"Nos deparamos com algo empolgante, jamais visto; novas formas emergem de repente do caos", disse Kessler depois de assistir à estreia da Sagração ad Primavera, há cem anos FOTO: DEUTSCHES LITERATURARCHIV, MARBACH_TEXTO PUBLICADO SOB PERMISSÃO DA EDITORA KLETT-COTTA VERLA
“O sentimento de uma nova era”
O mecenas da Belle Époque discute socialismo com Bernard Shaw e diverte-se com Njinsky na noite de Paris
Harry Graf Kessler | Edição 86, Novembro 2013
Mulher do rei George V da Inglaterra, a rainha Mary é incapaz de sustentar uma boa conversa. O poeta Rainer Maria Rilker tem um automóvel (em 1908), mas precisa pedir dinheiro emprestado para fazer uma viagem. Os pintores Edgar Degas e Pierre-Auguste Renoir são reacionários inconformados com a universalização da educação primária na França. O rol de inconfidências é enorme nesta sequência do diário do CONDE HARRY KESSLER. No dia 16 de abril de 1912, o mecenas, editor e escritor alemão faz uma pausa no registro de encontros com personalidades das artes e da política para mencionar uma nota publicada nos jornais sobre o recém-ocorrido naufrágio do Titanic. Uma senhora que tinha o pai no transatlântico não se atormentara com a notícia do acidente porque acreditava que o capitão poderia “apertar um botão e salvar todo mundo”. Como os músicos da orquestra do “navio gigante”, que não param de tocar, Kessler se despede da Belle Époque com uma vida social frenética, em meio a sinais cada vez mais eloquentes da Grande Guerra que se aproxima.
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1907
19 DE JUNHO, QUARTA-FEIRA, PARIS_Parti cedo de Londres para Paris. Um jantar havia sido arranjado na casa de Vollard[1] para que Degas e eu nos encontrássemos. Além de nós, estavam lá Forain, Bonnard e Sert,[2] bem como três mulheres, duas das quais chamadas de mademoiselle. Uma delas era uma moreninha francesa, mademoiselle Georges; a outra, uma russa, que chegou num automóvel próprio e portava-se como uma grande amante da Comédie-Française – em parte grande dame, em parte grande cocotte. As honras da casa foram feitas por uma certa madame Levell, uma negra jamaicana, mulher madura mas de um frescor ainda assaz desejável, com rosas vermelhas artificiais nos cabelos.
Degas, que eu jamais havia visto, não suporta flores frescas. Ele surpreende pela nobreza e a pureza da expressão; parece um avô muito distinto, ou, melhor dizendo, seu rosto é o de um homem cosmopolita, mas os olhos são de um apóstolo intocado por este mundo.
A cegueira incipiente, que quase impede o uso dos olhos, empresta certa harmonia a essa ingenuidade. Ele alternou momentos de silêncio com outros de agitação. Sua primeira manifestação de ira foi dirigida contra Forain, pela falta de pontualidade: “Se tivesse sido convidado por uma duquesa, ele teria chegado na hora. Está ficando esnobe, muito esnobe, esse Forain.” Como Degas não suporta esperar e exige que seu jantar seja servido sempre às sete e meia, sentamo-nos à mesa sem Forain. Explicaram-lhe que Forain sempre se atrasava, mesmo com duquesas. “Por quê? Porque ele tem um automóvel. Eu sempre pego somente o ônibus e nunca chego atrasado.”
Depois do bem condimentado curry negro, especialidade de Vollard que Degas recusou com nojo, chegou Forain, a mais animada das alegrias estampada no rosto barbeado de ator velho e malvado. […] A conversa, então, passou a tratar de uma visita que Vollard, a jamaicana e outros querem fazer no sábado a um jovem pintor, Chaplin,[3] na Île Saint-Louis.
Forain: “É ele que tem toaletes folheados a ouro?”
A jamaicana: “Me surpreende que o senhor comece por aí, monsieur Forain. Tudo lá é refinado. E ele tem uma boca muito bela.”
Forain: “Sim, eu sei, um bigodinho e uma boca bonita. Você fez bem em escolher um sábado. Devia ir até lá à meia-noite, na hora do sabá, das orgias que contrariam a natureza.”
Vollard: “De fato, sempre me pareceu que faltam mulheres por lá.”
A jamaicana: “Como é que você pode saber, Vollard?”
Vollard: “Bom, não se vê nem sinal delas.”
A jamaicana: “Que sinal? O que você quer dizer? Explique-se!”
Forain, interrompendo-a: “Mas como é que vocês querem que haja mulheres por lá? Ele é um tapette [homossexual]!”
A jamaicana: “Antes de arruinar uma reputação, seria bom ter ao menos um mínimo de prova. Como é que o senhor sabe que é verdade o que está dizendo?”
Forain: “Eu não sei de nada, mas é coisa que dá para ver. A barbicha, os saltos altos… Um homem não se enfeita assim para agradar as mulheres. E, depois, ele não gosta delas. E, se não gosta das mulheres, é porque gosta de homens, isso é óbvio.”
Degas: “É como aquele inglês que veio morrer num hotel na rue des Beaux-Arts. Como ele se chamava mesmo?”
Forain: “Você quer dizer Oscar Wilde,[4] o velho Oscar. Mas ele era diferente, era uma bicha bonita, não queria agradar os homens, era ativo, ao passo que Chaplin…”
A jamaicana: “Bom, eu tenho certeza de que o que vocês estão dizendo não é verdade, muito pelo contrário.”
Forain, em voz alta e triunfante: “Ora, e como é que você pode saber? Só haveria um jeito de provar… (ele olha bem para ela). Então você é amante dele?”
24 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Enviei a Maillol um pequeno ciclista e jóquei, Gaston Colin,[5] como modelo para o relevo e o Narciso que ele quer fazer para mim. Como Maillol só quer pagar 5 francos e, por essa quantia, dificilmente vai encontrar um modelo decente, pago ao jovem o restante.
2 DE JULHO, TERÇA-FEIRA_À tarde, visita a Renoir com Vollard. Primeiramente, visita ao ateliê e, depois, a sua casa, ambos em Montmartre, rue Caulaincourt. […] Sentado numa cadeira de rodas, Renoir pintava um amplo nu em tamanho natural. […] Sua modelo de cabelos negros, Gabrielle, vestindo uma blusa amarela e folgada de chita, limpava os pincéis depois de utilizados. Ele mandara Gabrielle buscar um nu dela própria, no qual, com suas formas maduras e bastante redondas, está deitada num sofá. Fazia três anos que não trabalhava naquela pintura, disse ele, mas, na verdade, a obra ainda não estava pronta. “Uma pintura nunca termina. Não fossem as circunstâncias exteriores a nos impedir, trabalharíamos nela a vida toda.”
Convidou-me então a ir até sua casa, para ver mais coisas. Ele tem um apartamentozinho no 1º andar de um prédio novo, o tipo de moradia de um pequeno funcionário dos correios. Por todos os cômodos, as paredes estão forradas de esboços e pinturas. Em meio às dele, dois Cézannes e um Manet. Como nas paredes de um ateliê, boa parte de suas próprias pinturas não está emoldurada. Há entre elas muitas pérolas, como as que retratam seu filhinho, Coco [Claude]. Numa delas, como um garotinho de 2 ou 3 anos, de branco sobre fundo azul, um dos mais belos retratos infantis que já vi. […]
Quando Renoir, cansado, sentou-se numa cadeira da sala de jantar, o próprio Coco apareceu acompanhado de madame Renoir, que é gorda e grisalha. O menino, ao contrário – está agora com cerca de 5 anos –, é encantador, loiro e de olhos azuis, ao passo que Renoir tem olhos castanhos. Ele e a mulher lembraram-se de minha A Vendedora de Maçãs.[6] “Eu só tinha um filho naquela época”, ela disse, no que soou como um lamento daquela matrona a me comunicar que havia servido de modelo para a jovem mulher na pintura.
