Capitu traiu ou não Bentinho? Sobre essa suspeita, a mais famosa da literatura brasileira, há uma outra pergunta que não costuma ser feita: o que ela teria visto em Escobar? Ou melhor, por que Bentinho enxergou no amigo uma ameaça? FOTO: MARC FERREZ_COLEÇÃO GILBERTO FERREZ_ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
O segredo de Escobar
Bento Santiago tinha razões concretas para se sentir ameaçado por seu antigo amigo de seminário
André Boucinhas | Edição 105, Junho 2015
Bento Santiago, protagonista e narrador do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, trabalhava em casa quando foi interrompido por um escravo que fazia alarido ao portão. O criado, propriedade de seu velho conhecido Escobar, estava aflito e pedia ajuda. “Para ir lá… sinhô nadando, sinhô morrendo”, anunciou. Bento correu à praia do Flamengo o mais rápido que pôde, mas não havia mais nada a fazer além de confirmar a morte do amigo. Arranjou-se velório e enterro para o mesmo dia e, “na hora da encomendação e da partida”, o desespero de Sancha, esposa do falecido, “consternou a todos”, levando homens e mulheres ao choro. É nesse momento tumultuado que ocorre o fato decisivo da narrativa: Bento notou “que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”. Nascia nele a dúvida sobre a traição.
A semelhança entre Ezequiel, filho do casal, e o finado Escobar, reparada um ano depois, foi a evidência final de que o protagonista precisava para se convencer do adultério. O casamento desgastou-se, e em pouco tempo a simples presença do filho já lhe era insuportável. Considerou se matar colocando veneno no café, acabou por desistir no último instante, por falta de coragem. E recuou de outra ideia impulsiva, que faria dele não um suicida, e sim um assassino: a de passar a xícara ao menino. Não deixou de confrontar a mulher, contudo. Ela riu e respondeu ao marido num tom, segundo o narrador, ao mesmo tempo irônico e melancólico. “Pois até os defuntos!”, reclamou. “Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!” Concordando que os dois, filho e falecido, se pareciam, Capitu justificou a coincidência pela “vontade de Deus”. Dali em diante passariam a levar vidas separadas, mantendo as aparências.
Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Sobre essa suspeita, a mais famosa da literatura brasileira, há uma outra pergunta que, surpreendentemente, não costuma ser feita: o que Capitu teria visto em Escobar? Ou, caso se acredite na inocência da moça, por que Bento Santiago enxergou no amigo uma ameaça? Sabemos que era ciumento, mas todas as suas crises haviam sido sempre passageiras – menos esta. É verdade que não faltavam a Escobar elementos capazes de atrair uma mulher, como o porte de atleta, o sucesso profissional, o espírito prático. E poderíamos menosprezar a questão, supondo que o coração tem lá seus motivos insondáveis. Se estivéssemos falando de José de Alencar, ou mesmo da primeira fase de Machado de Assis, essas explicações talvez bastassem. Talvez. Mas não em Dom Casmurro. Nada ali pode ser descartado como gratuito ou não significativo – muito menos Escobar, elemento central da história.
Muito se avançou na compreensão dos romances machadianos quando se prestou a devida atenção a características nada fortuitas dos personagens, em especial seus perfis socioeconômicos. Enxergar Capitu, como fez Roberto Schwarz em Duas Meninas, como uma figura subalterna da família Santiago acrescenta uma nova perspectiva ao romance: ele passa a ser também o relato da trajetória de uma moça que, independentemente do que sentia pelo vizinho, sabia que casar-se com ele significaria ascensão social. Ao mesmo tempo, Bento Santiago, um típico representante da tradicional elite carioca, narra sua história como bem entende, ressaltando ou omitindo o que lhe convém, com a mesma arbitrariedade e o mesmo elitismo com que seus pares escreviam a história do Brasil ou comandavam o país. Até agora, porém, pouco se disse do suposto traidor. Afinal, quem era Escobar? Por que Machado de Assis escolheu esse homem para completar o triângulo amoroso? Uma tese recente de história econômica pode ajudar a formular uma nova hipótese para a questão.
