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piauí jogos

    Henare e sua coleção de perfumes: quando não está no exterior, suas redes sociais são discretas – nada de mensagens ao crush da hora, drinks com amigos ou passeios com a family CREDITO: EGBERTO NOGUEIRA_2021_ÍMÃ FOTO GALERIA

questões digitais

O sujeito oculto

Quem é o jovem da periferia que virou estrela no universo de likes e lucros das redes sociais

João Batista Jr. | Edição 176, Maio 2021

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No momento em que caiu em falso depois de bater na bola, Henare sentiu uma dor no tornozelo esquerdo. Não era intensa, mas achou melhor parar de jogar vôlei naquele fim de semana. Os vizinhos, que tinham o hábito de estender uma rede no meio da rua para bater bola, continuaram brincando. Em São Mateus, bairro pobre da periferia de São Paulo, o esporte era uma das poucas opções de lazer, à qual Henare se juntava sempre que podia, tirando proveito de sua altura. Aos 15 anos, embora tivesse alguns quilos a mais, já media mais de 1,80 metro. Naquele dia, porém, decidiu voltar para casa. Horas depois, sua perna estava bastante inchada e a dor no tornozelo já incomodava muito. Levado ao hospital, submeteu-se a uma cirurgia para colocar uma placa de titânio. “Meu osso quebrou na diagonal, senti dor por semanas para colocar o pé no chão”, lembra ele. Henare precisou ficar três meses em casa, sem ir à escola, e gastou seu tempo livre com as únicas coisas que tinha à disposição: televisão e internet. Começava ali, por força de um acidente de fim de semana, a gênese de um negócio que o tiraria da pobreza e o transformaria em um caso único no universo digital brasileiro.

Caçula dos três filhos de uma dona de casa e de um recepcionista de farmácia, Murilo Henare começou a trabalhar aos 12 anos, dando expediente na lanchonete de um primo. Estudava de manhã e trabalhava até o início da noite, incluindo fins de semana. Fazia de tudo. Fritava hambúrguer, preparava açaí com cobertura de leite condensado, varria o chão. Com o dinheiro, comprava roupas, tênis, CDs e passou a bancar o próprio material escolar, mas gostava mesmo era de passar tempo no Orkut, a rede social que fazia sucesso no Brasil de então. Aos 14 anos, Henare inscreveu-se no Jovem Aprendiz, projeto do governo federal de capacitação profissional. Continuou se divertindo nas redes sociais, enquanto trabalhava nas Lojas Marisa. Guardava as roupas deixadas nos trocadores e abordava clientes na fila do caixa para convidá-los a fazer o cartão de crédito da loja. Ganhava 462,28 reais por mês. Depois, empregou-se nos Correios, onde separava caixas de encomenda. Dividia o modesto sobrado de dois quartos com o pai, a mãe e dois irmãos.

Quando quebrou a perna, recolheu-se em casa para se recuperar. “Ficava deitado no sofá comendo e vendo tevê, coisas que eu já gostava de fazer.” Com a decadência do Orkut, resolveu dedicar-se a um novo perfil no Twitter, plataforma que começava a se popularizar no Brasil e que, por permitir na época apenas a postagem de textos, acabava funcionando melhor para quem não tinha boa conexão de internet. Batizou-o de @Cortadas, um nome aleatório, e a foto que o ilustrava era da cantora Gretchen, a rainha do rebolado que, com suas impagáveis caras e bocas, tornou-se uma usina de memes. Em 2012, quando entrou no ar a novela Avenida Brasil, da TV Globo, que tinha ótima audiência, Henare passou a falar da trama no @Cortadas. Depois da transmissão de um capítulo, pegava fotos dos atores no banco de imagens do Google e criava frases e piadas sobre o enredo do dia. “Eu misturava um personagem vilão da novela falando sobre o noticiário político, sobre corrupção”, diz ele.

O público começava a adotar a “segunda tela” – um olho na tevê, outro no celular –, e os posts de Henare, marcados pelas tiradas cômicas e piadas espirituosas, engajaram o público e chamaram a atenção de Leandro Ribeiro, proprietário de uma loja de merchandising visual, a Astros Luminosos. Ribeiro queria dar projeção à sua empresa na rede social e procurou o adolescente que fazia sucesso satirizando a trama de Avenida Brasil. Henare ficou surpreso com a abordagem. Nunca imaginara que as brincadeiras digitais podiam interessar um empresário. Ribeiro lhe ofereceu um iPhone 5, trazido do exterior, caso atraísse 50 mil novos seguidores para a conta digital da Astros Luminosos. Na época, Henare tinha um smartphone modelo LG, com tela que ainda não era sensível ao toque, e encantou-se com a ideia de renovar seu celular. Em menos de um mês, cumpriu a meta. “Se um desconhecido me deu um iPhone para eu criar conteúdo, a internet poderia se tornar meu ganha-pão”, disse ele, reproduzindo o pensamento que teve na época.

