ILUSTRAÇÃO: CASSIO LOREDANO_2007
O tempo de Temporão
O que pode de fato o ministro da Saúde? Legalizar o aborto, acabar com a propaganda de cerveja? Ele consegue ser ouvido, mas, para fazer mudanças significativas, precisa chafurdar na politicagem
Daniela Pinheiro | Edição 11, Agosto 2007
A segunda garrafa de vinho acabara de ser aberta. Era uma noite fria, num restaurante afetado de Brasília, e o deputado Alceni Guerra lembrava de seu tempo como ministro da Saúde, no governo Collor. “Trinta dias depois de assumir, eu era o ministro mais citado pela imprensa; por onde andava, havia quinze, vinte jornalistas atrás de mim”, disse. “Quando se está na área de Saúde, tudo o que você faz reverbera. Mas há fases. No começo, é a esperança. O segundo momento é o do enfado. A imprensa, e a população junto, começam a ver que não é fácil mudar as coisas, que tudo é complicado e enrolado. A terceira é a da cobrança. É quando começam a caçoar de ti, começam os colunistas a te sacanear, a perguntarem: ‘cadê?’. A quarta fase é a da rejeição. E aí, prepare-se, porque a porrada não tem limites.”
Alceni Guerra pode estar contaminado pelo amargor da experiência ministerial. Figura menor numa briga maior entre Collor, o então governador Leonel Brizola e Roberto Marinho, ele foi acusado de corrupção e ridicularizado nos noticiários da Globo. Saiu do cargo sob a suspeita, nunca comprovada judicialmente, de ter superfaturado a compra de bicicletas para agentes de saúde. Mas ele não fala do passado, e sim do presente: “Quem tem ambições políticas, como eu e o Serra tínhamos, agüenta o tranco. Mas o Temporão, que parece não ter, não sei não…”
Dias antes, num prédio de classe média no bairro de Botafogo, no Rio, acordes do violonista Raphael Rabello podiam ser ouvidos de dentro do elevador. Para um domingo à noite, o som parecia alto demais. José Gomes Temporão abriu a porta de sandálias de dedo, bermuda creme e camiseta branca. “Não é incrível alguém tocar assim?”, foi sua primeira pergunta, antes mesmo de sentarmos. “E o bom é ouvir em vinil”, prosseguiu o ministro da Saúde, percorrendo uma sala escura, apesar de todas as luzes estarem acesas, para mostrar uma estante com LPs de Bob Dylan, Paco de Lucia, The Doors, Frank Sinatra e Arrigo Barnabé. “Você conhece o Arrigo?”, perguntou, ajeitando umas capas.
Na escala de Alceni, Temporão está na primeira fase. Em apenas três meses no cargo, suas declarações, ribombantes e bem coreografadas, fizeram com que se tornasse conhecido nacionalmente. Pouco antes da visita de Bento XVI, por exemplo, ele defendeu a legalização do aborto. Para apoiar a restrição da propaganda de bebidas alcoólicas, atacou o cantor Zeca Pagodinho. Depois de uma curta negociação com o laboratório Merck, quebrou a patente do remédio Efavirenz, usado pelos contaminados com o vírus da Aids. Também defendeu a mudança do regime trabalhista de médicos, enfermeiros e funcionários da área, de maneira que pudessem ser cobrados e demitidos como na iniciativa privada. “Estou confiante porque, desde que cheguei ao governo, nada houve que não tenha podido fazer”, disse. “Quando saiu minha declaração sobre o aborto, falei com o presidente. A única coisa que ele disse foi: ‘Temporão, estou careca de saber que aborto é questão de saúde pública. Eu tenho uma posição pessoal sobre isso, mas é questão de saúde pública’. Entendi como um recado de que eu poderia seguir em frente”, afirmou.