3 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Convidei os Maillol e os Vollard para jantar comigo no [restaurante] La Tour d’Argent. Falou-se de política. Manifestei meu espanto com o grau de reacionarismo de homens como Degas por aqui. Isso não era nada, Vollard opinou; Renoir era muito mais reacionário que Degas. Maillol: “Em certo sentido, hoje todo mundo aqui pode ser chamado de reacionário.” Quando se viam, disse ele, as consequências que l’instruction[7 ] havia tido no campo, então só se podia virar reacionário. “Os que sabem ler e escrever vão embora, não querem mais ficar. A gente vê garotos cujos pais foram belos camponeses – pingando suor, o rosto bronzeado de sol – irem para a cidade para trabalhar como escriturários, empregados de alguma loja. Nem felizes são […] nem um pouco felizes! O único prazer que tem é o de sair do trabalho às oito da noite com um charuto barato entre os lábios. Mas todos têm orgulho de ‘ser da cidade’, de passar a vida fazendo bonito atrás das saias, as saias à venda sobre o balcão!”
8 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Cedo no Bois de Boulogne, o dirigível Patrie passou voando sobre nossas cabeças, como uma grande baleia amarela. Sentimento estranho de uma nova era.
23 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA_Casa de Maillol. Hoje ele estava trabalhando no Colin. Alguns dias atrás, eu havia deixado o [jornal] Mercure para ele, que perguntou: “Você lê todo dia o que sai no Mercure? Ontem, por exemplo, li um artigo que me pareceu bem engraçado, ‘Em um mundo sonoro’. Todo atulhado de filosofia… nem a forma era das melhores… sem beleza nenhuma! Eu não compreendo filosofia que não seja bonita na forma. Tirando a forma, não vejo que outra utilidade a filosofia pode ter.”
Citei o exemplo de Kant, o conhecimento da idealidade dos fenômenos.[8] Maillol: “Ah é? E saber isso fez você feliz?” Respondi que a felicidade não era a única medida. Maillol: “Para mim, não existe outra meta na vida que não seja a felicidade.” […] Expliquei a ele o objetivo da filosofia científica mais recente: a fundamentação e a unificação de todas as ciências.
Maillol: “Isso eu compreendo, mas me parece bem complicado. O que eu acho é que um homem simples como eu deveria compreender a boa filosofia. Uma boa filosofia deveria proporcionar serenidade. Mas todas as que encontrei até agora só serviram para tornar os homens infelizes e tristes, para torturar seu cérebro.”
Eu: “Raciocínios e análises complicadas são tão inevitáveis na filosofia como são complicados os meios de que se serve a arte.”
Maillol: “É possível. Mas então as conclusões deveriam ser simples, como na escultura. O trabalho que eu ponho na feitura de uma forma pode ser extraordinário, envolver milhares e milhares de planos, mas, uma vez terminada, ela deve parecer muito simples, para que mesmo aquele que não entende nada de escultura possa achá-la bonita.”
Agora, no trabalho que estava fazendo, ele seguia cada vez mais a natureza nos detalhes da forma: com uma pequena espátula de madeira, aplicava minúsculos pedacinhos de argila, menores do que uma ervilha, que amaciava e modelava carinhosamente com o dedo. “É muito bonita a natureza. As nádegas são redondas como maçãs, e as maçãs, redondas como nádegas. Não há nada mais bonito que as nádegas de uma mulher ou de um jovenzinho. E, quanto mais se trabalha, mais bonito fica. Os gregos tinham de pôr um trabalho extraordinário no que faziam. O tempo não importava para eles. Por isso fizeram o que há de mais belo.”
Sempre e de novo ele passava a espátula e o dedo nas nádegas da figura, alisando a forma redonda para torná-la mais macia e completa. “Veja este detalhe aqui (uma leve sombra na nádega esquerda do jovem Colin). Copiá-lo me dá um trabalho enorme, e, quando fotografado, ele desaparece. E, no entanto, está lá, a gente o vê na natureza.”
21 DE DEZEMBRO, SÁBADO, BREMEN_À noitinha, os Rilke[9] vieram jantar. Ela tem algo de grandioso e simples, determinada, quase masculina. Ele parece ser o mais feminino dos dois. Quando fala – encolhido em sua cadeira, pernas e braços cruzados, o corpo magro e a voz baixa que soa quase sempre como uma súplica – parece uma mocinha feiosa. Falou de Praga, da Rússia, de Paris, sempre com frases bem longas, ditas baixinho.
Rilke não gosta de ir a Praga. Disse que, para ele, ainda existe lá muito de sua infância bastante confusa, na qual o caráter misterioso dos grandes palácios, das princesas velhas e estranhas ou das jovens condessas […] era ainda mais intensificado pelo fato de, naquela cidade, a população mais pobre falar, em sua maioria, uma língua que ele não entendia nem lhe era permitido entender. Na casa de seus pais, a criadagem também era tcheca, mas, tanto quanto possível, isso era ignorado. As crianças só tinham permissão para falar as pouquíssimas palavras necessárias ao entendimento. E, no entanto, disse, já naquela época ele tinha uma profunda simpatia, embora semi-inconsciente, pelas línguas eslavas. Ele só adquiriu a consciência clara dessa simpatia quando certa vez, bem mais tarde, acompanhou amigos até Moscou.
“Quando, pela manhã, acordei em um grande hotel de Moscou, senti de repente: sim, esta é minha terra! Sempre havia me sentido desterrado e nunca acreditei muito que encontraria a minha terra em alguma parte. Mas, ali, de súbito, tudo se encaixou. Esse sentimento pode ter sido intensificado pelo fato de minha janela ficar defronte da entrada do Kremlin, bem diante de uma capelinha cujo interior se podia ver da janela. Tudo nela era prateado, com imagens prateadas de santos, e diante delas chamas eternas que ardiam dia e noite. A todo momento chegavam peregrinos e se ajoelhavam ali, e as carruagens que passavam correndo pela praça sempre se detinham por um instante – então, um cavalheiro ou algum alto oficial descia, fazia o sinal da cruz, e a viagem prosseguia a todo galope. Havia ali uma tal intersecção do mundo antigo e do moderno, do místico e da vida numa cidade de negócios, que aquilo me comoveu profundamente.” […]
Perguntei a Rilke sobre Paris, sobre a relação entre sua forte ligação com Paris e seu amor pela Rússia. “Sim, aí é outra coisa, bem diferente. Para mim, Paris é uma escola. Lá, aprendo muitíssimo. Meu ponto de partida foi a natureza e sempre senti as coisas muito profundamente, quase até em demasia. Acontece que eu me interessava menos pelas pessoas: elas me pareciam confusas demais interiormente. Em Paris, porém, é como se cada um tivesse uma voz claramente reconhecível, uma voz que expressa seu interior. As pessoas lá são como passarinhos – a gente ouve e diz: Ah, esse é o canto de tal pássaro, e o que ele quer é isto; e aquele é o canto de outro pássaro, e o que ele quer é aquilo.”
1908
29 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA, LONDRES_Bernard Shaw[10] e sua mulher […] vieram tomar café da manhã comigo no [hotel] Savoy. Shaw me contou de suas negociações com o Burgtheater de Viena: “Todo mundo me disse que seria dificílimo lidar com eles. Mas eu os tratei como se deve. Quando me escreveram, disseram que o que eu havia pedido era impossível, que eu não sabia contra o que estava indo – contra as regras estabelecidas pelo imperador! [Francisco José I.] Respondi que o imperador era só o imperador austríaco, ao passo que imperador mesmo era eu, o imperador do teatro europeu, e que, portanto, aquelas regras não significavam nada para mim. Se Viena queria fazer papel ridículo, como a única capital europeia a não encenar minhas peças, pouco me importava. Mas, se queriam encená-las, iam ter de aceitar minhas condições. E aceitaram.”
Disse-lhe que lamentava o fato de ele escrever tão pouco, de ter se tornado agitador em tempo integral. Shaw: “Bom, eu acho ótimo me afastar de meu escritório por algum tempo. Temos homens demais que só sabem o que está escrito em seus livros. E, além disso, de vez em quando consigo escrever um pedaço de peça na cabeça mesmo.”
Mais tarde, ele falou de socialismo, “coisa, você sabe, da mais alta cúpula do Partido Conservador”. “Se tivéssemos uma aristocracia que entendesse do seu metiê, não iríamos querer socialismo. Ela saberia como dar conforto às classes trabalhadoras, e seria o fim do socialismo. Eu mesmo já vi isso: toda vez que há um aumento dos salários e o povo fica contente, há também uma queda brusca da agitação. Mas nossa aristocracia é burra demais. Aí, a única alternativa é o socialismo. O que nós queremos forçar agora é a revolta das classes médias contra as classes altas. Até agora, a classe média vem tentando conter a classe trabalhadora mediante o corte de gastos do governo; queremos fazer com que mudem de direção, mostrar que não é do seu interesse cortar gastos, e sim conseguir o dinheiro dos muito ricos. É por isso que queremos um imposto progressivo sobre a renda. Quando conseguirmos isso, aí o socialismo virá.”