Com seu perfil no Twitter crescendo em número de seguidores, Henare passou a receber outros convites. Sua mãe, que não entendia direito a dinâmica das redes sociais, reclamava do tempo que o filho ficava na internet conversando com estranhos. Ele mesmo não tinha uma ideia clara de que estava abrindo um negócio, nem sabia como cobrar por seus serviços. Em geral, em vez de dinheiro, fazia uma permuta. Em troca dos posts criativos que pescavam boa audiência, recebia uma calça jeans, um par de tênis, um jantar entregue em casa, um fone de ouvido. Concluiu o ensino médio, parou de estudar e, aos 18 anos, teve a ideia de criar um perfil no Instagram, a plataforma que virara a sensação das redes sociais.

Batizou sua conta de @MigaSuaLoca. Falava de assuntos da cultura pop, novelas, celebridades, Big Brother e memes. Foi sucesso instantâneo. Em quatro meses, atingiu a marca de 1 milhão de seguidores. Colocou então seu nome e e-mail na biografia do Instagram e começou a atrair mais clientes, dos quais passou a cobrar em dinheiro – entre 200 e 500 reais ao mês. Em 2016, seu trabalho chamou a atenção das gravadoras, interessadas em divulgar seus artistas e ampliar os ganhos com a reprodução das músicas nas plataformas digitais. Em 2017, prestes a completar 21 anos, viajou de avião pela primeira vez – de São Paulo ao Rio de Janeiro – para atender a um convite da Som Livre, que o chamara para cobrir a gravação do DVD da sertaneja Naiara Azevedo, realizada no Bar da Laje, no topo do Morro do Vidigal.

Entre os anos de 2017 e 2018, os eventos dessa natureza se multiplicaram. Houve meses em que chegou a viajar seis vezes, fazendo a cobertura de shows de artistas como Wesley Safadão, astro do forró eletrônico, e Gabriel Diniz, que estouraria com o hit Jenifer. Os patrocinadores bancavam todas as despesas de viagem e lhe pagavam um cachê, que variava entre 1 mil e 2 mil reais, para postar seus comentários engraçados nas redes. “Isso me ajudou a ir conhecendo o ecossistema do mundo digital”, diz ele. Os contatos com influenciadores digitais, que antes só conhecia por mensagens online, ajudaram a ampliar sua clientela.

Com uma atividade que lhe garantia uma renda entre 6 mil e 10 mil reais mensais, Henare decidiu deixar a casa dos pais em São Mateus e mudar-se para um apartamento de 40 m2 na Rua Bela Cintra, no bairro da Consolação, em São Paulo. Passou a ser vizinho das baladas da Rua Augusta e, principalmente, de outros influenciadores digitais. Quando era procurado por um cliente, começou a sugerir que seus colegas também fossem contratados para divulgar posts patrocinados. “Eu falava assim: ‘O.k., pode me contratar, mas seu alcance será maior se, além de mim, outros perfis postarem seu conteúdo ao mesmo tempo.” Como não cobrava comissão dos colegas por indicá-los, acabou tornando-se uma figura bem vista no “ecossistema”.

A paraibana Géssica Kayane, de 28 anos, influenciadora conhecida como GKay, é uma das que foram acolhidas por Henare com excelentes resultados. Ela o visitou no novo apartamento em busca de dicas. Kayane postava sobre lojas e restaurantes de Solânea, sua cidadezinha no interior da Paraíba. “Trocava post por pizza, amigo”, diz ela. “O Murilo me deu a cama dele e foi dormir no sofá. Minha carreira tomou outra proporção graças à ajuda que ele me deu.” Hoje, Kayane, com seu humor escrachado, é um sucesso, com 14,7 milhões de seguidores no Instagram.

Com as boas relações, Henare aos poucos foi criando uma rede informal de perfis no Instagram que, somados, reuniam algo que vale ouro no mercado publicitário – milhares, milhões de seguidores.

 

Fatima Pissarra, formada em jornalismo e psicologia, é uma mulher direta: fala o que pensa e pensa rápido. Em 2017, ela se associou à cantora Preta Gil para criar a maior empresa de agenciamento de artistas e influenciadores do país. A Mynd – pronuncia-se “maind” – hoje representa quase duzentos nomes. Não agencia nenhum show, mas faz todo o resto: cuida da popularidade digital de seus clientes, amplia o número de seguidores e os torna um bom investimento publicitário. Entre as duas centenas de clientes, estão alguns dos artistas mais populares do país, como Luan Santana, que arrasta multidões com seu pop romântico, Pabllo Vittar, que estourou como cantora pop e drag queen, o sertanejo Lucas Lucco e os funkeiros Kevinho e Ludmilla.