Temporão fez carreira nos bastidores da área da Saúde e nos corredores do extinto Partido Comunista Brasileiro. Passou boa parte da vida profissional como professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, de onde ainda recebe salário (“Recebo um complemento de 4 mil reais do salário de ministro, o que não ultrapassa o teto”, explicou). Entrou no PCB na juventude, e seguiu as diretivas de seus quadros históricos na Saúde, Sérgio Arouca e David Capistrano. Ele credita ao partido a concepção do Sistema Único de Saúde, o SUS, e a definição de saúde pública que foi inscrita na Constituição de 1988.
Em 2003, tornou-se figura pública. Diante de uma ameaça de demissão coletiva e denúncias de que a fila dos transplantes era manipulada por políticos, foi chamado para comandar uma intervenção no Instituto Nacional do Câncer. Trouxe de volta os rebelados, fez demissões, cortes, e reestruturou o Instituto. Ele assegura que, na sua gestão, as doações de medula óssea decuplicaram, passando de 40 mil para 400 mil em menos de três anos. Credenciou-se, assim, para assumir a Secretaria de Atenção à Saúde, ligada ao ministério. Saiu dali para ser ministro.
Uma neblina cerrada em São Paulo impediu que o helicóptero que levaria José Serra a Lorena, no interior do estado, levantasse vôo. A decolagem, prevista para as 10 da manhã, só ocorreu perto do meio-dia. Assim que se acomodou na aeronave, o governador pediu uma Coca dietética e começou a falar sobre a sua gestão como ministro da Saúde, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em quatro anos, Serra implantou os medicamentos genéricos, regularizou o aborto em caso de estupro, proibiu a propaganda de cigarros na televisão e, mediante ameaças de quebra de patente, conseguiu que laboratórios baixassem o preço de remédios que atenuam os sintomas da Aids.
Instado a avaliar se as pressões empresariais e religiosas sobre o Ministério da Saúde são realmente poderosas, ou se são pretextos de políticos para justificar o imobilismo, Serra disse o seguinte: “Há muitas pressões, é óbvio, mas elas não são intransponíveis. Uma vez, o presidente da Souza Cruz veio me ver, e perguntei a ele: ‘Se seu filho perguntar se deve fumar, o que você vai dizer?’ O cara ficou sem argumento, claro”. Serra chegou a declarar, na época, que os fabricantes de cigarro agiam como traficantes de drogas. “Também houve muita reclamação do pessoal da Fórmula 1”, ele diz. “Até o Emerson Fittipaldi foi ao ministério.” O governador conta que uma pessoa que teve papel “fundamental” na proibição da propaganda de cigarro na televisão foi o falecido Evandro Carlos de Andrade, então diretor de jornalismo da Globo, que fez com que a emissora transmitisse reportagens mostrando os malefícios do tabaco e, implicitamente, defendendo a proibição da sua publicidade.
Dias antes de Temporão criticar a propaganda de cerveja estrelada por Zeca Pagodinho, o cantor havia sido agraciado com a medalha da Ordem do Rio Branco, a mais alta insígnia do Ministério das Relações Exteriores. É uma homenagem entregue pelo presidente a quem, de alguma forma, tenha prestado serviços relevantes ao Brasil. “Eu não sabia”, disse o ministro, que ficou ainda mais surpreso ao ser informado que Pagodinho também freqüentava os churrascos de Lula, na Granja do Torto. “Eu não tinha idéia de que eles eram amigos”, afirmou. Ele fez uma pausa, encarou o filho Fernando, que é músico, e completou: “Quer dizer, não sabia que eles eram assim, tãããão amigos”.
Nos últimos cinco anos, nenhum ministro da Saúde teve tanta exposição na mídia quanto Temporão. Sua assessoria contabiliza mais de 250 entrevistas, concedidas em 120 dias. Ele costuma repetir as mesmas respostas às mesmas perguntas sem qualquer sinal de enfado. Apesar de o ministro não sair da imprensa, suas idéias continuam a ser, tão-somente, idéias. Ainda não apareceu alguém com o poder de Evandro Carlos de Andrade para fazer com que a legalização do aborto, ou a proibição da propaganda de bebida, ganhem amplos setores da opinião pública e virem realidade.