8 DE FEVEREIRO, SÁBADO, PARIS_Jantei na casa de Vollard. […] Estavam Bonnard, o pintor [Pierre] Laprade, Vollard e uma variada mistura de negros. Uma senhora à minha esquerda falava do Haiti. Disse a ela que devia ser um lugar muito bonito. “Depende do que o senhor quer dizer com isso”, respondeu ela: a cidade, a arquitetura e as construções não eram bonitas. Mas a “sociedade” era encantadora: “Jovens de bem, instruídos, amáveis, mulheres charmosas.”
Disse-lhe que os Schwerin, por exemplo, haviam estado lá, e que eu também os conhecia. E ela: não, não havia se referido aos diplomatas, estes eram inconvenientes; tinha se referido à sociedade local, aos negros. Seu sogro, [Lysius] Salomon, ex-presidente do Haiti, tinha inclusive sofrido muito com os diplomatas brancos. E, no entanto, praticara a justiça, sempre governara sua gente o melhor que podia e de forma conscienciosa; apenas em um único caso de necessidade extrema, e em decorrência de um veredicto mandara matar. […]
Mostraram-se as pinturas mais recentes de Picasso. “Os artistas jovens”, disse Vollard a título de explicação, “estão retornando à arte negra.” Eram cabeças marrons, amarelas e pretas, de tamanho maior que o natural, naïf à moda negra, compostas de largas superfícies angulosas, como peças de um parquê. As mulheres riram. Bonnard olhou com atenção para as pinturas e comentou comigo: “Isso vai permanecer como um documento de nossa corrupção artística. Que um homem que possui todas as habilidades, que conhece toda a gama de cores, tenha sentido a necessidade de retornar a isto. Claro que ele acredita ter encontrado forças nessas coisas completamente primitivas.” […]
Ao lado dos Picassos, Vollard colocou um dos primeiros autorretratos de Van Gogh. Quando ele se foi, Bonnard me disse: “Depois de ver esse retrato de Van Gogh, tão borrado, tão sem caráter, o Picasso até me parece melhor.” Eu disse que apenas o Cézanne, mais atrás (um grupo de homens nus), se sustentava. Bonnard: “Sim, porque Cézanne inscreve os volumes e as formas de um jeito legível. Essa legibilidade é que é a qualidade primeira de uma obra de arte, e é isso que Picasso ainda busca.”
25 DE MARÇO, QUARTA-FEIRA, BERLIM_No jantar de inauguração do aeroclube, sentei-me defronte de Kehler.[11] Ele disse que queria ensinar os jovens da Escola Técnica Superior a voar. Vai mandar trazer uma máquina de Paris. Quer deixar de fora os professionals. Um homem capaz, mas evidentemente de visão algo estreita, que ainda concebe a coisa toda como um “esporte”. Lyncker, que tratou com os Wright,[12] os considera gente séria e direita. Só não comprou deles o aparelho porque, disse, não pode comprar algo no escuro para o governo. Depois do jantar, fiz-me apresentar a Zeppelin.[13] Ele parece um nobre e bon vivant – vermelho, redondo e bem-posto.
24 DE OUTUBRO, SÁBADO, LE MANS–AUVOURS_À tarde, fui para Auvours. Muitos automóveis, ciclistas e carros no caminho, já que uma tentativa foi anunciada para hoje à tarde no aeroclube em Mans. Wright voou três vezes. O que me impressionou mais foram as curvas, majestáticas e graciosas. É como se voar não envolvesse perigo nenhum. Essa impressão de segurança, que não se tem, por exemplo, no automóvel, é notável. Um cachorro, trazido por camponeses, corria toda vez, latindo em fúria, atrás da máquina voadora; depois, de repente, se esquivava dela com o rabo entre as pernas.
1909
4 DE JUNHO, SEXTA-FEIRA, PARIS_Fui aos russos[14] no [teatro] Châtelet. Estreia de Cleópatra e As Sílfides [Chopin]. Nijinsky e Pavlova[15] juntos nas Sílfides, a encarnação de Eros e Psique. Dois seres bem jovens, maravilhosamente belos, leves e graciosos, bem distantes de toda e qualquer doçura, mas de uma graça encantadora. Nijinsky, másculo, mas belo como um deus grego. A Cleópatra, uma judia, Ida Rubinstein,[16] com uma peruca azul egípcia, um corpo magrinho de garoto, de um refinamento de movimentos só visto até hoje em representações do antigo Egito ou da velha China. Tudo somado, um balé russo que é uma das manifestações artísticas mais notáveis e valorosas do nosso tempo. Paixão e refinamento como nunca vemos juntos.
1910
21 DE FEVEREIRO, SEGUNDA-FEIRA, BERLIM_À tarde, fui com Hofmannsthal[17] à casa de Richard Strauss, onde tomei chá e Strauss tocou para nós trechos do segundo ato da ópera cômica [O Cavaleiro da Rosa]: a cena do duelo, a da carta e o final. A senhora Strauss[18] dançou e cantou a valsa erguendo bem alto as saias. Depois, fomos ver Elektra, regida pelo próprio Strauss e, em seguida, jantar no [hotel] Kaiserhof. A senhora Strauss, que, contrariamente a seu hábito, havia sido bastante amável durante o chá, teve então um de seus acessos de descortesia semi-histérica.
Enquanto eu contava a Strauss sobre o velho Frédéric [Delair, dono do restaurante La Tour d’Argent] em Paris, ela me interrompeu aos gritos: “Até você terminar de contar a história, ele já estará morto há muito tempo, há muito tempo! Mas também, quando alguém demora tanto assim para contar uma história tão insípida! Melhor observar aquele porco gordo ali…” Todos olharam espantados para ela. “O porcão, ora, aquele oficial gordo ali à mesa” (com o dedo, ela apontou para um tenente bastante corpulento sentado à mesa vizinha). “Mas o que foi? Eu só quero flertar um pouco com o porco gordo ali (ela olhava fixo para ele).” “Estão vendo? Agora o porcão me lança olhares apaixonados. Acho mesmo que vai vir até aqui e se sentar à nossa mesa.”
Strauss alternava palidez e rubor, mas não disse nada. Conta-se que, certa vez, ao repreendê-la em virtude de cena semelhante, ela gritou para ele diante de todos os presentes: “Mais uma palavra, Richard, e eu vou à Friedrichstraße e pego o primeiro que aparecer.”
1911
3 DE JANEIRO, TERÇA-FEIRA, LONDRES_Depois do café da manhã, fui a Whitechapel, onde na Sidney Street dois ou três anarquistas haviam sido sitiados em uma casa por 1 500 policiais, pelas Guardas Escocesas e pela artilharia. Algumas centenas de milhares de espectadores espremiam-se nas ruas e praças próximas. Telhados, janelas e mesmo as árvores das praças fervilhavam de gente. Toda essa massa humana absolutamente tranquila, assistindo àquilo como no teatro, enquanto, na casa, as duas pessoas eram alvejadas e, por fim, queimadas. Mesmo o fato de, eventualmente, alguém na multidão levar uma bala perdida não os fez perder a calma. Psicologia de massas.
8 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA, WEIMAR_Fui a Weimar tomar café da manhã com a senhora Förster,[19] a fim de discutir o monumento a Nietzsche. Dehmel[20] se recusa a participar de um comitê na companhia de Georg Brandes,[21] em razão dos ataques de Brandes à Alemanha. Contrariamente a Van de Velde,[22] dei meu apoio a Dehmel. Van de Velde fez duas sugestões distintas para o monumento: ou a remodelação do Arquivo [Nietzsche], com a construção de um hall de entrada que abrigaria o monumento, ou fazer o monumento do lado de fora, ao ar livre. Ele dá preferência à primeira opção; a senhora Förster e eu (em parte por piedade) preferimos a segunda. E essa segunda foi a escolhida. Para não juntar Maillol e Klinger,[23] sugeri que o monumento fosse construído sob a forma de um templo, diante do qual se ergueria a estátua (ou as estátuas) de Maillol, ao passo que o interior abrigaria uma coluna com o busto de Nietzsche, de Klinger, e as paredes alternariam relevos de Klinger e placas de Gill[24] com inscrições tiradas de citações de Nietzsche. […]
Os seguintes princípios foram estabelecidos para a arrecadação do dinheiro: 1) subscrições, buscando-se em primeiro lugar certa quantidade de apoiadores dispostos a pagar mil marcos; 2) apresentações teatrais, concertos e palestras […]; 3) publicação de edições fac-similares de manuscritos de Nietzsche.
