Olhando-se o teatro da rua, o vizinho à esquerda é um pastiche de castelo escocês com tochas estilizadas na fachada. Funciona ali uma boate de strip-tease (com quartos para os mais aflitos), antigo cenário de enredos picantes do bas-fond paulistano, dirigidos pela proprietária, “tia Tânia”, que recebia os clientes ricos na porta, em anos mais prósperos. Hoje, o prédio está arrendado “para a máfia coreana”, como sussurram os moradores das adjacências. Na hora do incêndio, a casa noturna estava vazia: o expediente termina religiosamente às 4 horas e a turma da limpeza só chega pela manhã.
O vizinho à direita do teatro é a Catedral Evangélica de São Paulo. De linha presbiteriana e feições neogóticas, o templo é do início dos anos 50. Na hora do incêndio, só estavam na igreja o zelador e a mulher, que moram nos fundos, no 8º andar de um anexo colado ao teatro. Ao ser acordada pelo som das sirenes, a esposa do zelador abriu a janela e deu de cara com a desgraça: “Acorda que o fogo é aqui!”, gritou para o companheiro. Depois de oferecer ajuda aos bombeiros, o homem subiu no alto da torre da catedral para observar a cena. Temia a propagação das chamas em direção à casa do Senhor.
O zelador do teatro – primeira testemunha do sinistro – orientou Procópio: o melhor acesso ao fogo, que ardia na sala principal, era uma saída de emergência. A equipe se preparou para entrar no prédio em chamas. Dos seis bombeiros, cinco seguiram com o sargento em direção ao calor. Quando estavam quase entrando, ouviram um estrondo. Parecia uma explosão. Bateram em retirada. Se tivessem entrado, Procópio não contaria a história. “O barulho era o teto caindo”, relembrou.
Com o desabamento da estrutura de aço, o fogaréu iluminou o fim da madrugada. A estratégia dos bombeiros mudou. A água teria de ser lançada por cima. Foram mobilizados mais dois caminhões. A viatura de Procópio ficou no centro, ladeada pelos que vieram lhe dar reforço. As labaredas espichavam-se a mais de 20 metros de altura. Do alto da escada Magirus, na qual permaneceu por mais de 45 minutos, Procópio resfriou primeiro a sinuosa parede frontal, pois temia que ruísse sobre a rua. Sem ter consciência, o sargento preservou o painel de Di Cavalcanti, avaliado em 5 milhões de reais. De quebra, salvou arquivos e documentos que estavam em salas na frente do prédio.
O único diretor remunerado da Sociedade de Cultura Artística, e que trabalha em tempo integral, é o superintendente Gérald Perret. Suíço de nascimento, ele se mudou para o Brasil há 37 anos porque se apaixonara e casara com uma brasileira que conhecera na faculdade. Envolveu-se com a Sociedade por intermédio da mulher, bisneta de Olivia Guedes Penteado – mecenas dos modernistas paulistanos e uma das pioneiras na sustentação da instituição.
Gérald Perret seguiu o script e acompanhou a orquestra até o hotel Maksoud Plaza. Por mais devastadora que fosse a notícia, pensar no teatro desaparecido era assunto para mais tarde. Por ora, precisava resolver o problema do que fazer com a orquestra que acabara de chegar da Bélgica e que deveria tocar na segunda e na terça. Além disso, o Cultura Artística possuía uma programação carregada para as semanas seguintes. O que fazer? Àquela altura, Perret sequer tinha escritório ou computador. O fogo levara tudo. Sobrara apenas a agenda telefônica. Pediu uma sala ao hotel, montou um quartel-general provisório e pendurou-se no telefone. O dia amanhecia. A primeira autoridade a aparecer foi o prefeito Gilberto Kassab, na época candidato à reeleição.