No ano passado, quando esteve no Brasil para lançar O Capital no Século XXI, o economista francês Thomas Piketty afirmou que não incluiu o país em seu celebrado livro sobre a evolução da desigualdade no mundo devido à falta de transparência nos dados do imposto de renda por aqui. De toda forma, acrescentou que àquela altura já trabalhava com as informações disponíveis para o período entre 1930 e 1988, liberadas para consulta pública, e que ainda esperava conseguir dados referentes ao último quarto de século. Ao que tudo indica, ele não planeja ampliar o foco de sua pesquisa retrocedendo ao nosso século XIX, como fez para França, Inglaterra e Estados Unidos. É uma pena. A comparação do Brasil oitocentista com esses países no mesmo período contribuiria não só para nossos estudos de economia e história econômica, como para os de crítica literária.
Há indícios de que os níveis de desigualdade observados nos países ricos fossem análogos aos brasileiros. Piketty afirmou, por exemplo, que em 1870 os 10% mais ricos da Europa possuíam 85% de toda a riqueza disponível; já nos Estados Unidos, a mesma fatia da população detinha 70% dos bens. Em levantamento feito nos inventários post mortem no Rio de Janeiro do mesmo ano, observei que os 10% do topo acumulavam 59% do total arrolado nesses documentos, que descreviam e avaliavam todas as posses do falecido. Num primeiro momento, os números surpreendem porque mostram um país menos injusto do que os europeus e os Estados Unidos, impressão que aumenta quando descobrimos, ainda com o economista francês, que as capitais tendem a apresentar maior concentração do que o país como um todo. Depois de décadas vendo o Brasil no topo de todas as listas de desigualdade do mundo, isso seria uma bela surpresa, mas existe pelo menos uma explicação simples para ela. Como escravos e miseráveis não abriam inventários – estes porque não possuíam nada; aqueles, por não terem o direito de fazê-lo, além de em geral não possuírem nada –, nenhum dos dois aparece na estatística, mascarando a concentração. Se Piketty expandisse sua pesquisa para o Brasil oitocentista, poderíamos medir de forma mais precisa e ampla sua distribuição de renda e riqueza e nos aprofundar nas razões para essa diferença entre países ricos e pobres no século XIX.
Seria talvez pedir demais que o autor se ocupasse também de nossa literatura, à maneira como fez, de modo magistral, com grandes obras francesas e inglesas do século XIX. Para ele, Honoré de Balzac e Jane Austen “possuíam um conhecimento íntimo da hierarquia da riqueza em suas sociedades” e “desnudaram os meandros da desigualdade com um poder evocativo e uma verossimilhança que nenhuma análise teórica ou estatística seria capaz de alcançar”. Tal habilidade, ainda que notável nos dois escritores, não deveria surpreender. Representar o cotidiano de forma detalhada e verossímil é a própria essência do romance nos séculos XVIII e XIX, como assinalaram Erich Auerbach, Ian Watt e, mais recentemente, Franco Moretti, três teóricos de escolas diferentes, mas afinados nesse ponto. Assim, nada mais natural que essa “atenção à realidade”, capaz de tornar obras de ficção documentos relevantes para as ciências sociais, possa ser encontrada em romancistas brasileiros. Entre eles, é claro, Machado de Assis. Voltamos a Dom Casmurro.
Trata-se, como todo mundo sabe, da conturbada história de amor entre Bentinho e Capitu, com um detalhe que, na verdade, constitui o ponto fundamental para a compreensão do romance: o protagonista é o próprio narrador, disposto a convencer o leitor de sua posição de vítima inocente de uma traição indesculpável. Sendo bacharel em direito, como mandava o figurino das grandes famílias da época, tem consciência de que precisa provar o seu caráter confiável. Para isso, no século XIX, nada mais decisivo do que identificar-se como parte da “boa sociedade”. Assim, como quem não quer nada, o narrador revela logo no segundo capítulo que mora em casa própria, construída a seu mando, num bairro valorizado. Poucas páginas depois, somos também informados de que, quando nasceu, sua família vivia em uma fazenda repleta de escravos e possuía residência no Centro da cidade, para onde se mudaram em definitivo após alguns anos. Na morte do pai, sua mãe resolveu vender a propriedade, bem como os escravos, e com o dinheiro comprou “uma dúzia de prédios” para alugar.