Era hora de José Serra voltar a São Paulo. Ele visitara uma fazenda-modelo. Conhecera vacas que ouviam Bach e eram tratadas com homeopatia. Caminhou por plantações orgânicas a perder de vista e viu, de longe, um jacaré. Sobrevoando o bairro do Morumbi, falou sobre a gestão de Temporão: “O principal desafio dele é a falta de dinheiro e a manutenção das Santas Casas, onde está a metade dos leitos do SUS. Elas estão muito mal. Além disso, a maioria dos estados não cumpre a obrigação de destinar 12% de seu orçamento para a Saúde. Tem estado que não gasta sequer a metade. Isso é uma coisa para se ficar em cima, mas também não depende só do ministro. É o Congresso que tem que aprovar a emenda”. Eram três da tarde, no Palácio dos Bandeirantes, quando o governador Serra pediu licença para ir para a ala residencial, dar uma descansada. Na noite anterior, conseguira dormir apenas duas horas. “Quando tenho que ficar acordado, tenho sono”, disse. “Quando tenho que dormir, fico acordado. É um pesadelo.”
Eram dez da manhã quando telefonei para a casa de Jamil Haddad, ministro da Saúde do governo Itamar Franco, na Tijuca. Sua mulher informou que ele havia ido à padaria. Ele voltou duas horas depois. Aos 71 anos, Haddad, hoje aposentado, acompanha a discussão sobre bebidas alcoólicas. “Há um lobby econômico fortíssimo, que atinge em cheio os cofres do governo”, afirma ele. “Quando a turma do álcool diz que vai haver desemprego no setor, que a arrecadação de impostos vai cair, é verdade. E é pressão. O Temporão está certíssimo quando diz que a propaganda incita o consumo de álcool. Só que, sem a publicidade, vai entrar menos dinheiro de imposto. E eu quero ver o governo bancar isso.”
Para Haddad, há diferença entre a pressão baseada em preceitos morais e aquela que vem do mundo material. “Quando eu era ministro, e instituí a distribuição gratuita de camisinha, os principais representantes do alto clero católico vieram me falar de dogmas religiosos”, ele conta. “Mas isso é nada, perto de ter que convencer a equipe econômica a abrir mão de milhões de reais em arrecadação.”
Os efeitos do fim da propaganda de massa na indústria do fumo logo se tornaram visíveis. Em quatro anos, a Souza Cruz vendeu 13 bilhões de cigarros a menos – o que significou uma queda proporcional na arrecadação de impostos. As agências de publicidade e as emissoras de televisão, no entanto, foram menos prejudicadas. Na mesma época da proibição dos anúncios, houve a explosão da telefonia celular. Um produto tomou conta do espaço do outro na publicidade. No caso das bebidas, não se vislumbra outro substituto. O setor movimenta 2 bilhões de reais por ano em propaganda. Só as cervejarias pagam 13 bilhões de reais, anualmente, em taxas para o governo.
Num almoço em São Paulo, um executivo da Ambev, a maior fabricante de cervejas do Brasil, disse que, se a propaganda for proibida, os negócios da empresa serão pouco alterados. E que o efeito poderá até ser benéfico, cristalizando as posições atuais: sem propaganda, marcas menos conhecidas não terão como concorrer com Brahma e Antarctica, os carros-chefes da Ambev. “Para nós, nada muda”, disse. “Quem perde mesmo é o Nizan Guanaes.”
Há dezesseis anos, o projeto de lei sobre o aborto repousa nos escaninhos parlamentares. Como convencer um político a abraçar uma causa sobre a qual 65% da população, segundo pesquisa recente do Datafolha, são contrários? “Claro que por trás disso existe um cálculo eleitoral fortíssimo. Pode não ser muito visível agora, mas ano que vem, quando haverá eleições para prefeitos e vereadores, ficará explícito”, disse Temporão, levantando-se para abaixar o volume da vitrola.
