ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O ser e o lhufas
O clube para não fazer nada
André Czarnobai | Edição 55, Abril 2011
Por obra do artigo 59 do decreto-lei 3688, desde 3 de outubro de 1941 a vadiagem é contravenção penal no Brasil. Classificada como a prática de “entregar-se habitualmente à ociosidade”, o cidadão que a exerce recebe uma pena que oscila entre quinze e noventa dias de prisão. Isso significa que é perfeitamente legal prender um desocupado, um indolente, alguém que esteja na folgança. Ou seja, pense duas vezes antes de se justificar ao policial dizendo: “Eu não estava fazendo nada.”
O temível decreto 3688, no entanto, não aflige Marcelo Bohrer, que desde 2006 organiza encontros (ir)regulares onde ele e algumas dezenas de corajosos ocupam parques e outros logradouros públicos, belos e tranquilos, para se entregarem à perniciosa prática do nada. Bohrer é o fundador do Clube do Nadismo, organização que leva ao extremo os postulados do movimento internacional Slow: ele sugere que a melhor e mais simples maneira de erradicar o estresse e a ansiedade não é diminuir a velocidade, mas sim parar completamente.
A fagulha do movimento surgiu em 2005, quando, depois de vários anos trabalhando como designer, e se havendo periodicamente com níveis cada vez mais elevados de aflição, Bohrer sofreu aquilo que os psiquiatras chamam de síndrome de Burnout – quadro psicológico caracterizado pela exaustão prolongada e perda de interesse que, ironicamente, é bastante comum entre médicos. Depois de passar meses pesquisando os motivos que o levaram ao hospital, Bohrer chegou à mesma conclusão materializada no 3688: a civilização criminalizou o ócio.
“As pessoas não conseguem mais ficar sem fazer nada porque isso provoca um enorme sentimento de culpa”, disse. “A sociedade nos obriga a estar sempre em atividade, ligado, conectado. Ficar sem fazer nada é praticamente um pecado.”
Praticante de aikidô, a luta japonesa, há mais de uma década, Bohrer utilizou um de seus conceitos mais elementares, o de redirecionar a força do oponente em vez de combatê-la, para enfrentar a ansiedade: transformar o ato de não fazer lhufas em um compromisso, com data e hora marcada para acontecer. “Assim, a pessoa tem a sensação de que está fazendo alguma coisa, mesmo que essa coisa seja nada”, explicou.
Nos encontros do Clube, Bohrer escolhe um lugar calmo dentro de um parque e monta um cubo branco, de pano – símbolo e ícone do Nadismo –, para servir de referência. Em volta do cubo ele espalha uma dúzia de colchonetes, se deita e fica pelo menos 45 minutos sem fazer nada. Não vale dormir.
Por mais improvável que pareça, a fórmula deu bons resultados. Em cinco anos sem fazer nada, o Clube já promoveu mais de cinquenta eventos de pura vagabundagem, a maioria deles em locais sujeitos aos rigores da lei contra a vadiagem: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis. Em 2008, foram realizados os primeiros encontros internacionais, um deles em Londres – onde recebeu o apoio entusiasmado do jornalista Carl Honoré, um dos gurus do movimento Slow e autor do best-seller Devagar – e outro em Munique. No ano seguinte, o Nadismo gerou controvérsia no Central Park, em Nova York, já que os seguranças do parque exigiram a desmontagem do cubo antes do fim do encontro, apesar dos protestos dos participantes.
Para atender a uma demanda crescente de gente interessada em não fazer nada em mais lugares e com maior frequência, o Clube se viu obrigado a nomear embaixadores. Eles têm obrigações semelhantes às de Bohrer: divulgar o Nadismo ao organizar eventos regulares em sua própria cidade. Atualmente, o Clube conta com mais de 7 mil sócios. Destes, cerca de 1 500 estão em Porto Alegre – cidade natal do seu criador e berço do Nadismo.
Na bela tarde ensolarada de um sábado recente, na qual um outono precoce amenizava a temperatura, piauí enviou um repórter a um encontro de nadificadores de Porto Alegre. Apesar do clima perfeito, com céu azul e temperatura agradável, quase quinze minutos depois da hora marcada para o começo da atividade, o quórum era extremamente baixo. Na verdade, se não fosse o repórter não haveria quórum, uma vez que não apareceu mais ninguém na praça da Estação de Tratamento do DMAE para praticar o Nadismo.
“O que me deixa impressionado é que nenhum dos 1 500 sócios tenha conseguido separar uma hora do seu mês para não fazer nada”, comentou Bohrer, com uma voz calma e pausada, sorridente, sentado no meio do gramado na posição de lótus, sobre um de seus colchonetes, ao lado de seu cubo de pano.
Minutos antes, enquanto armava o cubo e espalhava os colchonetes pela grama, Bohrer explicou as diretrizes fundamentais do movimento por meio de uma parábola zen (a monja Coen Sensei, um dos nomes mais conhecidos do zen-budismo nacional, é entusiasta do Nadismo): dois monges fumantes foram a um novo mosteiro onde era rigorosamente proibido fumar. Todavia, a ânsia pelo tabagismo falou mais alto e eles se viram obrigados a interpelar o mestre, na tentativa de dissuadi-lo. O mestre concordou em ouvir seus argumentos, desde que os escutasse em separado. O primeiro pediu para fumar em seu tempo livre, depois de meditar – e não foi atendido. O segundo já saiu do encontro degustando um bom cigarrinho. Incrédulo, o primeiro foi perguntar ao segundo o que ele tinha feito para o mestre deixá-lo fumar, ao que ele teria respondido: “Eu perguntei se poderia meditar enquanto fumo.”
Em outras palavras, dessa vez do próprio Bohrer: “O ideal é que tu não faças nada de forma ativa, mas se tu quiser escutar música ou até mesmo fumar um cigarrinho durante a prática, eu não vou te impedir. Mas o ideal mesmo é que tu não faças nada, apenas deite na grama e sossegue.”
Após algumas últimas instruções, foi ele quem se deitou sobre um dos colchonetes e disse: “Uma das coisas que eu mais gosto é ouvir o barulho do vento batendo nas folhas daquelas paineiras.”
O repórter dedicou então os 45 minutos a não fazer nada. Por mais cético que estivesse antes de tirar os sapatos e deitar mirando as nuvens, ele admite que a prática funciona. Foi a primeira vez na sua vida, por exemplo, que conseguiu ver uma nuvem se formando, do absoluto nada, e depois sumindo, assoprada pelo mesmo vento que – era possível ouvir com absoluta nitidez – agitava com força as folhas de paineiras distantes. Uma terceira pessoa se juntou a Bohrer e ao jornalista no exercício do nada – mas ficou só nisso.
Ao final, Bohrer outorgou ao repórter um certificado que atestava de forma indiscutível que ele havia participado de um encontro oficial do Clube de Nadismo e feito “absolutamente nada com estilo e mérito incontestáveis”.