A Mynd também agencia participantes e ex-participantes do Big Brother, que funcionam como centro de gravidade de atenção nas redes sociais. Agencia, ainda, alguns youtubers cujos canais têm batalhões de inscritos, como o popularíssimo Luccas Neto, carioca de 29 anos que faz vídeos para o público infantil, e o mineiro Matheus Mazzafera, de 40 anos, que se dedica a entrevistas e desafios para seu público. Completando o plantel, a Mynd reúne toda a sorte de influenciadores, como Pequena Lô, 24 anos, que usou o humor para superar uma síndrome que a deixou com os membros encurtados, Felipe Castanhari, 31 anos, que fala de “ciência e nostalgia”, e o ex-modelo Rafael Uccman, 27 anos, que também faz humor escrachado e, com frequência, veste-se com roupas femininas.

“Como agenciamos os comunicadores de maior impacto no país, 90% das ações do mercado publicitário acabam passando pelo nosso casting”, diz Pissarra, recorrendo ao inglês para se referir ao seu elenco. Os 90% podem ser um chute de marketing, mas seu sucesso nas redes é incontestável. Em 2020, a Mynd planejava faturar 80 milhões de reais. Com a pandemia, a comunicação digital ganhou um impulso inesperado e a agência fechou o ano com faturamento de 150 milhões. A popularidade de seus agenciados atrai a nata dos anunciantes do país.

Pissarra e sua equipe passam o dia garimpando nomes em ascensão no Instagram e no TikTok, a popular plataforma de compartilhamento de vídeos. “A Camilla de Lucas eu chamei para a agência quando ela tinha 100 mil seguidores no Insta”, lembra Pissarra, referindo-se à influenciadora que cresceu dando dicas de beleza. “Hoje ela tem 9,5 milhões no Insta e outros 3,3 milhões no TikTok, sem falar que arrasou dentro do Big Brother.” De Lucas, de 26 anos, tem contratos publicitários com a TIM, a Samsung e a Americanas.

Como a Mynd tem atraído muitos artistas e influenciadores interessados em fazer parte de seu lucrativo universo publicitário, Pissarra achou que o rapaz loiro e tímido que a procurou em 3 de novembro de 2019 era mais um se oferecendo para compor seu casting. Naquela noite, Gabriel Rocha, o criador do perfil de humor Laddy Nada (763 mil seguidores no Instagram), comemorava seus 21 anos no Tulum Bar & Club, na Vila Olímpia, em São Paulo. O lugar estava lotado de influenciadores. Era o tipo de confraternização em que um posta sobre o aniversário do outro e todos ganham novos seguidores, numa interminável espiral de retroalimentação digital.

No auge da festa, Henare tomou coragem e abordou Pissarra, que estava na fila para fazer uma tatuagem na mão direita. Disse que queria lhe fazer uma proposta de trabalho. De forma educada, Pissarra lhe disse que a procurasse em horário comercial. Dois dias depois, Henare entrou em contato, pedindo uma reunião presencial. “Acha que consegue essa semana? Estou bem ansioso”, escreveu ele, numa mensagem direta por rede social. Os dois encontraram-se na sede da Mynd, um prédio de quatro andares no bairro paulistano do Itaim Bibi, onde quase 50% dos 180 funcionários são negros. Henare chegou com o laptop na mochila e uma proposta clara: reunir donos de diferentes perfis do Instagram e oferecer esse conjunto para ações publicitárias. Naquela altura, Henare falava em nome de dezessete contas que, juntas, somavam 80 milhões de seguidores (há sobreposição, na medida em que alguém pode seguir mais de um perfil). Na sociedade que ele propunha, a Mynd entraria com sua estrutura de maior agência de celebridades digitais.

Para atrair o interesse de Pissarra, Henare contou dois casos de sucesso. Em dezembro de 2018, a pedido do seu amigo Gabriel Diniz, o cantor de “forronejo”, Henare começou a trabalhar para projetar a música Jenifer, que já atraía bom público com seu refrão-chiclete – O nome dela é Jenifer/Eu encontrei ela no Tinder/Não é minha namorada/Mas poderia ser – e, também, com a escolha da atriz Mariana Xavier para estrelar o clipe da canção. Baixinha e rechonchuda, Xavier fugia da imagem convencional das modelos altas e magérrimas e chamou atenção ao clipe, que virou notícia nas televisões e sites.

