FOTOMONTAGEM BETO NEJME. ANA CAROLINA FERNANDES_FOLHA IMAGEM / O MÁGICO E A CARTA DE TARÔ © COLEÇÃO PARTICULAR_THE BRIDGEMAN ART LIBRARY
O verniz do mago
Paulo Coelho é mais original como Dom Paulete do que como alquimista
Marcelo O. Dantas | Edição 17, Fevereiro 2008
Para entender Paulo Coelho, o mago, é preciso antes conhecer sua encarnação anterior, Dom Paulete, o letrista – irmão siamês do cantor e compositor Raul Seixas. Eles se conheceram em meados de 1972, em plena era do desbunde, durante uma visita que Raul fez ao jornaleco hippie 2001, editado por Paulo. A química entre os dois malucos-beleza foi imediata. Alguns baseados e viagens intergalácticas mais tarde, estava consolidada uma parceria filosofal, destinada a revolucionar o rock brasileiro. Entre 1973 e 1976, a dupla se provaria o início, o fim e o meio de toda rebeldia.
Juntos, Raul e Paulo gravaram seis LPs, entre eles Krig-ha, Bandolo! (1973) e Gita (1974), que figuram entre os melhores discos já produzidos no Brasil. Algumas canções da dupla, tais como Al Capone, Gita, Medo da Chuva, Como Vovó Já Dizia, Tente Outra Vez, Tu És o MDC da Minha Vida, As Minas do Rei Salomão e Eu Nasci Há 10 Mil Anos atrás, tornaram-se tão amadas que passaram a fazer parte do patrimônio inconsciente da nação. Havia, sem dúvida, um perfume de magia no ar.
Já de algum tempo dedicado a estudos ocultistas, Paulo introduziu Raul e diversos amigos no credo herético do bruxo inglês Aleister Crowley (1875-1947). Formado no Trinity College, da Universidade de Cambridge, Crowley dominava o grego, o latim e o hebreu; conhecia filosofia e literatura bastante bem; sabia tudo sobre temas esotéricos, e foi um dos primeiros a se aprofundar na tradição mística do Oriente. Em contrapartida, nasceu desprovido de caráter, tendo escolhido para si mesmo o codinome The Beast (A Besta).
Em 1904, enquanto visitava o Egito, Crowley convenceu-se de ter recebido do deus Hórus a incumbência de anunciar o advento de uma Nova Era, regida pelo dogma da thelema, termo grego que designa vontade. Em O Livro da Lei, obra escrita por inspiração do filho de Osíris, o novo credo foi sintetizado em dois aforismos:
I. Do what thou wilt shall be the whole of the Law
(Faze o que tenhas vontade – há de ser a totalidade da Lei)
II. Love is the law, love under will
(Amor é a lei, amor sob vontade)
Segundo Crowley, sua doutrina nada tinha a ver com o primado de desejos inconseqüentes. A Lei de Thelema almejaria conduzir o indivíduo ao encontro de sua “verdadeira vontade”, identificada com a natureza divina e destino espiritual de cada um. Influenciado pela filosofia de Nietzsche, ele via no exercício da vontade a recuperação do homem-heróico, além de um antídoto contra o moralismo castrador da cristandade. Nessa busca, todos os expedientes deviam ser utilizados, a começar pelos experimentos com magia sexual e drogas alucinógenas.
Durante a era hippie, tão cativante pregação fez de Crowley, falecido vinte anos antes do “Summer of Love“, figura venerada junto àqueles que julgavam possível fazer a síntese definitiva entre a psicologia junguiana, o livro vermelho de Mao e as profecias de Nostradamus. O líder do Led Zeppelin, Jimmy Page, chegou a comprar uma casa de campo que pertencera ao bruxo, situada às margens do Lago Ness, onde costumava reunir amigos para tomarem todas, descobrirem os segredos do universo e comporem canções.