Caracterizar a família Santiago como rica proprietária foi uma das prioridades do narrador/advogado, e com razão. Na Europa oitocentista, Piketty demonstrou que o rendimento de um imóvel urbano ou de uma propriedade rural girava em torno de 5% ao ano, maior do que um salário poderia propiciar, mesmo a profissionais valorizados, em um século com inflação e crescimento baixos no longo prazo. Foi exatamente o que tentou esclarecer Vautrin, personagem sem escrúpulo de Balzac, ao ingênuo Rastignac, no romance O Pai Goriot, em trecho muito discutido n’O Capital no Século XXI: estudando direito, Rastignac na melhor das hipóteses obteria, como juiz, um ordenado de uns 1 200 francos por ano; por outro lado, se casasse com uma herdeira de 1 milhão de francos, receberia de imediato uma renda anual de 50 mil francos, o que equivalia ao máximo que um advogado poderia sonhar após quatro décadas de trabalho duro, muita sorte e bons contatos. Vautrin estava certo, e de quebra explicitou a chave da altíssima concentração de riqueza e da força da aristocracia fundiária europeia naquele século: os grandes proprietários tinham mais condições de acumular renda do que os que começavam a vida sem nada, contribuindo assim para a manutenção da hierarquia socioeconômica, sem alterações significativas no topo da pirâmide.
Machado de Assis, em Dom Casmurro, não deixou dúvidas sobre a importância de se ter propriedades no Brasil imperial. Escobar, tentando convencer o amigo da superioridade dos algarismos sobre o alfabeto – em última instância, o elogio do conhecimento prático –, pede que Bento informe o número de casas da família e o valor dos aluguéis para, segundo ele, demonstrar sua capacidade de realizar rapidamente cálculos de cabeça, algo impossível para problemas metafísicos. Eram nove imóveis, e mesmo assim ele chega sem dificuldade ao valor total de 1:070$000 (1 conto e 70 mil réis) mensais. Para termos uma ideia do que isso significava, um funcionário de nível médio ganhava, nos anos 1860, algo em torno de 150$000 mensais, um chefe de polícia, 250$000, e um simples guarda, 24$000. Para se eleger deputado, uma pessoa precisava comprovar uma renda anual de 400$000. Trocando em miúdos: bastavam os rendimentos dos imóveis para colocar os Santiago no topo da hierarquia econômica.
Os prédios, entretanto, não eram a única fonte de renda da família. Com o dinheiro da fazenda, a mãe de Bentinho adquiriu também novos cativos, decerto mais acostumados aos serviços urbanos, que “pôs ao ganho ou alugou”. O que não quer dizer que os Santiago vivessem sem o serviço direto deles, pois há referência a pelo menos outros nove escravos na casa, e provavelmente tinham mais. A alta sociedade não abria mão desses trabalhadores que, além de realizarem as tarefas do dia a dia, traziam prestígio para os seus senhores, na mesma proporção de seu número. Ser proprietário na corte, por boa parte do século XIX, significava ter imóveis e escravos, e o narrador não nos deixa esquecer de que sua família os possuía em abundância.
Quem não tinha posses precisava correr atrás de proteção e apadrinhamento. O exemplo mais notável e conhecido é o de José Dias, agregado típico, que mora na casa dos Santiago de favor, a que retribui com gratidão e servilismo. A melhor interpretação desse aspecto do personagem veio de Roberto Schwarz, ainda em Duas Meninas, que chamou a atenção para a sua primeira entrada no romance. Nela, “José Dias anuncia a dona Glória, mãe de Bentinho, ‘uma grande dificuldade’. Antes de explicá-la – trata-se do namoro de Capitu e Bentinho – vai prudentemente até a porta da sala, para ver se o menino não está ouvindo. A graça vem do contraste entre a gravidade vitoriana da pessoa e os cuidados subalternos a que se obriga”. Essa contradição, escreve Schwarz, “ecoa as funções representativa e prestativa do agregado, bem como a vivacidade de quem vive de expedientes. O leitor dirá se inventamos ao imaginar que a mesma estrutura dirige os passistas de escola de samba, vagarosos e principescos da cintura para cima, enquanto os pés se dedicam a um puladinho acelerado e diversificado”.