Quarenta horas depois, a Sociedade de Cultura Artística repetiu os seus primórdios para dar solução aos problemas do presente: sem sede própria, levou a Orquestra Filarmônica de Liège a se apresentar no Municipal. Na ocasião, o empresário e bibliófilo José Mindlin fez um discurso: “Se por um lado estou tomado pela tristeza, por outro fico feliz com a força da Sociedade de Cultura Artística, expressada na união e no apoio da classe artística e de toda a sociedade.”
Alguns meses mais tarde, aos 94 anos, sentado numa poltrona de sua casa no Brooklin, Mindlin completou: “Destruído foi o teatro, não a Sociedade de Cultura Artística.” Sua relação com a instituição é quase centenária: dois anos antes de ele nascer, seus pais foram signatários da ata de criação da SCA. “Eles estavam há apenas dois anos no Brasil e já se envolviam numa sociedade como essa, de pessoas interessantes”, diz, com uma ponta de orgulho.
Os destinos da Sociedade de Cultura Artística dependem de duas instâncias. Num dos pratos da balança do poder, está o conselho, formado por quinze membros, que reúne banqueiros, industriais, publicitários, economistas, filantropos, gente como Antonio Ermírio de Moraes, da Votorantim, e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central. Os conselheiros não participam do dia a dia da instituição, pois quem toma as decisões é a diretoria, o outro prato da balança, que é presidida por Mindlin. Além dele, mais onze membros compõem a diretoria, entre eles Pedro Herz, dono da Livraria Cultura, Fernando Xavier Ferreira, ex-presidente da Telefónica no Brasil, e Roberto Crissiuma Mesquita, membro do conselho do Grupo Estado.
O arquiteto Paulo Bruna, que integrou o escritório de Rino Levi, é o único remanescente da equipe responsável pela última grande reforma do teatro, em 1977. Desde então, a Sociedade é seu cliente fiel, repassando-lhe todas as obras de manutenção. Profissional rigoroso e erudito, Paulo Bruna atualizou a lógica racionalista do velho mestre (é dele, por exemplo, o desenho da loja da FNAC em Pinheiros). Além disso, com pós-doutorado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts e professor titular de história na FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, ele é uma figura respeitada no meio acadêmico.
Na mesma semana do incêndio, Bruna foi chamado pela diretoria. “Tínhamos que correr, pois a economia estava aquecida e as empresas tinham dinheiro em caixa – a crise ainda não tinha aparecido”, explicou Perret. Na primeira reunião houve uma cisão. Um grupo queria o teatro reconstruído na Nestor Pestana. Essa era a opinião de Mindlin, Perret e Bruna. Outro núcleo preferia construir algo novo, longe do centro e perto do dinheiro. Venceu a turma do fica. Em editorial publicado uma semana depois, o Estadão corroborou: “Há de se reerguer um Teatro Cultura Artística modernizado, beneficiado por modernos recursos tecnológicos, mas preservando as linhas do projeto original de Rino Levi.”
Mas como financiar a construção? Havia um seguro de 5 milhões de reais, mas antes que a diretoria pudesse cobrar o sinistro, surgiu um obstáculo: o Estadão publicou uma denúncia, baseada num trabalho de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura da USP, que apontava más condições de manutenção do teatro, e insinuava que isso teria facilitado o incêndio. Perret rebateu a acusação e pôs em dúvida a credibilidade do trabalho acadêmico. Oito dias depois da publicação da reportagem, longe da imprensa, convocou-se uma reunião na faculdade da qual participaram o estudante que fez o trabalho, Anderson Leite Schmidt, integrantes da escola, Perret e Bruna. Os dois cobraram uma explicação do estudante. “Ele se desculpou, era aluno ouvinte, nem matriculado estava, e nunca fez tese alguma sobre o teatro”, contou Perret. Schmidt se comprometeu a não falar mais com jornalistas.
O laudo dos peritos não foi conclusivo quanto à causa do incêndio, mas descartou a hipótese de ato criminoso. O seguro então foi pago. Mas a soma recebida não era suficiente para as ambições da Sociedade. O jeito foi captar recursos via renúncia fiscal – a Lei Rouanet. Perret seguiu à risca a orientação de consultores: primeiro, deveria aprovar o novo projeto na prefeitura e nos órgãos de patrimônio, e em seguida solicitar ao Ministério da Cultura o direito de captar recursos.