Pedi que explicasse como imaginava romper tal resistência. “Na verdade, isso se dá em outra dimensão. Sabe por que não se resolve a questão do aborto no Brasil? Porque é assunto dos pobres. Os ricos não têm esse problema. Eles lançam mão das coisas de sempre quando se deparam com uma gravidez indesejada na família: um pouco mais de dinheiro, uma boa indicação de lugar. Se não fosse isso, esse assunto já estaria resolvido”, disse, expondo um raciocínio típico de segunda fase, a do enfado.
Desde que Temporão defendeu a legalização do aborto, as manifestações contrárias mais relevantes se restringiram a cartas de leitores de jornais, artigos de especialistas, discussões em blogs e uma cartilha distribuída por parlamentares contrários à idéia. Um ex-ministro usa a seguinte imagem para definir a pressão da Igreja: “É um espantalho político”. É algo que serve para meter medo, mas que de fato não existe. “O que é o lobby da Igreja?”, pergunta o político. “Alguém já viu passeata de padres contra a camisinha? Ou freiras se manifestando no Congresso? Quem acha que um cardeal vai impedir a distribuição de anticoncepcionais?”
Aos 55 anos, Temporão não tem rugas nem cabelos brancos. Na televisão, parece ser mais alto e encorpado que seu 1,70 metro e seus 75 quilos, mantidos, há duas décadas, com corridas na esteira ou na orla, pelo menos três vezes por semana. O ministro fala baixo e pausado, transmitindo uma segurança vagamente paternal. Quando quer mostrar que fala sério, incorre em mesóclises, como “poder-se ia” ou “dir-se-ia”. Há 33 anos é casado com Liliane, de 52 anos, sua colega de curso, ex-diretora do Instituto Philippe Pinel, no Rio. Tiveram quatro filhos, hoje com idades entre 15 e 27 anos. Conheceram-se quando ela foi levar um poema para ser publicado no jornal da faculdade, do qual ele era um dos editores. Não fizeram festa de casamento. “Foi uma decisão ideológica, antiburguesa, da qual me arrependo”, diz. “Meus pais e a Lili teriam gostado de uma festa tradicional.”
No dia de seu primeiro aniversário, Temporão desembarcou com a mãe, Sara, e a irmã, Saudade, no porto da Praça Mauá, no Rio. O pai, o português José Temporão, era agricultor. Havia imigrado cinco anos antes, fugindo da ditadura salazarista, e voltado apenas uma vez à província de Monção, a 400 quilômetros de Lisboa, conhecida por produzir um dos melhores vinhos verdes do país, o Alvarinho. “Foi nessa volta a Monção”, conta o pai, “que fabriquei o Zezinho.”
Como faz todos os dias, há quatro décadas, Temporão pai, 84 anos, de terno escuro, camisa branca e gravata preta, recepcionava fregueses de seu restaurante, o Mosteiro, no centro do Rio. Numa das mesas, o ex-deputado Roberto Jefferson, de jaqueta de couro preta, almoçava com um grupo. A maioria dos clientes usa gravata e deixa paletós pendurados nas costas da cadeira.
Além do Mosteiro, que tem luminárias em forma de tochas, ele também é dono de outro restaurante, o Columbia, cujos lucros pingam nas contas do ministro e de sua irmã. “É uma mixaria, mas meu filho continua com problemas de dinheiro”, diz. “Se amanhã ele quiser mudar para outro apartamento, vai ter que pedir empréstimo, financiar, coitado. Ele não tem dinheiro nem para trocar de carro”, disse. O ministro diz que ganhou do pai o apartamento onde mora e “até hoje, ele dá um dinheiro de vez em quando. Eu nunca teria conseguido criar quatro filhos sem a ajuda financeira dele”.