Henare ajudou o amigo fazendo o que sabe fazer: criou memes. Em um deles, uma mulher de pijama, nervosa e apreensiva, levanta-se da cama e, atrás dela, um cantor acompanhado por dois músicos arrebenta a parede e irrompe no quarto cantando que “o nome dela é Jenifer”. Isso fez sucesso. Outro exibia o ator Will Smith, astro de Um Maluco no Pedaço, dançando de modo desengonçado ao som do hit de Diniz. Isso também fez sucesso. Na selva do mundo digital, tudo é feito com imagens capturadas na internet e sem pagamento de direitos autorais. Deu certo. No Spotify, a plataforma de músicas e podcasts, Jenifer passou de 900 mil para 4 milhões de execuções por semana. Em janeiro de 2019, subiu para 5,6 milhões. (Em maio de 2019, Gabriel Diniz morreu num acidente aéreo em Sergipe. Tinha 28 anos.)

O segundo caso de sucesso aconteceu no primeiro semestre de 2019, quando o Rappi, aplicativo de entregas domiciliares, fez uma grande ação publicitária para aumentar sua base de clientes. Os influenciadores divulgavam um código do Rappi aos seus seguidores. Quando um seguidor fizesse sua primeira compra acima de 35 reais usando o código, o influenciador ganhava um crédito de 30 reais. Henare, com o seu @MigaSuaLoca, e Flavio Santana, dono do @SouEuNaVida, trabalharam juntos e acumularam nada menos que 3 milhões de reais em créditos. (Nos planos originais do Rappi, os influenciadores usariam os créditos em compras pelo aplicativo. Como faturaram muito mais que o previsto, Henare e Santana consumiram tudo o que foi possível e ainda faltou gastar 500 mil reais. O Rappi depositou a quantia na conta dos dois.)

Pissarra arregalou seus olhos com as histórias e topou a proposta de Henare na hora. “O Murilo é um empreendedor. Quantas pessoas me procuraram com a sugestão de fazer algo parecido, mas sem ter à mão os perfis de grande alcance… Vir com ideia mas sem saber como executar é a mesma coisa que nada”, diz ela, escandindo as sílabas na-da. Com isso, Murilo Henare, aos 23 anos, tornou-se sócio de Pissarra na chamada Banca Digital, que começou oferecendo aquelas dezessete contas com 80 milhões de fãs.

 

Quem contrata a Banca Digital pode escolher com quantos perfis quer trabalhar. Todos eles atendem ao mercado publicitário, postando frases, piadas, fofocas, memes e, em alguns casos, até notícias relevantes. São contas como @SinceroOficial (18,8 milhões de seguidores), que faz humor com frases de efeito e memes sobre situações cotidianas. Ou @SouEuNaVida (15,2 milhões), que se dedica apenas aos memes, com muitas fotos de cães, gatos e personagens dos Simpsons. Ou @NazaréAmarga (9,1 milhões), cuja característica é um humor cáustico, com memes, vídeos e frases, quase sempre sobre assuntos do dia.

Cada arroba – o outro nome de “perfil” – tem seu jeito próprio. Umas tratam seus assuntos por meio de vídeos, outras por memes, outras com legendas bem sacadas. O horário das postagens de propagandas é definido em contrato. Em geral, todos os perfis são orientados a publicar o conteúdo do anunciante ao mesmo tempo. Com isso, produzem a impressão de que “todo mundo” está falando da mesma coisa. As pessoas dão likes, comentam e compartilham, e o resto fica a cargo do algoritmo que, impactado com a avalanche de atenção sobre um mesmo assunto, começa a disseminar ainda mais posts com aquele conteúdo – eis a roda-viva, o círculo vicioso que leva um tema ao topo da lista dos mais comentados.

Uma equipe de dezoito pessoas da Mynd passa o dia enviando sugestões de propaganda para as principais agências e empresas, sempre apoiadas em algum fato do momento. Cerca de 95% dos posts patrocinados divulgados pela Banca Digital são ideias que nasceram dessa equipe – apenas 5% saem das agências de publicidade ou dos próprios clientes. Uma ação publicitária simples no Instagram, que envolve apenas um post e não inclui stories – como são chamados os vídeos de 15 segundos que expiram em 24 horas – pode custar 20 mil reais. Uma ação publicitária que reúne todos os perfis fazendo um post e três vídeos nos stories não sai por menos de 300 mil reais.

Henare e Pissarra ficam com 40%. Os donos dos perfis embolsam o restante. Cada arroba recebe de acordo com seu número de seguidores e volume de procura de clientes, de modo que costumam ganhar algo entre 25 mil e 120 mil reais por mês. Como acontece no mercado publicitário convencional, os melhores momentos são datas como Dias das Mães, Black Friday e Natal, mas nada concorre com as edições do BBB. Na última, oito dos dez grandes anunciantes do reality show fizeram parceria com a Banca Digital. Na era dos shows virtuais da pandemia, a Globoplay, o serviço pago de vídeos da Globo, contratou a Banca Digital para divulgar as lives de artistas como Roberto Carlos, Ivete Sangalo, Luan Santana e o DJ Alok.