22 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA, BERLIM_Café da manhã com Rathenau.[25] Segundo ele, a Inglaterra não teria mais condições de concorrer com a Alemanha. O perigo estaria, para nós, nos Estados Unidos. Em relação a eles, estaríamos na posição do pequeno fabricante obrigado a comprar matéria-prima de seu grande concorrente. Nossas colônias só poderiam nos fornecer uma parte minúscula dessa nossa necessidade. Ele afirma que só conseguimos nos manter até aqui por causa de nosso material humano, nosso idealismo, nossa disciplina, nossa, sim, submissão servil e, sobretudo, a nossa ciência pura.
Mas os americanos vão nos alcançar, disse. Surpreende-o cada vez mais nos tratados norte-americanos constatar o quanto se pesquisa por lá “sem um propósito definido”. Por aqui, ao contrário, os grandes eruditos estão em extinção. Na geração mais nova, tudo que temos no campo da física, por exemplo, seria [Max] Planck, que estabeleceu a lei da absorção de energia pelos átomos, uma lei que, de acordo com Rathenau, seria de importância tão fundamental como a lei da gravidade de Newton. No geral, porém, essa atividade científica “sem propósito” estaria diminuindo entre nós. Se os Estados Unidos nos ultrapassarem nisso também, disse, estaremos acabados.
Ele tampouco vê de que forma se poderia impedir que os Estados Unidos ultrapassem economicamente a Alemanha nos próximos 100 anos, a não ser que uma grande mudança política (mas qual?) possa impedi-lo. E disse ainda que o mal essencial de nossa vida pública seria o medo da social-democracia. O imperador [Guilherme II] teria infectado todos os círculos dirigentes e todos os pequenos príncipes com esse medo. Daí farejarem socialistas por toda parte, inclusive na arte e na literatura.
14 DE MAIO, DOMINGO, ESSEN_Café da manhã com os Bohlen[26] na colina. A casa é bastante pomposa, com salões portentosos, desenhados ainda pelo velho Krupp – claramente segundo uma escala à qual ele havia se acostumado nos galpões de máquinas de sua fábrica. A despeito do gosto horroroso nos quadros e na mobília, quase todos oriundos da década de 1870 ou presentes do imperador, a impressão geral é imponente e, em suas dimensões, lembra palazzi italianos. Bohlen, que eu não via fazia dez anos, recebeu-me com aparente grande alegria. Sua mulher é o que os ingleses chamam de plain, mas tem belos olhos castanhos suaves. Os dois se esforçam ao máximo para parecer simpáticos e modestos, o que não é muito fácil quando se tem uma renda que, com certeza, ultrapassa em muito os 50 milhões de marcos.
O exército que trabalha na casa é correspondente a suas dimensões. Dois milhões e meio de marcos são necessários anualmente para sua manutenção. Não obstante, o café da manhã foi bem modesto, quase ruim, à exceção dos morangos e de uma verdadeira montanha de orquídeas maravilhosas erguendo-se sobre a mesa. […] Conversei com Bohlen sobre sua posição, que ele busca apresentar como inteiramente modesta. Nem tudo é tão difícil ou grandioso como se imagina, disse-me. Tudo que ele precisa fazer é, vez por outra, intervir aqui e ali. De modo geral, afirmou, a coisa anda sozinha. Novas diretrizes jamais são determinadas de supetão; tudo é planejado com antecedência, e para isso ele tem diretores e técnicos. A impressão que ele passa é de absoluta competência e simpatia.
Perguntei-lhe, a seguir, se queria integrar o comitê do monumento a Nietzsche. Ele me disse que não podia fazê-lo, uma vez que, por princípio, não participava de comitês e tinha mesmo acabado de recusar participação no comitê do monumento a [Otto von] Bismarck, mas que a ideia de um monumento a Nietzsche lhe interessava muito, de modo que, em tudo o mais, eu podia contar com seu apoio. […]
À tarde, fui a Margarethenhöhe, a nova cidade que os Krupp fundaram dentro do município de Essen. Acima de tudo, surpreende e encanta ver aqui, por toda parte, os progressos que nossa arquitetura fez nos últimos dez anos. […] As salas para as crianças brincarem e o salão das mulheres são tão bonitos como qualquer coisa que eu já tenha visto na Inglaterra. O contraste entre esse gosto refinado e alegre e a opressiva falta de gosto dos Krupp, mesmo em sua própria casa, é deveras notável. […] Bohlen me disse que a intenção havia sido criar coisas bonitas com meios simples e baratos, a fim de que as pessoas aprendessem a decorar suas próprias casas de forma agradável e com pouco dinheiro; o propósito seria, pois, educativo. […] Pensei comigo que quem mais precisaria desse tipo de educação para o bom gosto seriam os próprios Bohlen.
23 DE MAIO, TERÇA-FEIRA, PARIS_Meu aniversário. Café da manhã no bulevar Montmorency. Depois, fui à Villa Saïd, ao encontro de Tata Golubeff,[27] que mora numa casinha bem pequena. Lá, encontrei D’Annunzio, um marquês italiano. Quando cheguei, ela cantava uma canção de Weingartner[28] com uma voz que, sem nenhuma bajulação, comparei a uma bela fruta madura – o som cheio, doce e suculento. Depois, ela perguntou a D’Annunzio se ele gostava de música. D’Annunzio: “Creio que sim. Não fiz outra coisa senão música em toda a minha vida! Foi por isso mesmo que me decidi a escrever uma peça em francês [O Martírio de São Sebastião, com música de Claude Debussy], já que nenhuma tradução poderia fazer justiça a meus esforços.”
Ele diz qué e né, em vez de que e ne. Seu terno também é italiano. Calça cinza-clara de verão, como aquelas que vemos nos bazares de Florença ou, aos domingos, nos caixeiros-viajantes italianos; botas de verniz compradas prontas; um casaco com galões um tanto gasto e uma gravata de um lilás-claro – o conjunto ao estilo de um Don Juan de café decadente de uma cidade média italiana, Bolonha ou Pisa. A cabeça calva e o rosto amarelo, enrugado, com a barbicha loira grisalha, completam a impressão de decrepitude; e, no entanto, contrastam com os olhos espertos, ora espirituosos, ora de uma insensibilidade cruel.
De todo modo, é grande a distância que o separa da radiante, bela e aristocrática Golubeff. Também a casinha e o salão são embaraçosamente déclassés. Móveis alugados às pressas, peças que não combinam umas com as outras: um sofá verde de pelúcia, cômodas Luís XVI, uma mesa de mogno em mau estado, sem tapete etc. O único luxo foram os morangos enormes e reluzentes servidos com o chá. Depois, fiquei sozinho com Tata, que me falou de D’Annunzio com fervor. Ele tem de ser um grande artista (assim demandam todos os instintos dela). “É o maior artista vivo, e é por isso que é preciso, de fato, fazer alguma coisa por ele.”
24 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_Café da manhã com Bonnard. Contei a ele sobre nosso Projeto Nietzsche e pedi que entrasse para o comitê. Não me deu uma resposta definitiva, mas a tendência foi a de recusar. “É que, em certo sentido, me oponho a Nietzsche; não a suas ideias, mas à pessoa dele. Tenho um pouco de medo dessas pessoas que são só pensamento. O que me parece é que, um dia, vão acabar, elas e seus pensamentos, sendo devorados pela vida. […] Para mim, pensar é parte da vida, e não algo que paira acima dela.”
Do encontro com Bonnard, fui até Tata Golubeff, a fim de levá-la até Maillol, em Marly [nos arredores de Paris]. […] Enquanto esperava, abri ao acaso um livro na dedicatória que D’Annunzio escrevera para ela: À Nathalia née ivre [Para Nathalia, nascida bêbada]. Ela apareceu logo em seguida, num longo casaco cinza de seda, bem magra, parecendo uma amazona, com uma espécie de capacete adornado por um penacho na cabeça.