No Brasil, com a cuca não menos cheia de substâncias exóticas, Paulo Coelho e Raul Seixas decidiram criar um misto de movimento anarquista e comunidade drop-out, a Sociedade Alternativa, que colocaria em prática a utopia ocultista de Crowley. Lançaram-na em grande estilo, com uma irresistível canção-hino.
“Faze o que tu queres, pois é tudo da Lei! / Da Leeeei!
Viva! / Viva! / Viva a Sociedade Alternativa!”
Durante os shows de Raul, Paulo distribuía o gibi-manifesto A Fundação de Krig-ha, no qual a dupla conclamava a rapaziada bicho-grilo a renegar o Monstro Sist e lutar em defesa da imaginação. No palco, após incendiar o público com a “música das esferas”, o roqueiro encerrava a noite com o hino à Sociedade Alternativa. Era a apoteose do delírio. Enquanto as massas cantavam numa só voz o refrão hipnótico, ele pregava a todos o novo credo libertário.
“O número 666 chama-se / Aleister Crowley / Faze o que tu queres / Há de ser tudo da lei / A lei de Thelema / A lei do forte / Essa é a nossa lei / E a alegria do mundo / Todo homem, toda mulher é uma estrela / (Viva / Viva / Viva a Sociedade Alternativa!) / Viva, viva, viva / Viva o Ano Aeon!”
A moçada adorava, vibrava, aplaudia. Mas ninguém cogitava a hipótese de levar aquilo a sério, salvo os trogloditas da repressão militar. Abrutalhados e paranóicos, terminaram confundindo o projeto-pirado de Raul com um núcleo subversivo de protoguerrilheiros. O desastre sobreveio em maio de 74: agentes do Doi-Codi prenderam diversos membros da Sociedade Alternativa e saíram baixando o sarrafo. Dom Paulete, mentor intelectual do grupo, esteve a ponto de virar um desaparecido.
O susto levou a dupla a se exilar por alguns meses, nos EUA, até os ânimos se acalmarem. Voltaram então para o Brasil, tomando de assalto as paradas de sucesso com a imortal Gita. Logo em seguida, num drible espetacular à censura, emplacaram o hit Como Vovó Já Dizia, um bem-humorado libelo contra a estupidez daquele regime.
“Minha avó já me dizia / Pra eu sair sem me molhar / Mas a chuva é minha amiga / E eu não vou me resfriar / A serpente está na terra / o programa está no ar / A formiga só trabalha porque não sabe cantar / Quem não tem colírio usa óculos escuros / Quem não tem filé, come pão e osso duro / Quem não tem visão, bate a cara contra o muro / É tanta coisa no menu / Que eu nem sei o que comer / José Newton já dizia / Se subiu, tem que descer.”
Semelhante parceria tinha, no entanto, o coeficiente explosivo de uma grande supernova. Seu destino era brilhar forte e depois fenecer. Egos tão gigantescos inevitavelmente terminariam por colidir.
A versão que o escritor Paulo Coelho escolheu contar dessa fase de sua vida não faz jus à realidade. Nas “Palavras Finais” de Veronika Decide Morrer (1998), ele simplesmente ignora a etapa. Já no autobiográfico O Zahir (2005), refere-se ao período ao lado do “cantor” com certo descaso, como se tudo aquilo não tivesse passado de uma grande perda de tempo. Ciúmes, ressentimento, amnésia? Talvez sim, talvez não.
Uma possível pista nos é dada em As Valkírias (1992), onde o autor revela que, no dia 25 de maio de 1974, em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, diversos integrantes da Sociedade Alternativa foram surpreendidos por fenômenos macabros, tendo alguns deles estado a ponto de serem tragados por vórtices satânicos de pura maldade. Nenhum jornal chegou a registrar tais incidentes, porém o mago jura ter visto o demo “num redemunho”, em plena sala de jantar.
A narrativa em terceira pessoa começa por esclarecer que os portais do inferno haviam sido abertos pela própria dupla de barbichudos, empenhada em fazer o país inteiro de besta.