Os donos dos perfis quase nunca se identificam publicamente. “Até pouco tempo nem meus parentes sabiam que eu era dono do @Perrengue_Chique”, diz o criador da arroba que faz troça das reclamações de gente rica, como enfrentar banheiros alagados em camarotes de luxo no Carnaval ou lidar com aeroportos lotados na hora de embarcar em seus jatos privados. “Criei esse perfil como uma diversão, mas aí vieram muito mais seguidores do que eu poderia imaginar”, diz ele, que hoje reúne 2,6 milhões de fãs. Ele trabalha em um banco de investimento localizado na Avenida Faria Lima, em São Paulo. “Mostrar meu rosto e minha identidade não está nos meus planos.”

Em tempos de cancelamento, ocultar a identidade é uma vantagem: os perfis não têm haters, como são chamados os detratores, e correm um risco menor de incinerar seu potencial publicitário ao usar uma expressão racista ou homofóbica, por exemplo. Quando um artista ou influenciador se envolve em alguma encrenca desse tipo, as marcas rapidamente rompem o contrato para fugir do contágio. “As agências recorrem às empresas especializadas para fazer uma varredura digital nas contas do garoto-propaganda antes de assinar contrato”, diz Marcelo Aquilino, gerente de Media e Data da agência SunsetDDB, que detém as contas da Ambev, Nextel, Unilever e Vigor. “Eu não vendo a imagem de ninguém, vendo a audiência”, diz Henare, sublinhando o benefício do anonimato. “Não interfiro no conteúdo. Quer postar sobre BBB? Posta. Quer criticar a ausência de vacina por parte do governo federal? Tudo certo. Eu apenas vendo propaganda a ser veiculada por esses perfis.”

Nem todos optam por esconder a identidade, no entanto. Nathan Lilja, um gaúcho de 30 anos, é um dos poucos que se identificam e, mais do que isso, tratam de política. “Eu posto sobre Bolsonaro, saúde, novela, BBB… o público me segue para ter informação. Não tenho medo de perder seguidores ao criticar a falta de vacinas”, diz ele, cuja arroba NanaRude tem 2 milhões de fãs e integra o elenco da Banca Digital. “Na verdade, no Brasil polarizado e assustado com a crise do coronavírus, esse tipo de notícia engaja bastante.” Em uma única semana, Lilja postou sobre o recorde de mortes por Covid-19, as UTIs lotadas de São Paulo e a anulação da condenação do ex-presidente Lula pelo Supremo Tribunal Federal.

Hoje, a Banca Digital tem 26 perfis, com um total de 117 milhões de seguidores (os sócios não divulgam estimativa de seguidores únicos e dizem estar desenvolvendo um software para obter o número exato). Henare está por trás da divulgação dos singles de alguns dos artistas mais populares do país, da funkeira Anitta ao sertanejo Gusttavo Lima. Sua clientela inclui grandes anunciantes, como o Magazine Luiza, a Americanas, a Ambev, a TV Globo e a c&a. Em março passado, a Magalu contratou onze arrobas da Banca Digital para anunciar uma “liquidação fantástica”. Nem a Magalu nem a Banca Digital revelam o valor do negócio, mas a ação publicitária atingiu 23,2 milhões de pessoas e gerou 72,9 milhões de cliques no site da empresa.

“Sabe quando somos adolescentes e jogamos futebol na escola, só que na vida adulta ninguém vira profissional?”, diz o empresário Leandro Ribeiro, o dono da Astros Luminosos, que foi o primeiro a contratar Henare quando ele ainda era um adolescente. “Pois é. Com Murilo foi o contrário. Ele levou essa pelada digital a sério e ficou milionário.” Em um mês de movimento comum, Henare embolsa cerca de 350 mil reais. Ele se define como “publicitário autodidata” e “empreendedor”. No ano passado, a Banca Digital faturou 20 milhões de reais. Neste ano, prevê faturar entre 45 e 50 milhões.

Henare não foi o primeiro a ter a ideia de montar uma rede de perfis no Instagram, mas foi o primeiro a colocar a ideia em prática. No Brasil, ainda não há outras agências semelhantes, que não vendem a imagem de influenciador, mas uma arroba, em geral anônima. Pissarra diz que já perdeu a conta de quantas vezes teve que explicar o que a Banca Digital faz. A Ambev, por exemplo, queria contratar certos perfis com exclusividade para que não postassem propaganda de outras cervejarias. “Não fazia sentido”, diz Pissarra. “Seria como pedir à Globo que só fizesse anúncio de um único banco. Cada perfil é como um veículo de comunicação.” Ela explica a diferença: “Os artistas e influenciadores, sim, só fazem propaganda para uma marca de um mesmo segmento. Não é o caso de um site, uma revista, uma emissora de tevê.”