“O filho vai fazer pelo país o que ninguém fez, vai acabar com a fila dos hospitais, vai aumentar o salário dos médicos”, disse o pai do ministro, enquanto ajeitava o prato de manteiga, patê e azeitona. E o que acha da proposta sobre o aborto? “Isso eu não vou falar”, disse rispidamente, o que acentuou seu sotaque português. A mãe do ministro, Sara, de 89 anos, costuma ir à missa todos os dias. Chorou e pediu desculpas quando o filho disse a jornalistas que ela havia lhe dado “um puxão de orelhas” por defender o aborto. Foi, até agora, o lobby mais forte com que o ministro teve que lidar.
Dois meses depois de ter me recebido em sua casa, a percepção de Temporão sobre suas possibilidades mudara. Ele estava chateado com uma foto sua publicada pela revista Istoé. Achava que sua expressão facial era de briga (de “grrrrr”, como definiu) e que isso havia sido feito com o propósito de fazê-lo parecer encrenqueiro. Na semana anterior, num jantar na casa de um parlamentar, teve que ouvir constrangido a mesma pergunta diversas vezes: Ministro, o senhor vai ser candidato a quê? “Eu já começo a perceber que estão querendo me queimar”, disse durante um vôo entre Rio e São Paulo. Aproximava-se a terceira fase, a da cobrança.
“Talvez eu não esteja tomando cuidado”, disse. “Nem todo político pode dizer o que pensa. Eu defendo idéias, defendo o que eu acredito. E aí, vêm essas notinhas no Cláudio Humberto, dizendo que eu não posso ser presidente porque sou português. E eu lá quero ser alguma coisa? Para quem está no ministério há três meses, isso é tentativa de me queimar. Eu sei de onde vem isso, eu sei”, disse enquanto a aeromoça lhe servia Coca dietética. “São alas do PMDB fluminense. Querem nomear diretores de hospitais. A pressão é do Eduardo Cunha [deputado federal ligado ao ex-governador Anthony Garotinho]. O Inca, ele nem pede. Quando você atende ao pedido de um político, de um parente, você fica refém para sempre. Um pedido, e o compromisso se torna eterno. Não vou fazer isso.”
Temporão foi cogitado para assumir o ministério no final do ano passado. A operação de sua indicação envolveu desde o médico particular do presidente Lula até uma famosa oncologista de São Paulo, com uma das melhores agendas telefônicas do país. Em uma tarde recente, no escritório de seu banco, o Multiplic, com vista para o mar do Leblon, o ex-deputado Ronaldo César Coelho lembrou do assunto: “O Lula chamou o Sérgio Cabral, dizendo que ele deveria apadrinhar o Temporão, já que a cota do ministério era do PMDB. Era uma boa coisa, porque o Temporão era do Rio, conhecia as mazelas dos hospitais fluminenses e, disposto a resolver isso, o Cabral poderia se beneficiar. Nem Lula nem Cabral conheciam o Temporão. A indicação partiu do Roberto Kalil, o médico particular do presidente. E o Kalil não falou com o Lula: ele foi direto à dona Marisa. Ela se convenceu de imediato”.
O cardiologista Roberto Kalil trata da saúde de Lula e Marisa desde que o presidente era sindicalista. Ele soube de Temporão por meio da oncologista Nise Yamaguchi, que conheceu o ministro à época da crise do Instituto do Câncer. “Fiquei impressionada com a capacidade do Temporão. Ele é muito transparente, incorruptível, entende muito da área”, contou a doutora Nise em sua clínica, em São Paulo. “Um dia, encontrei-me com o Kalil na porta do Incor. Foi muita coincidência. Eu falei que tinha que ser o Temporão. Era preciso um nome da área, suprapartidário, competente. Era a nossa chance de conseguir isso. Ele me perguntou: ‘Ele é seu amigo? Você confia nele? Então vai ser’.”