“[Sociedade Alternativa] Não era uma música, era um mantra de ritual mágico, com as palavras da Besta do Apocalipse sendo lidas atrás, em tom baixo. Quem cantasse aquela música estaria invocando as forças das Trevas. E todos cantavam.”
Após revelar que o guru da Sociedade Alternativa, Aleister Crowley, concebera um plano mirabolante de dominação mundial que o levara ao extremo de maquinar sua inclusão post mortem na capa do LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Paulo Coelho descreve, compungido, o pesadelo que seu antigo self vivenciou, em pleno dia, ao lado da namorada. No apartamento em que os dois moravam, tudo tremia, tudo girava. Objetos ganhavam vida. O mal estava ali.
“Alguma coisa o estava puxando para dentro de um buraco negro que parecia se formar no meio da sala. Começou a ouvir barulhos – risos, vozes, coisas quebrando. Nunca tinha acontecido aquilo – nunca! (…) Ele ia morrer – por tudo o que tinha feito sem acreditar, por tanta gente envolvida sem saber, por tanto mal espalhado sob a forma de bem. (…) Estava no auge do sucesso – embora poucas pessoas soubessem o seu nome; e dizia que tudo aquilo era fruto dos rituais, dos estudos ocultos, do poder da magia.”
A julgar pelos rituais sugeridos por Crowley em Magick, Líber ABA, Book 4, a turma da Sociedade Alternativa deve ter mesmo aprontado poucas e boas. Muito sangue da lua direto na veia. Muita batmacumba no meio da madrugada. Uma besteirada sem fim. Acabou batendo o revertério, uma bad trip verdadeiramente cavernosa. E, como de praxe em tais ocasiões, a viagem negra de Dom Paulete terminou debaixo de um chuveiro frio, onde ele e a namorada se refugiaram, munidos da palavra de Deus.
“Foi até a estante, e voltou com uma Bíblia. (…) Era fraco, ia morrer, precisava humilhar-se, pedir perdão. O mais importante agora era salvar sua alma. (…) Queremos fazer uma troca. Oferecemos qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa pela salvação de nossas almas. Oferecemos nossas vidas, ou tudo que temos. Aceitai, Senhor.”
Salvo de morte certa e suplício eterno pelo pacto oportuno com El Shaddai – o Deus de Abraão – , o autor relata as conseqüências terríveis de sua infausta escolha.
“Sim, houve a troca – e o castigo veio com toda a severidade. Dois dias depois daquela manhã de 1974, eles eram presos pela polícia política brasileira, acusados de subversão por causa da Sociedade Alternativa. Ficou numa cela escura, igual ao túnel negro que vira em sua sala; foi ameaçado de morte, apanhou, mas era uma troca. Quando saiu, rompeu com o parceiro, e foi expulso do mundo musical por longo tempo. Ninguém lhe dava emprego – mas era uma troca. Outras pessoas do grupo não tinham feito a troca. Sobreviveram ao “buraco negro”, passaram a chamá-lo de covarde.”
Por detrás da aparente franqueza da narrativa acima, existem imensas inconsistências, nascidas da relação criativa do autor com os fatos de sua vida. É bem possível que o relato da jornada demoníaca de Dom Paulete não passe de fantasia em torno do horror que ele e seus amigos experimentaram nos porões da ditadura. Uma vez libertos, contudo, letrista e cantor mantiveram a parceria. Em 1975, um ano após a suposta entrega de sua alma a Iahweh Sabaoth, Paulo emprestava a um rock visceral de Raul os seguintes versos:
“Me dê um porco vivo pra eu encher a minha pança / Três quilos de alcatra, com moqueca de esperança / Diabo! / O diabo é o pai do rock! / (…) Enquanto Freud explica as coisas, o diabo fica dando os toques.”
