ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
O tribuno emotivo
Um criminalista se despede
Tiago Coelho | Edição 143, Agosto 2018
O advogado carioca Clóvis Sahione prendia as abotoaduras no punho – era uma manhã de julho e ele estava em seu escritório luxuoso no Centro do Rio de Janeiro. O senhor de 80 anos preparava-se para, pela última vez, defender um réu à frente de um júri popular. Ao longo de seis décadas, o criminalista construiu seu nome absolvendo clientes em casos de ampla repercussão. Estava convencido de que sua sustentação final seria coroada de êxito. “Vou ganhar esse júri por sete a zero”, vaticinou, displicente, pouco antes de sair para o fórum de Niterói.
Não que Sahione estivesse se aposentando: continuará a aceitar casos e defender clientes, só não está mais disposto a enfrentar audiências que podem se arrastar por horas. Com as pernas frágeis e a voz rouca, já não imprime mais o vigor habitual à retórica arrebatadora que o notabilizou. O criminalista estima já ter feito cerca de 300 sustentações orais à frente de um júri. (No Brasil, apenas crimes de morte e tentativas de assassinato são julgados assim.)
O caso daquela quarta-feira foi resumido pela promotora encarregada da acusação. Em 2011, dois homens foram sequestrados por traficantes do morro Souza Soares, em Niterói, após um deles ser reconhecido como parente de um policial. Ambos foram torturados e baleados, e um deles morreu. Por uma foto de jornal, o sobrevivente reconheceu Joselton Pereira da Silva, o Pit, como um dos criminosos – era ele o cliente de Sahione.
A juíza chamou Celso Eduardo Cavalcante, o sobrevivente, para relatar o ocorrido na madrugada do crime. O rapaz – que na época tinha 17 anos – contou que voltava de uma festa com o cunhado, Jeferson de Castro Campos, quando foram interceptados por um grupo de traficantes. Os bandidos os levaram para a favela, deram-lhes socos e chutes, queimaram-nos com cigarros e urinaram sobre eles. Em seguida, os dois foram amarrados e conduzidos ao ponto mais alto do morro.
Atiraram primeiro em Cavalcante, que caiu e se fingiu de morto; Campos, alvejado em seguida, foi enterrado numa cova rasa. Quando perceberam que o adolescente ainda estava vivo, dispararam dois tiros que atingiram seu baço e o fígado. Cavalcante foi enterrado sobre o cadáver do cunhado, onde ficou por cerca de dez minutos, até os bandidos debandarem. Ele saiu da cova e se deparou com duas alternativas: descer pelo caminho por onde tinham ido seus algozes, ou aventurar-se pelo precipício que havia do outro lado. Preferiu o abismo. Arrastou-se com dificuldade pelo mato até chegar a um condomínio residencial, onde foi socorrido.
Ao fim do depoimento, alguns jurados se contorciam em agonia. No auditório, pessoas levavam a mão ao rosto. Na tribuna, Sahione – que estava a caráter, de beca e jabô – permanecia impassível, repassando trechos do processo.
O criminalista sempre adota a mesma estratégia em suas defesas: “Atribuo emoção à lógica e vice-versa”, explicou, antes de ir para o tribunal. “A sustentação tem que entrar na alma do jurado.” Foi assim que conseguiu aliviar a pena da atriz Dorinha Duval, acusada de matar o marido em 1980 e execrada pela opinião pública após o crime. Para reabilitá-la diante do júri, Sahione defendeu a tese de “violenta emoção”. Argumentou que sua cliente se sentia humilhada pela recusa do marido, dezesseis anos mais jovem, em fazer sexo com ela. “Algum dos jurados já experimentou a dor da rejeição?”, indagou ao júri, composto de seis mulheres e um homem. Evocou também o histórico de abusos sofridos por Duval, que incluía um estupro e um aborto. A ré foi condenada a apenas um ano e meio de prisão e saiu aplaudida do tribunal, segundo registros da época.
A atriz não foi a única cliente famosa que Sahione livrou da prisão. Ele também conseguiu a absolvição do general Newton Cruz, acusado de sequestrar e matar um jornalista em 1982. Teve êxito ainda ao defender os três policiais acusados de matar o sequestrador do ônibus 174, um crime que paralisou o Rio numa tarde do ano 2000 e foi transmitido ao vivo para todo o país. Durante os debates, defendeu a pena de morte para “bandidos sem solução” – “Criminoso tem de morrer”, declarou na ocasião.
Envolveu-se ainda noutro episódio controverso: foi flagrado orientando um cliente a alterar sua assinatura em 2003, conforme publicou a imprensa à época – o criminalista nega o malfeito.
Sahione não precisou evocar a emoção para absolver Joselton Pereira da Silva, o réu da sua última sustentação oral. Sua estratégia consistiu em mostrar que não havia indícios suficientes para condenar seu cliente. O advogado lembrou que o sobrevivente vira alguma semelhança entre Silva e rosto de um de seus algozes numa foto publicada anos depois do crime. O criminalista perguntou a Cavalcante como era sua lembrança do homem que ele dizia ser Silva. “Era gordo, tinha nariz grande e manchas de espinha no rosto”, respondeu o rapaz. A descrição não batia com a figura do réu, que no início da audiência fora apresentado ao júri. Silva era forte, mas não gordo; não tinha o nariz grande, tampouco marcas de espinha. Sahione perguntou se Cavalcante já havia visto o réu pessoalmente. “Não.” Em seguida, pediu que ele identificasse o criminoso numa sala onde o réu estava com outros quatro homens. Cavalcante não reconheceu nenhum deles.
A própria promotora se encarregou de pedir a absolvição de Silva. Ainda assim, o júri se retirou para votar numa sala reservada. Os sete votaram em favor do réu, conforme previra o criminalista. Quando seu cliente entrou no tribunal algemado, depois que Cavalcante já se retirara, Sahione sussurrou-lhe algo com brandura. “Pedi-lhe que tivesse juízo”, ele contou depois à piauí. Quem o procurara fora a mãe do rapaz, que havia jurado que o filho não participara do crime. “Sabe como é, não sei negar o pedido de uma mãe”, disse. “Sou muito levado pelo coração.”
Silva ainda responde por associação ao tráfico – acusado de comandar a venda de drogas no Complexo do Viradouro, em Niterói, já foi preso duas vezes. Mas dessa vez Sahione não o defenderá – o criminalista se nega a aceitar casos que envolvam tráfico de entorpecentes.