Maillol nos mostrou suas coisas à luz clara do sol. “Não tenho medo do sol porque não busco sombras, luzes, semitons, e sim as formas. É por isso que minha escultura resiste ao sol.” […] Diante de Flora [uma escultura], Golubeff decidiu que queria servir de modelo para Maillol, de preferência para a estátua de uma jovem arqueira. A primeira sessão haveria de ter lugar já no sábado. Mas, na viagem de volta a Paris, ela começou a ter dúvidas sobre se D’Annunzio permitiria que ela o fizesse. Eu disse que não tinha ideia de quão antiquadas eram as opiniões dele sobre a posição da mulher. Numa conversa no ano passado, ele teria se manifestado da seguinte forma em relação a Tata: “Minha amante, eu a quero como uma escrava antiga, de cabeça baixa.” Ao que Tata, meio horrorizada, meio rindo, disse: “Pensem bem. Eu como uma escrava de cabeça baixa – eu! Ora, se não é ridículo. Ele quer uma odalisca. Mas eu não posso ser uma odalisca. É por isso que quero que ele conheça a Alemanha: para alargar um pouco suas ideias.”
16 DE JUNHO, SEXTA-FEIRA, PARIS_Café da manhã com Diaghilev, que trouxe Nijinsky com ele. Fiquei surpreso ao ver como Nijinsky é baixinho, quase uma cabeça mais baixo que eu. No palco, ele parece alto. O rosto é estreito e tem um quê de mongol; os olhos, oblíquos, mas bem grandes e de um profundo castanho italiano. Ele fala bem pouco francês, de modo que a conversa foi em grande parte mediada por Diaghilev, com respostas sempre bastante modestas e reservadas de Nijinsky, um jeito que me lembrou o dos japoneses. Expliquei a Diaghilev nosso plano para o monumento a Nietzsche e pedi a ele que perguntasse a Nijinsky se ele aceitaria servir de modelo a Maillol para a figura de Apolo. Ele aceitou e prometeu se organizar para, mais adiante, dispor de uma data. […]
À tarde, fui a Marly, onde Brooks está montando minha máquina de fazer papel. Maillol criou problemas em relação a Nijinsky. “Você já o viu nu? Ele não é redondo? O que é bonito para os outros não costuma ser bonito para o artista que tem uma ideia na cabeça. É necessário que o modelo responda à ideia que o artista quer executar.” Enquanto conversávamos, chegou o escriturário de um banco em busca da assinatura de Maillol para uma pequena especulação com ações de companhias ferroviárias norte-americanas. Divertido o contraste entre Maillol e manobras na Bolsa de Valores.
17 DE JUNHO, SÁBADO_À noite, fui ver os russos. No palco, no intervalo, apresentei Maillol a Nijinsky. Maillol ficou entusiasmadíssimo com ele: “É o próprio Eros. Antes, você se perguntava de onde os gregos tinham tirado aquilo. Agora, você mesmo vê: foi de jovens como ele. É tão perfeito que é quase bonito demais.” […] Na saída do teatro, precisei, a bengaladas, defender meu carro de um apache [vigarista] que havia tomado posse dele e não queria mais descer. Madame Maillol gritou e ameaçou desmaiar. Deixei-a no hotel e, depois, fui com Maillol e Rilke até o [restaurante] Larue.
9 DE AGOSTO, QUARTA-FEIRA_Calor de 37,7ºC à sombra. Fui buscar Nijinsky e Diaghilev para levá-los a Marly. Diaghilev chegou atrasado de volta ao hotel, e Nijinsky ainda precisava tomar café da manhã, e o fez bem devagar. A cada pratinho de hors d’oeuvre, perguntava a Diaghilev se ele achava que aquela salada ou aquele peixe seria do agrado dele, Nijinsky, o que sempre ensejava demoradas dúvidas e hesitações. Conhecendo-o melhor, a impressão que se tem dele é a de uma criança mimada e mal-educada. Por outro lado, entrega-se com paixão à estátua de Maillol. Diaghilev conta que, ontem à noite, Nijinsky passou mais de uma hora experimentando posições e refletindo sobre elas, a fim de posar corretamente como jeune héros.
Maillol o recebeu com sua descontraída simpatia. Muito modesto, Nijinsky circulou por ali, observando as estátuas e fazendo, em polonês, comentários monossilábicos a Diaghilev, que expressavam clara admiração. Em um clima de leve embaraço, decidiu-se então que Nijinsky deveria se despir, e que Diaghilev e eu tínhamos que deixá-lo a sós com Maillol no ateliê. Quando voltamos, depois de uma hora, ele e Maillol estavam sentados no banco defronte do ateliê, examinando esboços em papel. Maillol havia feito dois desenhos que tinham, de fato, algo de heroico. Disse: “Ele tem um corpo soberbo; pode-se fazer o que se quiser com ele.” Diaghilev perguntou se as posições ensaiadas por Nijinsky tinham sido úteis a Maillol. Maillol: “Não é necessário procurar uma pose. Ele é um deus. É preciso manter tudo muito simples.”
29 DE SETEMBRO, SEXTA-FEIRA_Rilke telefonou de manhã (Como é que ele soube que estou aqui?), perguntando se podia me fazer uma visita. Fui até ele no Sacré Coeur [Hôtel Biron], onde ainda tem um apartamento, mas não mora nele, porque o zelador “pediu demais” para levar suas malas lá para cima; por isso, achou mais em conta hospedar-se num hotel pequeno. Em Paris, está à espera da princesa Taxis, que o apanhará aqui para levá-lo numa excursão de automóvel através da França e até Duíno,[29] onde ele pretende passar o inverno. Disse-me que anseia literalmente por solidão, solidão de fato, que espera encontrar em Duíno. […]
Perguntei-lhe se acreditava que em Duíno poderia escrever. Rilke: no momento, não estava se sentindo muito produtivo, talvez se dedicasse a traduzir uma coisa ou outra, como, por exemplo, a carta de Petrarca[30] em que ele descreve sua escalada do monte Ventoux. […] Mas, corando, e ao final da conversa, perguntou se podia responder à minha oferta de lhe emprestar algum dinheiro. Perguntei-lhe quanto. E ele, bastante modesto, pediu 600 francos.
12 DE OUTUBRO, QUINTA-FEIRA, SAINTE HONORINE_Depois de me anunciar ontem em telegrama que me enviaria mensagem importante, recebi hoje de manhã uma carta de Rilke: “Prezado conde Kessler, un supplément d’amitié: o senhor me faria o grande favor de arredondar para cima a soma que recentemente me cedeu, de modo que eu fique a lhe dever mil francos? E o faria de tal forma que eu receba os restantes 400 francos no sábado, dia 14, no final da tarde, em, digamos, Avignon? A questão é a seguinte: a princesa Taxis chegou de viagem ontem, mas, devido a circunstâncias inesperadas, ainda precisa ir a Viena. Eu, contudo, não resisti à tentação e viajo sozinho de carro até Duíno. Como, porém, esperava viajar como convidado, não contei com toda sorte de despesas adicionais agora surgidas, razão pela qual peço ao senhor essa complementação de sua ajuda. São tempos inquietantes, mas, por dias melhores e piores, eles hão de conduzir, espero, a alguma ordem e a algum futuro.”
É típico de Rilke que ele tenha um automóvel, mas não tenha dinheiro nenhum, assim como tem um apartamento, mas não tem dinheiro para levar sua mala para cima.
27 DE OUTUBRO, SEXTA-FEIRA, LONDRES_Vi Sarah Bernhardt[31] no último ato de A Dama das Camélias no Coliseum. Ela é espantosa. Baseado em sua aparência, seria possível tomá-la por uma mulher de 30 ou 35 anos, e sua voz conserva a velha magia. O rosto engordou um pouco, tornando-se, por isso, um pouco menos expressivo, mas, com sua voz, ela fez com que as lágrimas me escorressem pelo rosto.