Quando o nome de Paulo Bruna foi anunciado, arquitetos se apressaram em fazer elogios públicos. Contudo, nos escritórios e escolas de arquitetura, a conversa era outra. Em debates calorosos, uma ala defendia a pertinência de promover um concurso público, uma vez que a obra seria realizada com recursos da viúva. Outra dizia que se a Lei Rouanet não exige concurso – e ela não exige –, a diretoria da Sociedade tinha o direito de escolher quem bem quisesse, e Bruna, como herdeiro do escritório de Levi, tinha toda a legitimidade para criar o novo teatro.
O desenvolvimento do projeto foi feito com uma velocidade incrível. Além de aumentar o palco, foyer e camarins, a diretoria desejava espaços reservados para eventos de patrocinadores. Decidiu também que bastava uma única sala de concertos. “Pedimos que não fosse nada luxuoso, sem ostentação, no espírito do Cultura Artística”, disse Mindlin.
As novas dimensões do palco – grande demais para caber no antigo espaço – acabaram por produzir uma mudança radical em relação ao projeto original. Bruna concluiu que a nova sala de concertos só caberia no sentido transversal da antiga, ou seja, girando-a cerca de 90 graus em relação ao prédio destruído. Ele propôs manter a fachada intocada – com o Di Cavalcanti, claro – e demolir o restante para acomodar o novo prédio. Com isso, a curvatura da fachada de Levi perderá completamente a relação com o desenho da platéia. Somando tudo (inclusive a nova sala de 1 400 lugares), o novo prédio terá mais que o dobro de área construída do que o antigo, o que resultará numa enorme massa a ocupar todo o terreno.
Do ponto de vista arquitetônico, a dificuldade do projeto está na relação entre o novo prédio e o que restou do antigo. Entre dentro e fora, a conexão do acesso antigo – no centro, simétrico – com o novo foyer será enviesada. O ponto mais delicado é o diálogo externo entre a velha fachada e a nova edificação. A resposta de Paulo Bruna foi recuar o volume a ser construído, afastando-o “respeitosamente” do antigo. Mesmo assim, a caixa de Bruna sobressairá, pois tem mais que o dobro da altura do painel. Resta saber se o material a revestir o monobloco tornará essa relação fluida ou atravancada, bela ou vulgar. “Fizemos o projeto muito rápido e estamos estudando alternativas”, disse o arquiteto.
O debate público do projeto foi praticamente nulo – o respeito à figura de Bruna certamente calou possíveis dissensões. “Ninguém quer se indispor com o Paulo”, disse um especialista em Levi, acrescentado uma objeção: “Mas o painel do Di Cavalcanti será transformado em outdoor.” A única crítica aguda foi escrita por Marcos Carrilho, em artigo publicado no site Vitruvius. Restaurador de patrimônio moderno, Carrilho afirmou que no novo projeto “restará, apenas, um elemento aplicado sobre uma estrutura de grande porte, numa espécie de colagem de um painel figurativo, sem a relação e a carga expressiva que o destacou como obra de arte essencialmente urbana e perfeitamente integrada à arquitetura do edifício”.
Por último, faltava o mais delicado – enfrentar o tombamento. Juntamente com outros dez edifícios de Rino Levi, o requerimento para tombar o teatro fora protocolado em junho de 1994 no órgão estadual de proteção ao patrimônio histórico, o Condephaat. No pedido, o teatro é descrito como o “estágio mais avançado nos estudos sobre as relações entre acústica e forma arquitetônica” da obra de Levi. O texto destacava o painel de Di Cavalcanti, “talvez a obra de arte de maior dimensão exposta em espaço público, na cidade.”