Há, no entanto, uma diferença crucial entre o novo negócio digital e os veículos da imprensa profissional.

 

Em dezembro de 2018, a influenciadora Gabriela Pugliesi publicou no Instagram um post sobre a Desinchá, uma empresa que propagandeia vender chás diuréticos. No post, Pugliesi dava a entender que recebera um presente em sua casa e fazia elogios ao produto. Tudo parecia natural e espontâneo, mas era uma peça de propaganda. Pugliesi, que faz tanta publicidade que é conhecida no mercado como “Publiesi”, deveria ter avisado seu público de que se tratava de um conteúdo pago, colocando as expressões #publi ou #ad. O Conar, órgão que zela pela ética na propaganda no país, advertiu a influenciadora e a empresa de chá.

De todas as denúncias que o Conar recebe, 20% se referem à ausência de identificação publicitária. É uma grave irregularidade ética que nenhum veículo de comunicação sério comete, mas é muito comum nos “veículos” das redes sociais. Em setembro de 2020, Rafa Kalimann, a mineira de 28 anos que participou da edição de 2020 do BBB, também fez um anúncio escondido da mesma Desinchá. Ao ser advertida pelo Conar, corrigiu-se e adicionou o termo #publipost. No mês seguinte, Thássia Naves, de 32 anos, influenciadora de moda que fez fama por jamais sorrir em suas fotos ou vídeos, recebeu uma advertência por não informar aos seus seguidores que fazia uma propaganda da L’Occitane, marca francesa de produtos de higiene, cosméticos e perfumes.

Em março passado, o Conar divulgou seu novo guia, dirigido especificamente aos influenciadores digitais. Pelas novas orientações, continua sendo aceitável a abreviação #publi, mas não palavras em inglês, como #ad, #adv ou #advertisement, que não são de uso corrente na nossa língua e, em muitos contextos, servem apenas para despistar que o conteúdo é uma publicidade paga. O guia também recomenda evitar palavras que podem ter uma interpretação dúbia, como #parceiro ou #colaboração. Recomenda que, além de #publi, os influenciadores usem expressões como #publicidade, #publipost, #anúncio, #patrocinado, #conteúdopago ou #parceriapaga. Assim, todo mundo entende.

Pugliesi, Kalimann e Naves não pertencem à Banca Digital, mas a falta de transparência na propaganda também é um espinho na empresa de Henare. Os donos dos perfis nem sempre dizem que a frase, o meme ou a piada que estão divulgando são uma encomenda publicitária. Ludibriam os seguidores, que supõem receber um conteúdo espontâneo e de boa-fé, quando, na verdade, estão sendo alvos de propaganda paga. Em janeiro, @GinaIndelicada (8,8 milhões de seguidores) festejou que a Ambev doara quinhentos cilindros de oxigênio para o Amazonas. “Adorei a atitude. Que mais empresas sigam o exemplo”, escreveu, sem dizer que a ação era uma publicidade paga. Em fevereiro, @NazareAmarga (9,1 milhões) falou bem de uma bebida. “Eu quero essa edição limitada de Corote Drinks na minha mesa agora, produção!” Também não disse que era um post pago. Em março, @XuxaNave (1,5 milhão) elogiou o clipe de Alok: “Os efeitos visuais estão incríveis.” Não disse que era uma peça patrocinada. Os exemplos são inúmeros.

Fatima Pissarra afirma que todos os perfis de sua empresa são informados de que a identificação de conteúdo publicitário é obrigatória. “O próprio cliente exige essa identificação, quer tudo de forma transparente”, disse ela. Quando confrontada com exemplos de posts em que não aparece qualquer informação de propaganda paga, mesmo em campanhas bancadas por grandes clientes, Pissarra disse que o influenciador cometeu um erro, e prometeu chamar a atenção de todos. “Isso não pode acontecer”, disse. (Passadas três semanas, no entanto, os posts continuavam sem informar que eram peças publicitárias.)

A situação é mais nebulosa no mundo musical. A Banca Digital não informa – nunca – quando se trata de propaganda de artistas lançando clipes, ainda que todas as gravadoras sejam clientes da empresa. “Fui informado pelos advogados de que, em se tratando de música, não existe essa obrigatoriedade. Cantores, artistas… no caso da divulgação de pessoas, não de marcas, o Conar não faz a exigência do aviso de publicidade”, disse Henare. Procurado pela piauí, o Conar explicou que não é bem assim. Um perfil do Instagram pode falar do artista que bem entender. Mas, se seu objetivo é promover determinado clipe ou streaming mediante cachê pago pela gravadora do cantor, a coisa muda de figura e ganha um caráter comercial. O artigo 18 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária esclarece: “A palavra ‘produto’ inclui bens, serviços, facilidades, instituições, conceitos ou ideias que sejam promovidos pela publicidade.” Isso inclui música.