9 DE DEZEMBRO, SÁBADO, BERLIM_Café da manhã com Heymel.[32] Conversa sobre a dificuldade de atingir a grande massa do público: os pequenos advogados, os pequenos médicos, os funcionários públicos médios. Aí reside o poder hostil à cultura, a massa de pessoas que “não têm tempo” para ela. E, no entanto, argumentou Heymel, nada se sedimenta em profundidade sem essa camada. Toda e qualquer transformação de nossa cultura depende da capacidade de influenciá-la e conquistá-la. […] Acima de tudo, disse ele, não se pode oferecer a pessoas que “não têm tempo” nada de muito complicado; nada, por exemplo, que as obrigue a refletir e que, portanto, as ameace com uma perda de tempo indesejada. […] Eu próprio, acredita Heymel, teria exposto meu projeto do monumento a Nietzsche de forma muito complicada. Não deveria falar em Klinger, Maillol, Van de Velde, mas apenas em uma praça de esportes e em um salão em homenagem a Nietzsche. O cérebro médio, diz ele, não consegue apreender mais que duas ideias de uma vez.
1912
16 DE JANEIRO, TERÇA-FEIRA, PARIS_À noite, no Moulin Rouge, um espetáculo tolo. […] Numa das cenas, a Alemanha, representada por um ator cômico, persegue um jovem ginasial francês (interpretado por uma atriz pequena e bonita) com carinho indecente. O francesinho responde com uma bofetada. Um resumo da política de Sua Majestade [Guilherme II]. O maior sucesso fez uma cena em que Napoleão (representado pela mesma atriz que fez o estudante) leva as bandeiras dos povos derrotados, Prússia e Áustria, para o Palácio dos Inválidos. A única história ainda viva na França, no meio do povo, é a de Napoleão e da revolução.
26 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA_Fui com Colin a Marly para ver a máquina de fazer papel. Colin tomou café da manhã na hospedaria local e ouviu como as pessoas caracterizam nosso empreendimento como coisa suspeita, subventionnée par les allemands, provavelmente espionagem.
1º DE FEVEREIRO, QUINTA-FEIRA_Compromisso no salão de dança Pigall’s, em Montmartre, com Craig.[33] Ele trouxe consigo o místico Crowley,[34] um boêmio inglês gordo e vestido de forma repugnante, sem colarinho. Crowley parecia mal-humorado e ficou em silêncio, a não ser pelo fato de, tarde da noite, ter sugerido uma orgia com uma nova bebida inebriante, capaz de produzir visões coloridas.
Por volta das duas e meia, me livrei de Crowley e de seu séquito e fui com Craig ao salão de dança em frente, o Monico. Na mesa ao lado, estavam aspirantes da Escola Naval de Brest da Marinha francesa sentados com uma moreninha de olhos castanhos e vestido preto e uma negra com uma touca salpicada de frutinhas vermelhas. A moreninha dançava feito louca, evidentemente algo embriagada. De repente, veio para cima de Craig e disse: “O senhor parece Alfred de Musset. Claro que não o conheci, não sou tão velha assim, mas vi fotos dele na imprensa. Foi um grande poeta…” Nisso, um dos aspirantes polidamente interveio, justificando-se: “Desculpe a moça, monsieur. É uma garota que trouxemos de Brest e é a primeira vez que ela vem a Montmartre. Por isso, acha que é como em Brest, que todo mundo se conhece, que se pode falar com todo mundo. Venha, minha querida, venha Lou, minha pequena, você está incomodando o monsieur.”
Mas a mocinha se agarrou à mesa: “Não, não, quero dar um beijo nele. Com certeza, é um grande homem. Não é verdade, monsieur”, perguntou ela, voltando-se para mim, “que seu amigo é um grande homem, um pintor ou um grande poeta? Quero beijar as mãos de monsieur.” Craig, que tem mãos muito feias, mãos de um criminoso sexual, tentou escondê-las embaixo da mesa. Mas a garota se ajoelhou, engatinhou para debaixo da mesa, tomou as mãos dele e as beijou, ou antes as mordeu com fervor. Então, os outros aspirantes se aproximaram, ergueram a mocinha e a levaram embora à força. Mas, ainda nos braços de seu amante, ela se virou e gritou: “Diga ao monsieur que logo se vê que ele é um grande homem, que deve ser muito amado pelas mulheres e muito mau com elas.”
Craig, de início embaraçado com a ovação da mocinha, ficou por fim muito comovido e apaixonadíssimo por ela. Mandou perguntar por todo o estabelecimento pelo nome e pelo endereço da moça, mas ninguém a conhecia. Não lhe teria desagradado levá-la consigo para casa.
6 DE MARÇO, QUARTA-FEIRA, TOULOUSE_Artigo de Berrichon,[35] “Rimbaud ferido”, em que ele procura provar a pureza do relacionamento de Rimbaud com Verlaine (Mercure, 1º de fevereiro), e réplica irônica de Rémy de Gourmont[36] (Mercure, 1º de março). É provável que ambos tenham razão. Também a mim, à época do processo contra [Oscar] Wilde, Verlaine declarou enfaticamente nunca ter tido relações sexuais com Rimbaud. Por outro lado, tudo demonstra que ele teve uma grande paixão sexual por Rimbaud. Quando, porém, se considera que Verlaine tinha uma vontade bastante fraca, ao passo que a de Rimbaud era extraordinariamente forte, o enigma se resolve com relativa facilidade.
Verlaine terá, de fato e de forma continuada, cortejado Rimbaud sexualmente, sempre na esperança de ser atendido, mas também constantemente temeroso de Rimbaud, até que este o privou de toda e qualquer esperança ao decidir ir embora, motivo pelo qual, em completo desespero, Verlaine atirou em Rimbaud. Assim, o relacionamento dos dois permaneceu, de fato, casto, mas muito contra a vontade de Verlaine, que, dia e noite ao lado de Rimbaud, foi consumido por sua paixão, ao passo que este último, na impossibilidade de demover Verlaine do desejo carnal, reconheceu a nulidade de seus próprios ideais sobre-humanos.
15 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA, PARIS_À noite, jantei com Wilma[37] na casa dos Hasperg [Edith e Clement von Hasperg, sócio do pai de Kessler]. A caminho de lá, a notícia de que, ontem, o navio gigante, o Titanic, bateu num iceberg, mas todos os passageiros foram salvos. Três das amigas mais íntimas de Edith estão no navio. Fomos juntos ao [teatro] Olympia.
16 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA_Com o Titanic afundaram, ao que parece, cerca de 1 500 pessoas. Em algum lugar de um jornal lê-se a manifestação de uma senhora cujo pai estava a bordo, mas que não se deixou inquietar pela notícia do acidente porque the captain can press a button and save everybody.
6 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA, PARIS_Logo de manhã, ainda na cama, esbocei um argumento para o balé [A lenda de José].[38] Escolhi como tema José na casa de Putifar, porque ele enseja o contraste de figurinos orientais e venezianos: venezianos para os egípcios e orientais para os judeus. Às 11 horas, de posse do esboço, fui até Hofmannsthal no Hôtel de Castiglione, levei-o comigo até as Tulherias e expus-lhe a ação e a duração de cada cena.
Hofmannsthal me disse que, ontem, ele e Diaghilev também haviam pensado um pouco sobre o José, mas que tinham desistido da ideia, porque a aventura na casa de Putifar – que seria o episódio dramático mais forte na vida de José – acontece logo no início, e o restante de sua trajetória seria de natureza mais épica que dramática. Mas se, como eu havia feito, fosse dada posição central à história com a mulher de Putifar, a coisa toda assumiria, sim, um caráter dramático, bastava agora inventar um desfecho. Ponderei que, como, segundo a Bíblia, José é salvo da prisão por um milagre, seria talvez lícito pensar numa salvação milagrosa análoga ainda na casa de Putifar; dessa forma, ao menos permaneceríamos fiéis ao espírito da lenda. Poderíamos, por exemplo, libertar José por meio de um anjo, um arcanjo todo em ouro descendo numa nuvem branca. Sim, concordou Hofmannsthal, isso funcionaria; e a mulher de Putifar se suicidaria, em contraste com a bem-aventurança celestial de José; criados poderiam levá-la, morta, sob um manto preto, enquanto, do outro lado do palco, o arcanjo na nuvem branca conduziria José para a liberdade, e outros anjos, com palmas douradas, acenariam lá de cima, desde uma rósea alvorada emoldurada por colunas.
Decidimos relatar esse argumento de imediato a Diaghilev. Fui ao [hotel] Crillon anunciar nossa visita, enquanto Hofmannsthal foi buscar sua mulher. Diaghilev convidou-nos a ficar para o almoço e, durante a refeição, Hofmansthal e eu lhe relatamos a ação. Ele ficou muito espantado por já ter um balé pronto, menos de 24 horas depois do surgimento da ideia, mas achou-o excelente e aceitou montá-lo.