Tais versos, conquanto eivados de figuras de linguagem, não ficariam bem em um breviário de missa. Se houve mesmo algum dia a dita viagem negra, ela deve ter ocorrido já no começo de 1976, quando ruiu a parceria dos dois barbichudos. Talvez tenha sido Raul quem mais sofreu com a separação. Sem Paulo ao seu lado, o genial baiano foi definhando, numa lenta e dolorosa agonia pública. Assim, em 21 de agosto de 1989, antes que os canibais-de-cabeça tomassem conta do país, Dom Raulzito se mandou para o além, com sua guitarra a tiracolo. O legado de sua fase áurea, acrescido de alguns clássicos tardios, eternizou-se entre nós.
“Diz que o paraíso já tá cheio, neném / Vou levar um lero com o diabo / Antes que o inferno fique cheio também / Vou rasgar dinheiro, tocar fogo nele / Só pra variar!”
Quanto ao mago, ninguém o perseguiu ou discriminou. Ainda em 1975, Paulo fez-se presente no LP Fruto Proibido, talvez o melhor momento da carreira de Rita Lee. Esse Tal de Roque Enrow, composição em que uma mãe se queixava ao psicanalista do fascínio de sua filha pelo ritmo das horas, tocou até enjoar nas rádios de Pindorama. No ano seguinte, Paulo tornou a colaborar com a diva no LP Entradas e Bandeiras. O estouro de verdade veio em 1977, com o compacto simples Arrombou a Festa, o maior hit do Brasil naquele ano. Em uma letra para lá de malvada, Paulo esculhambava os cardeais da MPB.
“Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu / Com a música popular brasileira? / Todos falam sério, todos eles levam a sério / Mas esse sério me parece brincadeira.”
O letrista, contudo, logo mostraria ao mundo que também tinha o seu telhado de vidro. No final da década de 70, contratado pelos tubarões da indústria fonográfica, passou a tratar música feito sabão em pó. Emprestou seus versos a cantores sem talento; ajudou a fabricar o cigano de araque Sidney Magal; fez versões piegas de chatices latinas para Elis Regina; e ainda chegou aos píncaros da venalidade com uma versão totalmente trash de I Will Survive, gravada pela divina Vanusa.
“Mas não, não eu / Eu não preciso / Pois aprendi que sem você / Sem seu amor, eu sobrevivo / Tenho sonhos pra sonhar / Tenho tanto amor pra dar / E eu sobrevivo, eu sobrevivo! / Hei! Hei!”
Se, depois disso, despediram Paulo Coelho, expulsaram-no das festas, trataram-no como indigente e negaram-lhe um pedaço de pão, não se pode alegar que o padecer tenha sido imerecido. Quando um sujeito que ridicularizava sem piedade o sorridente Silvio Santos abre um derivativo do programa Tudo por Dinheiro, todo o Universo conspira em seu desfavor. Viver, como diria um feiticeiro lá de Minas, é muito perigoso. Não se troca impunemente a Lei de Thelema pela Lady Laura.
Na primeira metade dos anos 80, Paulo andou sumido, produziu pouco. A temporada de vacas magras durou sete anos. Para muitos, o antigo parceiro de Raul havia perdido a chama criativa e se tornara uma carta fora do baralho. Foi durante esse período que o futuro mago realizou uma viagem à Europa, na qual encontrou aquele que viria a se tornar seu mentor, o misterioso J., mestre da todo-poderosa e secretíssima Ordem de RAM. A confiar na cronologia de O Diário de um Mago (1987), seguiram-se quatro anos de intensos estudos até o momento dramático, narrado na abertura do livro, em que Paulo fracassou em seu teste iniciático no Parque de Itatiaia, sendo obrigado a viajar para terras espanholas em busca da ambicionada espada do poder.
O que não se encaixa bem nessa versão é a breve encarnação de Paulo Coelho como especialista em vampiros. Em pleno ano de 1985, o então aprendiz dos mistérios herméticos da Tradição sagrava-se no Riocentro como um dos conferencistas mais festejados da 1ª Feira Esotérica. A revista Veja mencionou o “aplaudidíssimo curso ministrado pelo vampirólogo carioca Paulo Coelho”. O sucesso foi tanto, que lhe valeu um convite da editora ECO para escrever, como principal autor, o ambíguo Manual Prático do Vampirismo (1985).