À primeira vista, o vizinho Pádua, pai de Capitu, vivia em condições muito superiores às de José Dias, pois tinha emprego público e casa própria, mas trata-se de outro tipo de dependente, como notou Schwarz. A precariedade de sua situação logo emerge, pois descobrimos que comprou a casa com dinheiro de loteria e que seu salário não sustenta um padrão de vida condizente com a residência. Vive saudoso do breve período em que foi administrador interino da repartição em que trabalhava, quando conseguia bancar algum luxo para a família; ao fim da promoção temporária, pensou em se matar, tamanha a vergonha de voltar à penúria de antes, e aparentemente desistiu por ordem de dona Glória. De fato, as condições de vida em sua casa, pelo menos aos olhos de Bentinho, não eram das melhores. Capitu, como fez questão de observar o narrador às vésperas do primeiro beijo, tinha apenas “um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão”. A menina, por sua vez, compreende a delicadeza de sua situação, chegando a jogar na cara do namorado, em um de seus raros momentos de descontrole, que se fosse rica ele fugiria com ela.
A prova do status inferior da família do Pádua, bem como da sua consciência disso, é a constante disputa com José Dias, que o chama de “tartaruga” e de “gente reles”, além de acusá-lo de jogar a filha para cima de Bentinho. O episódio em que o agregado faz de tudo para impedir o vizinho de ocupar um lugar de prestígio numa procissão do Santíssimo, carregando uma das varas do pálio – o manto que cobria o vigário e o sacramento –, ilustra bem essa rivalidade. Não satisfeito em tomar a posição do outro, que a havia reservado com antecedência, quando conseguem uma segunda vara, faz questão de que seja Bento a dividir a honraria. O Pádua, proprietário por acaso, sabe que precisa entrar nesse jogo pela atenção dos Santiago e cede contrariado. Mais tarde, refere-se ao agregado como “parasita” em conversa com o futuro genro. Este, claro, se serve dos dois da maneira que melhor lhe convém, sempre sob o manto de sua pretensa ingenuidade.
A aristocracia fundiária europeia, segundo Piketty, conheceu o fim definitivo de sua hegemonia econômica e social na primeira metade do século XX, com a grande crise formada pelas duas guerras mundiais e o crash da Bolsa de Valores norte-americana. Até então, alguns burgueses obtinham mais prestígio devido ao enriquecimento nos negócios, porém poucos eram vistos como iguais pela elite tradicional. Enquanto alguns desses “novos ricos” reclamavam disso que consideravam uma injustiça, a maioria buscava, no fundo, a aceitação por parte da nobreza, que muitos ainda viam, no fim do século XIX, como um grupo diferenciado.
Essa intensa competição por status foi muito bem retratada nos romances do período. Na obra balzaquiana, por exemplo, há inúmeros personagens que prosperaram pelas vias do trabalho e do talento nos negócios, que lutam para serem aceitos na alta sociedade – e que normalmente fracassam. Os exemplos mais explícitos são talvez os do protagonista da Ascensão e Queda de César Birotteau, que deixa para trás sua origem camponesa trabalhando no ramo da perfumaria, mas acaba enganado pela elite tradicional em um negócio milionário; e do pai Goriot, no romance de mesmo nome, que com sagacidade passa de operário a rentista, embora precise parar de ver as próprias filhas para, com suas maneiras rudes, não arruinar as chances delas na alta sociedade. A nobreza fundiária, apoiada na tradição, erudição e rendimentos de suas terras, procurou barrar a entrada desses parvenus ao topo da hierarquia social, abrindo exceções apenas a grupos específicos, como banqueiros e grandes comerciantes estabelecidos há mais de uma geração. Essa competição entre a burguesia arrivista e a aristocracia estabelecida não entrou no radar de Piketty, pois era muito reduzido o número de pessoas que por mérito individual conseguiam ascender da condição de classe média e buscavam os mesmos prestígios e privilégios das antigas famílias. No entanto, para esses “alpinistas” e para os que já estavam no topo da montanha havia séculos, essa disputa era o que existia de mais importante. Com adaptações, isso valia igualmente para o Brasil do final do século XIX, e quem sabia muito bem disso era, mais uma vez, Machado de Assis.