4 DE AGOSTO, DOMINGO, GARMISCH_Fui de Munique a Garmisch. Depois do desjejum, subi até a casa de Strauss. Ele me recebeu em seu gabinete de trabalho e foi logo tratando de negócios. […] Discutidos os negócios, passou-se a tratar de arte. Enfatizei que José era um sonhador; a atmosfera mágica (transitando para a milagrosa e, em parte, contrastando com esta) deveria envolver todo o desfecho [do balé], do momento da nudez de José em diante. Esse desnudamento de José deveria ser o ápice da obra, tanto para os olhos como para os ouvidos, produzindo o mais vigoroso efeito e uma reviravolta no ambiente. […] Discutimos o manuscrito em detalhes, do começo ao fim. Strauss ouviu com atenção, pouca coisa disse. Então, sentou-se ao piano e pôs-se a tocar o começo do balé: o salão de Putifar, a primeira dança das mulheres e motivos para as outras também. Gostei em especial do motivo esplendidamente pesado e sombrio que introduz a mulher de Putifar.
Na hora do chá, apareceu a senhora Strauss, extremamente amável e muito solícita comigo. Strauss me chamou de lado e disse que sua mulher gostaria muito de frequentar a “sociedade” berlinense. Já falara com um conselheiro do Ministério da Educação e Cultura para conseguir que ele a apresentasse às pessoas, e este telefonara para alguns generais e para famílias de conselheiros ministeriais. Mas a mulher gostaria muito de conhecer alguns tenentes também, oficiais mais jovens. É que ela própria era filha de general e estava acostumada ao contato com tais círculos. Prometi apresentá-la aos Harrach, aos Hindenburg e ao chanceler do Reich [Theobald von Bethmann-Hollweg]. Strauss chamou a mulher e contou a ela, com grande alegria, a promessa que eu havia feito. Ela agradeceu e disse que não queria estar sempre e somente entre judeus. Quando ouviu que eu era oficial da reserva dos Ulanos [unidade de cavalaria armada com lanças], ficou fora de si e quase me abraçou. Não media esforços para me agradar.
1913
24 DE FEVEREIRO, SEGUNDA-FEIRA, LONDRES_Levei [George Bernard] Shaw ao café da manhã na embaixada alemã. Vestindo um terno verde de verão e uma gravata cor de grama, ele inundou [o embaixador Karl Max] Lichnovsky de inteligência e perspicácia. “Escute aqui, o que você tem a fazer como embaixador da Alemanha em Londres é preparar uma nova tríplice aliança entre Alemanha, Inglaterra e França, e fazer disso a base para a paz mundial. É preciso dizer a outros países que, daqui por diante, a guerra será considerada uma espécie de inconveniente e que quem embarcar nela será advertido por essa tríplice aliança.”
O embaixador riu, e observei que tudo que queríamos era um entendimento com a França, o que parecia impossível, porque a França de hoje e mesmo a França de amanhã jamais reconheceriam a Paz de Frankfurt.[39] “Bom, então”, Shaw respondeu, “que se faça um acordo entre Inglaterra, Alemanha e França segundo o qual, se a Alemanha atacar a França, a Inglaterra apoiará a França, e se a França atacar a Alemanha, a Inglaterra estará do lado da Alemanha.”
Lichnovsky e eu objetamos que, na maioria dos casos, era difícil determinar, numa guerra moderna, quem havia sido o agressor. Shaw, contudo, insistiu em sua ideia dessa polícia tripartite e relatou o episódio de nosso manifesto anglo-germânico de 1906,[40] no qual, na declaração em inglês, ele acrescentara uma frase em favor da frota alemã. A seguir, em tom de forte menosprezo, falou de Grey [o ministro do Exterior britânico Edward Grey], a quem Lichnovsky elogiava como um estadista inteligente e de grande visão. Para Shaw, de estadista Grey só tinha o nariz grande, que nem era mérito próprio, mas uma conquista paulatina da família. “Se você quer continuar com Grey, a primeira coisa que precisa fazer é intimidá-lo. Ele próprio não é nada, apenas um depósito no qual cada embaixador lança sua opinião, e quem fala mais alto é sempre aquele que o impressiona mais.”
Karl Lichnovsky não pareceu nem um pouco convencido disso. Só enfatizava sem cessar que, agora, as relações entre Inglaterra e Alemanha eram excelentes. Depois, disse a mim que Shaw era extremamente perspicaz, mas, como político, estava claro que não devia ser levado a sério. Respondi-lhe que, por trás dos paradoxos de Shaw, havia sempre uma verdade em algum lugar.
26 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA_Simpático jantar nos Speyer. […] Um fenômeno foi a senhora West (Lady Randolph Churchill),[41] que deve ter cerca de 60 anos, mas está bem conservada. Morena, meio gordinha, olhos escuros penetrantes delineados em preto; vestia seda preta com duas plumas de garça nos cabelos e um colar de maravilhosos diamantes em torno do pescoço já flácido. Seu segundo marido é 25 anos mais jovem que ela e quer se separar, porque deseja ter filhos. A pobre mulher, em parte deusa, em parte já uma velha, inspira pena, mas também, ainda e sempre, uma espécie de admiração.
4 DE MARÇO, TERÇA-FEIRA_À noite, grande jantar na embaixada alemã: o rei [George V, da Inglaterra], a rainha [Mary], sir Edward Grey. Lichnovsky apresentou-me ao rei e [a embaixatriz] Mechtilde à rainha. Esta, vestindo um brocado de prata e com uma coroa de diamantes e grandes turquesas, estava relativamente bem. Enquanto ela fumava um cigarro após o jantar, conversou comigo por pelo menos vinte minutos, o que se deveu menos ao interesse de nossa conversa do que ao fato de não conseguirmos nos separar. Eu não podia deixá-la ali, sozinha, e ela, que é ao mesmo tempo extremamente tímida e muito cortês, não conseguia se desvencilhar da conversa. A cada trinta segundos, a conversa morria, e, qual um relógio parado, era preciso dar corda na velha dama, o que, de novo, só adiantava pelos trinta segundos seguintes. Depois de termos esgotado O Cavaleiro da Rosa e todo e qualquer tópico musical de conversação, Mechtilde Lichnovsky apiedou-se de nós e perguntou à rainha se ela não queria passar à sala vizinha e ouvir um pouco de música.
O rei é bem diferente, bem relaxado, bastante simples à maneira de um capitão de navio, sem nenhuma firula aristocrática: o burguês no trono, sem nenhum disfarce. […] Sua conversa jamais empaca; de sua boca flui ininterruptamente o bom senso feito água cristalina, mas sem um pingo de originalidade. Conversou comigo sobre museus e sobre corridas e apostas, sobre educação alemã e educação inglesa, sempre muito sensato, muito correto do ponto de vista humano, como quando justificou sua discordância com uma proibição das apostas na Inglaterra argumentando que seu povo, o inglês, trazia no sangue o gosto por elas e que de nada adiantava fazer leis contrárias à natureza do povo. Mas suas palavras não possuem brilho nenhum. Ele ganha as pessoas com gentileza e banalidade despretensiosas.
29 DE MAIO, QUINTA-FEIRA, PARIS_À noite, estreia da Sagração da Primavera. Coreografia e música inteiramente novas. O estilo de Nijinsky tão diferente do de Fokine[42] como a pintura de Gauguin o é da de… [Kessler escreveu Delacroix, mas riscou o nome]. Uma visão totalmente nova; de repente, nos deparamos com algo empolgante, jamais visto, convincente. Uma nova espécie de ferocidade, tanto na arte como na não arte; devastação de toda forma, novas formas emergem de repente do caos. O público, a casa mais esplêndida que já vi em Paris – aristocratas, diplomatas, demimonde –, esteve irrequieto desde o início. Ria, cochichava, fazia piadas, aqui e ali alguns se levantavam.