“É impossível combater de uma maneira eficiente o vampirismo astral. (…) A única maneira com que se pode evitar ser consumido por um vampiro astral é transformando-se também num vampiro. (…) Não existe Bem ou Mal em tal atitude. Trocar energia é uma necessidade do Cosmos. (…) Todos os homens estão divididos apenas em duas categorias: os fracos e os fortes.”
Embora tenha sido breve, o surto vampirista de Paulo levanta suspeitas quanto à adequada observância do seu período de formação como mago, fazendo mesmo que se chegue a duvidar da existência da medieval Ordem de RAM [Regnum Agnus Mundi – ou, Reino (do) Carneiro do Mundo]. Parece estranho que um adepto, em plena época de seu treinamento, tenha cometido semelhante deslize sem comprometer sua credibilidade como homem digno de ser elevado aos graus superiores do conhecimento.
A magia, sustentam os entendidos, é arte que não deve ser ensinada a quem esteja despreparado. Com ela, vem o poder, e com o poder, as tentações. O aprendiz poderá facilmente converter-se, a exemplo de tantos políticos e tecnocratas brasileiros, em um bruxo renegado, que acabará dominado pelo lado obscuro da Força.
Seria a figura do “mago” mero jogo de cena, mais uma invenção da mente imaginosa do autor? Talvez. E qual o mal disso? Afinal, ninguém precisa do diploma de ocultista para publicar livros que tenham como personagem central um praticante de magia. Obras de ficção devem ser julgadas apenas por sua coerência interna e virtudes literárias.
No caso específico de Paulo Coelho, porém, foi ele mesmo quem fez questão de firmar junto ao público a imagem de um iniciado nos mistérios da arte. A doutrina ocultista é o eixo em torno do qual tudo gira nos seus textos – cuja legitimidade está fundada numa suposta capacidade do autor em manifestar dons e operar milagres. O Diário de um Mago (1987) surgiu no cenário editorial brasileiro não como a obra de um simples escritor, mas como o relato “verídico” do herdeiro de uma Tradição e detentor de uma sabedoria. Suas histórias são, antes de tudo, fábulas alinhavadas para servirem de veículo a uma verdade revelada.
Já no relato de sua peregrinação a Santiago de Compostela, Paulo Coelho começa a estruturar uma mensagem de cunho esotérico, com matizes levemente gnósticos, a partir dos conceitos de “Bom Combate”, “Ágape” e “Linguagem dos Sinais”. Mas é com O Alquimista (1988) que sua doutrina ganha forma definitiva. Nessa obra, a proposta de “ir atrás do sonho” ganha contornos de dogma, no individualismo exacerbado da “Lenda Pessoal”.
“É aquilo que você sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no começo da juventude, sabem qual a sua Lenda Pessoal. (…) Seja você quem for ou o que faça, quando quer com vontade alguma coisa, é porque esse desejo nasceu na alma do Universo. É sua missão na Terra. (…) Cumprir sua Lenda Pessoal é a única obrigação dos homens. Tudo é uma coisa só.”
A fidelidade de Paulo Coelho ao mote de Aleister Crowley – “Faze o que tenhas vontade” – seria comovente não estivesse tão incomodamente velada. O mago talvez tenha abandonado os rituais sugeridos por seu antigo guru e buscado aproximar-se de outras tradições místicas. Mas o “Hocus Pocus” filosófico da Besta inglesa ficou de tal modo entranhado em sua mente, que acabou sendo reprocessado de forma talvez inconsciente.
Lendo com atenção a obra do mago tem-se a impressão de que a única coisa que estudou na vida foram os escritos de Crowley. Sob o verniz alquímico de seus ensinamentos, persistem as antigas idéias ocultistas. Mesmo quando tenta ser gnóstico, apoiando-se em interpretações fantasiosas da doutrina sola fide (justificação pela fé) do apóstolo São Paulo, o mago se mostra apenas um antinomista de ocasião, incapaz de libertar-se do jugo da carne e dos apelos da matéria. A Lenda Pessoal é a Verdadeira Vontade, e somente através dela o homem poderá encontrar “Ágape”, o “Amor sob vontade”.