O relator deu parecer positivo. Em plenária, os conselheiros do órgão votaram a favor e o processo de tombamento foi aberto. Na prática, isso significou que, a partir de setembro de 1995, qualquer modificação no teatro teria que ser aprovada pelo Condephaat. Ocorre que até o dia do incêndio, passados quase treze anos do pedido de proteção legal, o processo não havia sido concluído. Em outras palavras, ao queimar, o teatro não estava protegido, apenas resguardado pelo processo de tombamento.
Setenta e quatro dias depois do incêndio, com o projeto de arquitetura andando, Perret esteve na sede do Condephaat, que fica no prédio da Sala São Paulo. Participou de uma reunião atípica, com funcionários das três esferas governamentais da cultura. O encontro, sugerido pelo Ministério da Cultura – Juca Ferreira, titular da pasta, envolveu-se diretamente na questão –, foi proposto para que todas as instâncias decisórias se alinhassem em benefício do andamento ligeiro do processo. Inexplicavelmente, o processo de aprovação do projeto de Paulo Bruna foi o primeiro a tramitar dentro do Condephaat e recebeu sinal verde em apenas dezoito dias.
No dia seguinte, começou a outra etapa: o tombamento do que restou do prédio. Primeiro foi assinado o parecer favorável, redigido por dois técnicos da casa. Um detalhe oculto chama a atenção: um dos signatários, a arquiteta Silvia Wolff, é cunhada de Perret. As diretrizes do tombamento coincidem com os desejos da diretoria da SCA e com o projeto de Bruna. São elas: a manutenção da fachada, a liberação do interior para a nova construção e a autorização da incorporação de terrenos vizinhos (leia-se: os domínios de tia Tânia). Seis dias após o parecer, ocorreu nova reunião do colegiado. Era o quarto, último e mais difícil round: aprovar o tombamento propriamente dito, incluindo o desenho de Paulo Bruna.
O debate foi animado. Afinal, o que seria preservado? A questão da proteção de prédios modernos ainda é nova e muitos especialistas a vêem com ressalvas. Mas ela tem defensores, como o arquiteto Carlos Faggin, professor da Faculdade de Arquitetura da USP e conselheiro do Condephaat. Exigir a reconstrução de um teatro com problemas de funcionamento – o foyer, palco e camarins eram pequenos – seria condená-lo à ruína. “A reconstrução não foi nem sequer cogitada”, lembrou Faggin. Nem era para tanto: se fosse uma obra ímpar, de importância para a cultura universal, o bem já estaria protegido e sua reconstrução, ao menos mantendo suas principais características, seria exigência louvável. Isso ocorreu, por exemplo, com o Teatro La Fenice, de Veneza, destruído por um incêndio em 1996, e reinaugurado em 2003, depois de uma restauração que lhe devolveu a mesma feição do teatro desaparecido.
Mesmo sem a unanimidade dos conselheiros do Condephaat, o tombamento corroborou o projeto de Bruna. Apesar da velocidade da aprovação, Faggin afirma que não houve pressão sobre os conselheiros, que não são remunerados. “Recebemos uma carta, assinada pelo Mindlin. Ele pedia que o Condephaat se irmanasse com a Sociedade de Cultura Artística no sentido de refazer o teatro”, conta. Esse documento não consta dos autos.
A sequência das aprovações concedidas pelo mesmo colegiado – primeiro, pôs-se em pauta o pedido de autorização para a intervenção de Bruna e, uma semana depois, tombou aquilo que restou do edifício – não parece lógica. O mais sensato seria o contrário: tombar o que sobrou e depois avaliar a nova proposta, a ser criada a partir das resoluções referentes ao tombo. E se o tombamento fosse diferente, exigindo a reconstrução?
A rapidez da aprovação pôs o tombamento em xeque. Tem-se, de um lado, um processo lentíssimo, que passa quase uma década e meia sem avançar. De outro, três meses ligeirinhos, nos quais tudo se resolve. Faggin defende o Conselho. “Um tombamento é realizado com muita reflexão, por isso demora”, disse. “O ponto positivo que devia ser ressaltado é justamente a rapidez desse exemplo: era necessário tomar uma atitude após o incêndio.”