Stravinsky, sentado com a mulher bem atrás de nós, saiu correndo, como se possuído, depois de nem bem cinco minutos. Da galeria, uma voz poderosa gritou: “Vamos lá, suas putas do 16o (arrondissement, o bairro do mundo elegante), vão nos deixar em paz logo ou não?” […]
No mesmo instante, no camarote de Astruc,[43] D’Annunzio e Debussy começaram a brigar com os cavalheiros do camarote ao lado, gritando-lhes: “Corja de imbecis!” A barulheira, então, se alastrou. Astruc gritou: “Esperem o final! Vocês podem assoviar depois!” E, à guisa de resposta, da plateia veio a pergunta: “Quanto tempo falta?” Ao que Diaghilev replicou: “Cinco minutos.”
E sobrepujando esse barulho dos diabos, a tempestade contínua das risadas e dos ruídos hostis, enquanto a música tonitruava e, no palco, os dançarinos seguiam, imperturbados e zelosos, com sua dança pré-histórica. Ao final do espetáculo, mundo e demimonde se enfrentaram, antes que o aplauso frenético vencesse, de modo que Stravinsky e Nijinsky puderam se mostrar e se curvar repetidas vezes em agradecimento.
Fomos jantar no Larue. […] Por fim, lá pelas três da manhã, Diaghilev, Nijinsky, Bakst, Cocteau[44] e eu tomamos um táxi e fomos dar uma volta desvairada pela noite da cidade, como se extinta à luz do luar. Bakst brandia sua bengala com um lenço na ponta como se fosse uma bandeira; Cocteau e eu lá em cima, na capota do carro; Nijinsky, de fraque e cartola, rindo-se num silêncio satisfeito. O dia raiava quando essa turma enlouquecida e divertida me deixou em minha Tour d’Argent.[45]
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[1] O marchand francês Ambroise Vollard (1866–1939).
[2] O pintor e caricaturista Jean-Louis Forain (1852–1931), o pintor Pierre Bonnard (1867–1947) e o pintor José María Sert (1874–1945).
[3] O pintor Arthur Chaplin (1869–1935).
[4] O escritor irlandês Oscar Wilde (1854–1900) foi condenado em 1895 na Inglaterra por “indecência grave” (homossexualismo) e atentado ao pudor. Mudou-se para a França depois de cumprir pena de dois anos e morreu pobre no Hotel d’Alsace, em Paris.
[5] O escultor e pintor francês Aristide Maillol (1861–1944), amigo de Kessler, esculpiu Le Cycliste, hoje no Museu d’Orsay, tendo como modelo Gaston Colin, na época amante do conde.
[6] Kessler comprara este quadro de Renoir em 1896.
[7] Uma referência à Lei Ferry, de 1882, que tornara obrigatória na França a frequência ao ensino primário público e laico.
[8] Conceito do filósofo alemão Immanuel Kant (1724–1804) que, grosso modo, diferencia as coisas tais como projetadas pelos sentidos humanos de sua existência material.
[9] O poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875–1926), nascido em Praga, então parte do Império Austro-Húngaro, e a escultora Clara Westhoff (1878–1954). Rilke foi a Paris escrever um livro sobre Auguste Rodin (1840–1917), e trabalhou como secretário do escultor.
[10 ]O dramaturgo e ativista socialista irlandês George Bernard Shaw (1856–1950).
[11] Richard von Kehler, diretor de uma fábrica de dirigíveis.
[12] Os irmãos americanos Orville e Wilbur Wright, que haviam testado um avião mais pesado do que o ar em 1903.
[13] O conde Ferdinand von Zeppelin (1838–1917), inventor do dirigível de mesmo nome.
[14] Referência à companhia Ballets Russes, fundada e dirigida por Serguei Diaghilev (1872–1929).
[15] Os bailarinos russos Vaslav Nijinsky (1890–1950) e Anna Pavlova (1881–1931).
[16] A bailarina russa Ida Rubinstein (1885–1960).
[17] O dramaturgo austríaco Hugo von Hofmannsthal (1874–1929), com quem Kessler compôs o libreto de O Cavaleiro da Rosa para a ópera de Richard Strauss (1864–1949).
[18] A soprano alemã Pauline de Ahna (1863–1950), conhecida pelo temperamento irascível.
[19] A irmã de Friedrich Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche (1846–1935); o planejado monumento ao filósofo nunca chegou a ser construído.
[20] O poeta alemão Richard Dehmel (1863–1920).
[21] O crítico dinamarquês Georg Brandes (1842–1927).
[22] Henry van de Velde (1863–1957), arquiteto, designer e pintor belga art nouveau, dirigiu a Escola de Arte e Ofícios de Weimar.
[23] O escultor e pintor alemão Max Klinger (1857–1920).
[24] O tipógrafo e ilustrador britânico Arthur Eric Row-ton Gill (1882–1940).
[25] Industrial e político de origem judaica, Walther Rathenau (1867–1922) se tornaria ministro de Relações Exteriores da República de Weimar, tendo Kessler como conselheiro. Ele seria assassinado pela ultradireita.
[26] Gustav von Bohlen und Halbach (1870–1950), que se tornou proprietário da indústria pesada Krupp pelo casamento com Bertha Krupp, neta do fundador da companhia. Nas guerras mundiais, a empresa forneceria armas ao governo alemão; Von Bohlen seria acusado de utilizar trabalho escravo, mas escaparia do processo no Tribunal de Nuremberg por sua condição senil.
[27] A aristocrata russa Natasha, também chamada Natalie, Golubeff (1879–1941), que deixou o marido pelo escritor e poeta italiano Gabriele D’Annunzio (1863–1938). No final da Primeira Guerra, D’Annunzio lideraria um movimento ultranacionalista precursor do fascismo.
[28] O compositor e maestro austríaco Felix Weingartner (1863–1942).
[29] Rilke publicaria em 1923 as Elegias de Duíno, poemas que começou a escrever no castelo de Duíno, perto de Trieste, na costa do Adriático.
[30] O poeta italiano Francesco Petrarca (1304–74).
[31] A atriz dramática francesa Sarah Bernhardt (1844–1923), então com 67 anos.
[32] O escritor e editor alemão Alfred Heymel (1878–1914).
[33] Edward Gordon Craig (1872–1966), cenógrafo, diretor e ator inglês.
[34] O ocultista britânico Aleister Crowley (1875–1947).
[35] O poeta e ilustrador Paterne Berrichon (1855–1922), editor da obra do poeta Arthur Rimbaud (18 54–1891), que tivera um romance célebre com o também poeta Paul Verlaine (1844–1896).
[36] Rémy de Gourmont, poeta e dramaturgo (1858–1915).
[37] Wilhelmina, ou Wilma (1877–1963), é a irmã de Kessler.
[38] A pedido de Diaghilev, dos Ballets Russes, Kessler escreveu com Hofmannsthal o libreto do balé baseado na história de José, filho de Jacó e Raquel, narrada no Gênesis. José é vendido pelos irmãos como escravo aos ismaelitas que o revendem ao egípcio Putifar, capitão da guarda do faraó. Quando rejeita a corte da mulher de Putifar, José acaba na prisão. Strauss fez a música para o espetáculo, que estreou, em Paris, em maio de 1914, às vésperas do início da Primeira Guerra.
[39] O Tratado de Frankfurt pôs fim à Guerra Franco-Prussiana (1870–71) e levou à anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha.
[40] Manifesto em defesa da paz entre Alemanha e Inglaterra organizado por Kessler.
[41] A americana Jeanette (Jennie) Jerome (1854–1921), mãe do futuro premiê Winston Churchill e viúva do lorde Randolph Churchill. Teria sido amante do rei Eduardo VII e, na época, estava casada com o capitão George Cornwallis-West.
[42] Neste balé, Nijinsky fez a coreografia para a música do compositor russo Igor Stravinsky (1882–1971), no lugar de Michel Fokine (1880-1942), até então o principal coreógrafo dos Ballets Russes.
[43] O jornalista, empresário teatral e agitador cultural francês Gabriel Astruc (1864–1938).
[44] O cenógrafo e pintor russo Leon Bakst (1866–1924), colaborador dos Ballets Russes, e o cineasta, dramaturgo, ator e poeta francês Jean Cocteau (1889–1963).
[45] O diário de Harry Kessler, iniciado em 1880, prosseguiu até sua morte, na França, em 1937. Na Primeira Guerra, depois de lutar dois anos, passou a atuar na diplomacia. Na República de Weimar (1918–33), ficou conhecido como “o conde vermelho”, pelas posições pacifistas e próximas à social-democracia. Quando morreu, quase toda a fortuna herdada do pai banqueiro havia sido perdida com a Crise de 1929.
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