O mago se distancia do credo anárquico da Sociedade Alternativa mais pela renúncia ao bom humor dos velhos tempos do que por uma revisão profunda de suas convicções. Dom Paulete desafiava a caretice dos anos de chumbo propondo que os desejos e quereres (todos eles) fossem vividos com alegria e liberdade. Paulo Coelho, o escritor, abandona essa dispersão hippie, e propõe uma vontade única, a serviço do desejo individual. Ela é boa em si mesma e por si só. Quanto mais intensa, mais legítima – mais próxima da “Alma do Mundo”. Logo, destinada a cumprir-se.
“E quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo.”
O que Paulo prega é a concentração da vontade, eliminando-se qualquer empecilho ao seu cumprimento. Semelhante foco tornaria a vontade tão irresistível quanto uma lei da natureza. Ora, estamos diante de um postulado ocultista. O mago se limita a omitir a necessária “energização” da Lenda Pessoal, mediante a ação ritual dos encantamentos adequados. Segundo sua doutrina, a vontade é uma força tão pura e positiva, que chega a estar imbuída de sacralidade. De fato, o autor eleva o desejo juvenil ao plano de um ato de fé, capaz de abrir ao fiel as portas do Absoluto.
A doutrina de Paulo Coelho atua em freqüências complementares. À primeira vista, irradia uma aura de bondade. O caminho do espírito é belo e gratificante. Cada vez mais pessoas seguirão os seus sonhos e o Bem triunfará – pois ele nada mais é que o somatório dos bens acumulados por aqueles que seguem a sua Lenda Pessoal. No entanto, em um plano subliminar, essa mensagem atua sobre o lado obscuro do ser, insuflando o ego do leitor, entorpecendo seu espírito crítico, dando-lhe carta branca para agir apenas em benefício próprio. É a lei do lobo em pele de cordeiro. Um hedonismo radical, travestido de metafísica do egoísmo. De acordo com esse credo narcísico, a essência do homem reside na sua vontade: todo desejo é bom e saudável, e o que se quer é exatamente aquilo que se deve ter.
Desde a publicação de O Alquimista (1988), nada de essencialmente novo surgiu na doutrina do mago. O autor parece convencido de que encontrou a pedra filosofal com sua mistura exitosa de conhecimento epidérmico, espiritualidade de butique e erotismo gratuito. Em A Bruxa de Portobello (2006), a protagonista Athena desenvolve poderes mediúnicos e passa a estar em permanente contato com “a centelha da mãe”. Decide então pedir à sua discípula Andrea que invente um novo ritual.
“Ela continuou a despir-se. A blusa, a calça jeans, o sutiã – reparei em seus seios, os mais belos que tinha visto até então. Finalmente tirou a calcinha. E ali estava, oferecendo-me sua nudez.
– Abençoe-me – disse Athena.”
É a espiritualidade Sexy Hot, que um dia abrirá caminho para as núpcias alquímicas no Playboy Channel. Semelhante fórmula vem se repetindo nos livros do mago, sem que o público mundial dê sinal de cansaço. Mas, no Brasil, onde tudo começou, as redundâncias doutrinárias e o erotismo suburbano de A Bruxa de Portobello (2006) foram recebidos com frieza. Estaria a curva de sucesso do escritor próxima a um ponto de inflexão? Seria sua 11ª narrativa longa a marca do excesso, na total ausência de renovação?