Personagens que ganham muito dinheiro pelo trabalho demoraram a aparecer na literatura brasileira, apesar de Balzac ter sido desde o início uma forte inspiração para os romancistas nacionais. Em Ressurreição, romance de estreia de Machado, cai nas mãos do protagonista, Félix, “uma inesperada herança, que o levantou da pobreza”. A solução era tão óbvia que ao narrador restou apenas reconhecer o fato e dizer que “só a Providência possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro”. Até os anos 1870, basicamente só se enriquecia nos romances brasileiros por meio de heranças ou casamentos, muito diferente dos casos do pai Goriot e de César Birotteau.
Foi também o autor de Dom Casmurro um dos romancistas que mais cedo se preocupou em desenvolver com seriedade e verossimilhança personagens que prosperavam por mérito próprio. Exemplos na sociedade à sua volta podiam não abundar, mas existiam; ninguém ignorava o caso de Irineu Evangelista de Sousa, que aos 9 anos trabalhava o dia inteiro em um estabelecimento comercial na corte em troca de moradia e alimentação e, sem empurrãozinho da Providência, tornou-se dono de banco, o maior industrial do Brasil, controlando empresas em seis países, e um dos homens mais ricos do Império. Foi eleito deputado pelo Rio Grande do Sul quatro vezes, recebeu o título de barão de Mauá em 1854 e, vinte anos depois, coroando sua aceitação na alta sociedade, o de visconde com grandeza.
Encontramos exemplos de ascensão inegável até o topo tanto de brancos pobres quanto de mulatos, em áreas como jornalismo, política, comércio, direito e mesmo as artes plásticas. Francisco de Paula Brito, Luís Gama, Victor Meirelles, Francisco de Sales Torres Homem (até hoje o único negro a ocupar o cargo equivalente ao atual Ministério da Fazenda) talvez sejam os casos mais notáveis, mas estão longe de serem os únicos. Seus biógrafos, por motivos óbvios, tendem a tratar cada caso individualmente, sem se dedicar a uma interpretação de conjunto. A historiografia, a quem cabe essa tarefa, ainda não se ocupou do fenômeno, talvez pela longa e persistente tradição, de viés marxista, de análise da nossa sociedade colonial e imperial a partir de seus extremos: escravos e senhores. Embora a crítica a essa visão reducionista venha sendo feita desde a década de 1980, os estudos sobre a ascensão social de camadas intermediárias não avançaram muito.
Nos romances machadianos, o Palha, de Quincas Borba, é o primeiro exemplo bem-sucedido desse esforço de representar um self-made man nacional, mas o grande prestígio que alcança decorre também de seu casamento com Sofia, moça que possuía uma tia proprietária de terras – ainda que empobrecida – e uma tia-avó afilhada do vice-rei Luís de Vasconcelos. Outro é o Escobar. Se não podemos dizer que viesse de origem pobre, tudo parece indicar que se situava numa posição intermediária, inclusive pela ausência de referências a qualquer distinção de sua família. Filho de um advogado de Curitiba, área então sem grande relevo político, chega à capital para estudar no seminário, logo revelando sua intenção de trocar a batina pelo comércio. Além da facilidade com a matemática, tinha um parente comerciante no Rio de Janeiro, porém não ficamos sabendo se este o ajudou, ou de que forma, apenas que de fato enveredou por esse caminho e foi bem-sucedido.
Assim que saiu do seminário, nos anos 1860, Escobar resolveu vender café – era o momento do boom do produto brasileiro no mercado internacional, revelando seu ótimo tino para os negócios. Foi ele quem conseguiu os primeiros clientes importantes de Bento, o que evidencia o tipo de pessoas com quem mantinha contato, bem como certa superioridade em relação ao amigo no que diz respeito à vida prática. Sua confortável situação financeira lhe permitiu comprar uma chácara no Andaraí e, mais tarde, trocá-la por uma casa no valorizado bairro do Flamengo, próxima à de Bento e Capitu. Acompanhava o casal, ao lado da mulher, em programas típicos da alta sociedade, como grandes bailes, chegando inclusive a propor que os quatro viajassem à Europa. Os indícios de seu sucesso são esparsos, mas inequívocos. Na fotografia de Escobar que Bentinho tem na parede, o amigo está “de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador”. A pose e as vestes, semelhantes às encontradas nos retratos da aristocracia fluminense da época, apresentam um homem bem-sucedido e confiante. Estavam então, lado a lado, a fina flor da elite carioca, advogado e proprietário, e um “trabalhador” e “bom negociante” (palavras do próprio narrador), sem um nome de família de respeito, com mentalidade prática e desdém pela erudição bacharelesca.