No Rio, a turma do partidão também se mobilizava a favor do nome do colega organizando um abaixo-assinado pró-Temporão com representantes de peso da área médica, como o ex-ministro Adib Jatene. A articulação mobilizou também Arlindo Chinaglia, Michel Temer, Romeu Tuma, todos conhecidos de Nise Yamaguchi. “Identificamos que Temporão não era um potencial ministeriável porque não tinha padrinho político, não era ligado a qualquer partido. Era um nome técnico apenas”, disse a doutora. “Então, o próprio Temporão se encarregou de agilizar a filiação dele ao PMDB”, contou o deputado Rafael Guerra, da Frente Parlamentar da Saúde, em seu gabinete em Brasília. Temporão, ex-comunista e ex-brizolista, filiou-se ao PMDB em novembro de 2006. Quatro meses depois, assumia o ministério.
Durante quase vinte anos, Temporão foi filiado ao PCB. Na faculdade, vendia A Voz Operária, o jornal do partido. De uma caixa de madeira, que estava na mesa de centro de sua casa, a professora Sônia Fleury, da Fundação Getúlio Vargas, sacou uma foto desbotada de um grupo de homens bigodudos, de camisas de gola pontuda. Todos pareciam o cantor Belchior. “Olha o Temporão com o senador Giovanni Berlinguer, do Partido Comunista Italiano”, ela aponta. “Foi em 1983. Arrumamos a vinda do senador, em plena ditadura, para falar de saúde pública. O Zé foi o motorista dele aqui no Rio.” A professora prossegue: “Foi muito inesperado o Zé se tornar ministro. Ele sempre foi um cara dos bastidores, um executor. Nunca teve esse viés de político. Nosso nome para o ministério sempre foi o Arouca. De repente, ele entra e nos surpreende tão positivamente”. Quando o PCB se tornou PPS, Temporão deixou a militância. “Achei que o partido tinha virado outra coisa, uma coisa que nada tinha a ver com o que era no começo. Eu não acreditava naquela nova proposta”, disse-me uma noite, tomando água tônica em um barzinho perto de sua casa.
“Eu não sou ministro de partido. Eu sou ministro da Saúde. Aliás, sou do partido sanitarista”, ele costuma falar, tentando disfarçar que o PMDB, a fisiologia e a politicagem não tiveram papel na sua nomeação para o ministério. Nas oito vezes em que estivemos juntos, perguntei sobre questões políticas e o PMDB. Uma delas foi no dia seguinte à revelação de que a pensão da filha de Renan Calheiros era paga pelo lobista da Mendes Júnior. “Ministro, e essa crise?”, falei. “Crise? Que crise?” Também nos vimos logo depois da divulgação de que Vavá, irmão do presidente Lula, estaria fazendo lobby. “Vavá, Renan: isso tudo passou ao largo para mim. A Saúde é a minha praia. Não participo de reunião alguma, não me chamam para o que quer que seja, só acompanho pelos jornais”, afirmou. E a última vez foi a caminho de uma entrevista. “Se me perguntarem algo de Roriz, de PMDB, vou dizer que o Congresso está investigando e só”, comentou com um assessor.
Em uma noite de julho, sentado na varanda de sua casa, Temporão conversava ao telefone. Ouvia-se música ao fundo. “O que eu fiz em quatro meses? Você está sendo exigente”, riu. “Mas, vamos lá. Levantei a discussão do aborto, estamos comprando dois remédios do coquetel anti-Aids por um preço muito menor, o que vai permitir investir esse dinheiro em outras áreas. Também estamos vendendo anticoncepcional por 40 centavos, vamos distribuir pílula do dia seguinte sem necessidade de receita médica. Levantamos também o debate da propaganda de bebidas. Achávamos que seria mais simples, mas ficamos sabendo que talvez tenhamos que mexer na lei. Vamos ter que mudar de estratégia. Estamos em uma democracia e é isso aí. Faltava uma política mais abrangente no ministério, e agora acho que tem. Agora existe um rumo. Para quatro meses, acho que está de bom tamanho. Estou muito satisfeito.”
Se os debates se tornarão realidade, se a Saúde no Brasil irá melhorar, e se Temporão poderá se sustentar no cargo sem politicagem são temas para conferir na quarta fase.