Talvez. Onze é o número do mago. Sua via-crúcis iniciática ao longo do Caminho de Santiago tem onze estações, marcadas pelas onze práticas de RAM. Na iniciação de Brida, a jovem feiticeira faz uma viagem astral por onze esferas, onde visita os onze templos da Tradição. Veronika (com “k”, letra cujo número na gematria cabalística é onze) decide morrer no dia 11 de novembro. O demônio tenta comprar a alma da senhorita Prym com onze barras de ouro. E o tempo do ato sexual coelheano abandona a marca estabelecida por Irving Wallace para situar-se em exatos onze minutos. Onze é também o número mínimo da médium megalômana Athena, que logo à primeira tentativa encarna o espírito de Hagia Sophia, a Santa Sabedoria. A fixação de Paulo Coelho com a ruptura da dezena vem diretamente de O Livro da Lei, onde a Besta do Apocalipse anuncia, no aforismo 60:
“My number is 11”
(O meu número é onze)
Trata-se, na doutrina de Aleister Crowley, do número da renovação, da dualidade e do poder. Não por acaso, em As Valkírias (1992), a líder das meninas explica:
“Preparo o caminho. (.) Temos que dar onze voltas no deserto, passar onze vezes pelos mesmos lugares, repetir onze vezes as mesmas coisas. Foi tudo que me disseram para fazer.”
A primeira cena desse livro se passa no começo de 1988, quando Paulo apresenta a seu mestre o manuscrito de O Alquimista, ainda inédito. J. (que se hospeda no 11º andar de um hotel) insta-o então a buscar o seu anjo da guarda e aprender a conversar com ele, para “quebrar a maldição” de estar sempre destruindo aquilo que mais ama: o sucesso.
O anjo da guarda mencionado pelo mestre do mago pouco tem em comum com a legião de protetores comandada pelo Arcanjo Rafael. Sua origem está no Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, manual escrito pelo cabalista medieval Abraham de Worms, cuja edição inglesa, de princípios do século XX, foi prefaciada por Aleister Crowley. Nesse volume, o diálogo com o santo anjo guardião é alardeado como técnica que dotará o iniciado de controle sobre os espíritos inferiores e forças materiais. A confissão-com-ficção de Paulo Coelho chega a tais extremos de logro, que o autor jura haver renunciado a seu antigo ídolo, enquanto faz chegar ao público um livro 100% escarlate, verdadeira quintessência do conceito moderno do “besta-seller”.
“Os portões do Paraíso foram abertos de novo – disse. – Deus afastou o anjo que estava na porta, com a espada de fogo. Por algum tempo, ninguém sabe exatamente quanto, qualquer um pode entrar desde que perceba que os portões estão abertos.”
Só pode mesmo ter sido isso. Deus afastou o anjo que estava com uma espada de fogo na porta da Academia Brasileira de Letras, ABL, e o mago entrou de fininho. Paulo Coelho não quer fazer literatura. Sua prioridade é vender livros. Movido pelas estatísticas da moderna indústria editorial, ele convenceu-se de que o grande público gosta mesmo é de seu ocultismo açucarado, com tramas banais e finais miraculosos. Tal como o Dr. Igor, de Veronika Decide Morrer (1998), que manipula seus pacientes com furor demiúrgico, assim o mago contenta-se em iludir leitores, vendendo-lhes gato por lebre.
“A fé não é um desejo. A fé é uma Vontade. Desejos sempre são coisas para serem preenchidas. Vontade é uma força. Vontade muda o espaço à nossa volta. Mas, para isso, é necessário Desejo!”
Ao publicar seu 11º romance, o mago, qual a serpente Ouroboros, faz a volta completa e retorna ao ponto onde tudo começou. Suas palavras soam, enfim, como Aleister Crowley em estado puro. Mais fiel ao mestre, impossível. Nascido em outubro de 1875, o bruxo inglês julgava ser a reencarnação do ocultista Eliphas Lévi, falecido em maio desse mesmo ano. Paulo Coelho, nascido em 1947, ano da morte de Crowley, parece estar se tornando o herdeiro espiritual de ambos.
Esse retorno às origens revela, contudo, um homem mudado. Dom Paulete, o moleque maravilhoso, letrista de mão cheia, já não existe. A irreverência e bom humor de antanho sumiram. Sua alma conturbada, antes tão criativa, parece haver sido consumida pelo brilho falso do Monstro Sist.