Ainda em novembro, após o projeto de Bruna ser aprovado pelo Condephaat, a imprensa foi convocada e o desenho, divulgado. Isso ajudou a captar recursos. Nos últimos dias do ano passado, a diretoria levantou o primeiro quinhão: 2 milhões de reais do banco Credit Suisse para restaurar a fachada.
Logo após assumir o segundo mandato, Kassab ofereceu-se para organizar um jantar. A idéia era convocar potentados da economia, a fim de passar o chapéu em prol da construção do novo teatro. Na noite de 18 de março, uma quarta-feira, os convocados se reuniram no apartamento do prefeito, que fica no conjunto de prédios neoclássicos nos fundos do Shopping Iguatemi. Entre os convidados estavam o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, Luciano Coutinho, e os empresários David Feffer, Rubens Ometto e Ricardo Steinbruch.
Kassab falou brevemente. Em seguida, o vice-presidente da SCA Cláudio Sonder (ex-presidente da Hoechst) expôs a situação e apresentou os valores das cotas, que variam de 500 mil a
3 milhões de reais. Por fim, todos assistiram ao vídeo promocional do novo teatro. Depois do jantar, a diretoria se dividiu em grupos menores para conversar com os empresários. Reuniões foram marcadas com aqueles que não puderam comparecer.
Poucos dias depois, o Ministério da Cultura autorizou a captação dos recursos relativos à segunda etapa da obra – 30 milhões destinados à construção do prédio. Da Suíça, onde estava trabalhando na primeira metade de abril, Perret informou por telefone que um dos empresários já havia fechado uma cota, mas não quis divulgar valores e nomes. “Temos outras propostas avançadas”, afirmou. Quando captarem o equivalente a 20% do valor orçado, a obra poderá começar. Por fim, a terceira e última fase custará mais 35 milhões de reais – também via Lei Rouanet. A idéia é inaugurar o novo teatro em 2012, no centenário da Sociedade de Cultura Artística.
Passados nove meses daquela manhã de agosto, é visível o abalo de parte da vizinhança com o fim do teatro. Estacionamentos e restaurantes estão às moscas. Nos vizinhos lindeiros, contudo, a rotina não se alterou. A igreja evangélica nada sofreu. Os casamentos de sábado continuam lotados e são até mais tranquilos sem o atropelo do fluxo do teatro. O fogo não deixou marca: o vento soprou contra e “nem fuligem nem fumaça vieram para cá. Foi Deus”, acredita o zelador. A frequência também não caiu no inferninho. Tampouco as labaredas fizeram estrago. “Graças a Deus”, comentou o gerente.
Em mostra eloquente de solidariedade, nenhuma das 2 mil assinaturas foi cancelada. Concertos e recitais da Sociedade acontecem nos endereços em que Perret encontra abrigo. Algumas vezes pagou-se pelo uso do espaço, mas na maioria das ocasiões, não. O painel de Di Cavalcanti está sendo preparado para o restauro. O teatro destruído é vigiado por seguranças.
“Não penso em dispensar a equipe técnica, pois talvez arrendemos algum espaço”, diz Perret. Na saída de emergência percorrida por Procópio, as placas de plástico do piso estão descoladas. As ruínas do teatro exalam um odor que mistura fuligem e umidade, e é inebriante. Na sala principal, os restos da cobertura que ruiu foram retirados. O que restou da platéia está coberto por uma lona preta que protege o piso de inundações. A impressão é a de um pátio abandonado cercado por paredes chamuscadas. Com o olho treinado dá para brincar de arqueólogo e perceber a delimitação do palco original, de 1950, e sua ampliação, realizada cinco anos depois. Ali, em silêncio, um bicho testemunha tudo. Para alívio dos que temem clichês, não se trata de uma fênix da mitologia grega. É só um cavalo de madeira, transformado em carvão. Foi tudo o que sobrou do último espetáculo do Cultura Artística: a comédia O Bem-Amado, de Dias Gomes, estrelada por Marco Nanini.