O Conar, quando foi acionado pela piauí, nem sequer sabia da existência da Banca Digital. Criado em 1980, o órgão nasceu numa época pré-digital e ainda batalha para encontrar uma forma de atuar nesse universo. O guia lançado em março é um passo na tentativa de disciplinar o mercado, mas o ambiente digital é uma vastidão. “Há um volume gigante de conteúdo sendo veiculado, alguns de caráter editorial, outros como propaganda”, diz Juliana Nakata Albuquerque, advogada e conselheira do Conar desde 2001. “O nosso trabalho virou um tsunami.” O Conar não é um órgão do governo. É da sociedade. Não tem autoridade para multar uma empresa ou influenciador. Seu poder está em expor as irregularidades e constranger seus autores. “No longo prazo, esse tipo de prática desvaloriza o produto e a empresa. Colocar #publi em propaganda de rede social é, acima de tudo, honesto com o seu cliente”, diz Albuquerque.

Mas o Conar tem um aliado acidental. Como o mundo digital contém doses robustas de ego, inveja e ciúmes, os próprios influenciadores costumam denunciar – em sigilo, claro – o colega que faz propaganda enganosa. “Já tive dona de perfil me ligando possessa porque a suposta amiga foi convidada para uma viagem de jabá a Paris e ela não”, confidencia um empresário de artistas e influenciadores que pediu para não ser identificado com receio de perder clientes. “Se elas brigam por roupa e passagem aérea, imagina o que não fazem pelo cachê dos anunciantes.”

As disputas transformaram a Banca Digital em objeto de amor e ódio. “Tem artista que morre de medo de ser cancelado por eles”, disse um experiente empresário, que representa atores e cantores. “Muitos comentam nos posts e puxam o saco dos criadores para não serem massacrados se um dia cometerem um deslize na vida pessoal.” Pissarra conta que, com frequência, recebe ligações de agentes ou das próprias celebridades pedindo para não noticiar um divórcio, por exemplo. “Eu não interfiro no conteúdo editorial, só no comercial. E sempre digo: ‘Criem uma relação de amizade com as pessoas do meio, não adianta vir cobrar porque jamais pedirei para deletarem um post’”, diz ela. A fofoca, porém, nem sempre é ruim.

No segundo semestre do ano passado, o cantor Gusttavo Lima separou-se da mulher, Andressa Suita. Os perfis de mexericos entraram em estado de máxima agitação com a notícia. Por coincidência, Lima estava lançando na mesma época uma música chamada Café e Amor, cujo tema era uma relação conjugal que esfriou. A Banca Digital explorou a separação, o lançamento do single e a coincidência. É difícil medir quanto a fofoca ajudou a difundir Café e Amor, mas o fato é que a música explodiu, com 165 milhões de visualizações no YouTube. No fim, ficou no ar a suspeita de que tudo não passou de um golpe de marketing: o casal não demorou a reatar, e Lima continua um fenômeno digital e publicitário, com incríveis 38,7 milhões de seguidores no Instagram.

Como boa parte da população brasileira tem acesso precário à internet, o grosso da publicidade segue sendo canalizado para a televisão, mas 26,7% do bolo já são destinados às redes sociais. Segundo levantamento do Conselho Executivo das Normas-Padrão (Cenp), que reúne 217 agências de publicidade, a fatia da internet ficou em torno de 3,8 bilhões de reais no ano passado. O dado não traduz todo o mercado porque muitas ações de propaganda são, hoje, acertadas diretamente entre anunciante e influenciador, sem passar pela intermediação das agências, justamente pela urgência de surfar numa onda do momento. “A Banca Digital tem muita eficiência para quem quer comunicar algo de imediato”, atesta Ana Lúcia Zambon, dona da agência de comunicação Tastemakers.

 

Faz um ano que Henare mudou-se do pequeno apartamento para uma cobertura duplex de 250 m2 na Rua Frei Caneca, a cinco quarteirões da Avenida Paulista. Ocupa os andares 27 e 28 e tem uma visão estupenda de centenas de arranha-céus paulistanos. No hall de entrada, exibe um quadro de Adriana Duque, a artista colombiana cujo trabalho funde fotografia e pintura. Na sala principal, tem outro quadro de Duque, um sofá para quinze pessoas decorado com três almofadas Gucci e uma tela de tevê de 2,4 metros de largura embutida no teto, de onde desce quando acionada por controle remoto nas ocasiões em que Henare reúne os amigos para assistir paredões do BBB. Nos eventos especiais, contrata um chef de cozinha.