Querendo exibir suas qualidades desportivas – característica bastante burguesa, por sinal –, Escobar morre afogado na praia do Flamengo. No enterro, pomposo por exigência de Bentinho, encontramos mais evidências do status do amigo: “Praias, ruas, Praça da Glória, tudo eram carros, muitos deles particulares.” A morte de Escobar, em março de 1871 (“Nunca me esqueceu o mês nem o ano”), coincide com a posse, na presidência do Conselho de Ministros, do visconde do Rio Branco, que logo iniciou a discussão sobre a famosa Lei do Ventre Livre, assinada seis meses depois. Assim, a dúvida particular que acabou por destruir a vida de Bento Santiago nasceu ao lado da ansiedade dos proprietários de escravos diante da intensificação do movimento abolicionista.
Bentinho decide recontar sua história em 1899, dez anos após a Lei Áurea, que confirmou aquele medo e eliminou a principal fonte de rendimentos dos grandes proprietários de terras e de escravos sem nenhum tipo de compensação financeira, levando muitos a se endividar. Poderíamos dizer que a abolição cumpriu aqui um papel equivalente ao da Primeira Guerra Mundial na Europa, já que ambas colocaram um ponto final na hegemonia de uma elite economicamente antiquada.
Na passagem da monarquia para a república acontece também o Encilhamento, que muitos consideram ter liquidado os antigos valores da sociedade, elevando o dinheiro acima de todos eles. Tratou-se na verdade de uma “bolha” especulativa na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, impulsionada pela reforma de Rui Barbosa que, entre outros, buscava estimular a industrialização e facilitou a emissão monetária durante o primeiro governo republicano.
A imagem que chegou até nós desse momento foi pintada por Alfredo Taunay no romance O Encilhamento, em que caracteriza tudo o que se refere a essa política econômica como irresponsável, corrupto e fracassado. Hoje se sabe que não foi bem assim, mas Taunay, como Bento Santiago, era parte da “boa sociedade” do Império e via nessa nova ordem social o fim do seu mundo aristocrático e a ascensão de outro, burguês, inferior. Como mostrou Gustavo Franco, talvez o primeiro estudioso a levar a sério o interesse de Machado de Assis por assuntos financeiros, a visão do romancista sobre o evento era menos pessimista, mas ele ainda assim explicitou em seus romances o que pensava dele a antiga elite. Em Esaú e Jacó, por exemplo, o conselheiro Aires, diplomata que fez carreira durante o Segundo Reinado, conhecido por sua moderação, emitiu a seguinte opinião sobre o tema: “Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. […] Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.” Para a aristocracia tradicional fluminense, a virada do século não parecia anunciar boas-novas, e sim o seu ocaso definitivo.
O próprio Bento, na abertura do livro, conta que àquela altura tem um único criado e mobília velha, reforçando a impressão de decadência que a melancolia do narrador (contrabalançada por um humor cortante, como quase sempre em Machado) sugere o tempo todo. Nessas circunstâncias, nada mais natural que um homem como ele procurasse reafirmar, para todos e sobretudo para ele mesmo, que Escobar fora a origem de sua desgraça. A ruína de Bentinho representa também a do grupo social do qual fazia parte – uma analogia que, como quase todo comentário político e social na obra machadiana, aparece nas entrelinhas, e não de forma explícita, como faria Balzac. Já que para essa elite cheia de si estava fora de cogitação atribuir a responsabilidade pela própria decadência à sua incompetência, os suspeitos mais indicados para assumir a culpa ficavam sendo justamente aqueles comerciantes, identificados com a riqueza móvel que caracterizava os novos tempos, que sobreviveram sem grandes problemas ao fim da escravidão, mantendo sua trajetória ascendente.
Só podiam ter sido eles os culpados. Na virada para o século XX, quando dom Casmurro narra a sua história na esperança de atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência, haviam roubado quase tudo da aristocracia. Influência. Status. Riqueza. Até a mulher.