A decoração é toda em preto, branco e cinza, mas já estava montada. “Cheguei com minhas malas de roupa e precisei comprar um sofá, e só”, diz ele. No quarto, há uma enorme banheira branca, onde cabem seis pessoas, com vista para a cama de casal e a ducha com box transparente. Nos dois closets, Henare esbanja seu apego por roupas e sapatos de luxo. Ali, há um desfile de Balmain, Prada, Louis Vuitton, Valentino, Hermès, Chanel e Rolex. Seu roupão, em preto e dourado, é um Versace.

A porta pela qual entrou no mercado de luxo, porém, não foram as roupas nem os sapatos. Foram os cremes, hidratantes para o rosto e perfumes. Henare tem uma prateleira com sete divisórias para suas fragrâncias, que vão de Tom Ford a Jo Malone. Ele pode usar um perfume diferente para cada dia do mês, sem repetir. Tornou-se cliente dos shoppings mais caros de São Paulo, o Iguatemi e o Cidade Jardim.

Costuma fazer reuniões de trabalho em casa. Seus funcionários se espalham pela longa bancada da cozinha ou ficam estirados no sofá da sala, diante de seus laptops da Apple. Num dia de semana, quando a piauí visitou o apartamento, havia um grupo trabalhando num ambiente informal, com uma máquina de café à disposição e pratos de brigadeiro e macarons. Eles ficam em contato permanente com a equipe de criadores da Banca Digital prospectando negócios. Naquele dia, fecharam contratos no valor de cerca de 400 mil reais – e viveram um momento de espanto. Uma das participantes do BBB, Sarah Andrade, repentinamente revelou-se bolsonarista. Ao ouvir a confissão, a equipe inteira paralisou o trabalho, entre chocada e boquiaberta. “Está acabada”, começaram a postar às carreiras nas redes. (De fato, a revelação mostrou-se fatal. Sarah Andrade saiu do programa, eliminada em votação do público, poucos dias depois.)

Como tantos no mercado digital, Henare fala uma língua próxima do português. Diz que, no seu trabalho, precisa concentrar-se no speech para o cliente e passar o mood da campanha com clareza para os creators cada vez que consegue um novo job. Para melhorar seu domínio do idioma de Kim Kardashian, ficou um mês e meio em Los Angeles, entre setembro e outubro de 2019, na primeira viagem internacional de sua vida. Viajou na companhia de Rafael Uccman, o influenciador com 7,9 milhões de seguidores. “Foi uma temporada de dívidas”, brinca Henare, diante de sua compulsão por compras.

Tomou gosto. Em março passado, no auge da pandemia, viajou para os poucos lugares que, hoje em dia, abrem as portas para voos do Brasil. Embarcou para Dubai, nos Emirados Árabes, e as Maldivas, o arquipélago no Sul da Ásia. Tudo devidamente postado em sua rede social: passeio de helicóptero, visitas a butiques Versace e Hermès, e restaurantes sofisticados. Na churrascaria Nurs-Et, localizada dentro do Four Seasons Resort, ele e os amigos postaram a conta do jantar no Instagram: 11 mil reais. Depois de duas semanas, Henare conseguiu voar para Nova York, onde visitou galerias de arte, a Times Square e a loja da Balenciaga. Em seguida, foi outra vez para Los Angeles.

Quando não está viajando, ele costuma ser discreto nas redes sociais. Suas postagens são, quase sempre, sobre trabalho. Nada de drinques com amigos, mensagens públicas ao crush da hora, passeios com a family. Seus seguidores não foram informados da lipoaspiração que fez em janeiro para retirada de gordura das pernas, costas e abdômen. O procedimento foi realizado na Clínica Santé, em São Paulo, conhecido pit-stop de celebridades em busca de um makeover estético. Com 1,83 metro de altura, seu peso caiu de 103 para 95 kg. Nunca falou aos seguidores que faz terapia para amenizar a ansiedade, nem que toma remédio para combater o déficit de atenção e a hiperatividade, ou que colocou jaquetas de porcelana em seus dentes agora alvíssimos.

Afável e modesto, Henare gosta mesmo é de ficar em casa jogando Mortal Kombat no PlayStation. “Sou uma maricona”, brinca, usando uma gíria do universo gay para designar quem prefere o sofá de casa à boate da moda. Por isso, quer mais espaço no apartamento, que serve ao mesmo tempo de casa e de escritório. Está de mudança para um imóvel de 6 milhões de reais, na Avenida Paulista. Com 490 m2, hall privativo e lustre de cristal na sala, o imóvel oferece uma vista de 180 graus. Henare já faz planos para instalar uma estação de trabalho para dez pessoas. Da cobertura onde mora hoje, ele levará apenas objetos pessoais, a esteira ergométrica, o sofá e, claro, os dois lulus-da-pomerânia.