Mulheres no Rio Gebo, na Guiné-Bissau: “De meu posto de observação, recolhi do momento o que ele tinha de essencial – a paz que ali reinava. Antecedia em séculos à chegada do estrangeiro e colonizador, que mais adiante desembarcaria com projetos de dominação” CREDITO: VIRGÍNIA YUNES_2010
Oásis ma non troppo
As portas da sorte me aguardavam na Guiné-Bissau e eu não sabia
Edgard Telles Ribeiro | Edição 174, Março 2021
Em 1982 fui transferido, por seis meses, para uma pequena embaixada na costa ocidental africana. Consegui assim o que, no Itamaraty, denominamos um “serviço provisório” – missões curtas em países remotos ou periféricos. Em meu caso, deveria substituir o titular de nossa representação na Guiné-Bissau, que solicitara férias e pretendia, em seguida, entrar em licença para tratamento de saúde. Como ele não contasse com um assessor graduado na antiga colônia portuguesa, fui designado de Brasília para a função. Tinha, na época, 37 anos.
O que eu desejava, na realidade, era mudar de ares e dar uma freada de arrumação na existência frustrante que vinha levando até então, da qual um final de casamento fora o inevitável corolário. Animado por esses propósitos, desembarquei em Bissau com as fotografias de meus três filhos e uma mala repleta de livros.
Fui recebido no aeroporto da capital pelo embaixador. Antes que agradecesse o que considerei ser uma gentileza de sua parte, ele se apressou a me dizer que “havia apenas um voo semanal saindo de Bissau” – no exato avião no qual eu acabara de chegar. E que, tão logo limpa e reabastecida a aeronave, ele partiria.
Ainda surpreso com a velocidade dos acontecimentos, confiei minha mala ao motorista e permaneci no aeroporto até que o voo do embaixador desaparecesse com ele na linha do horizonte.
O que me impressionou foi o silêncio que sucedeu ao rugido dos reatores daquele avião. Não se ouviam sons ou ruídos de espécie alguma. A torre de controle estava deserta. Não havia voos para serem anunciados, nem pessoas chamadas a fazer o que quer que fosse. A meu redor, apenas o descampado e a claridade matinal.
No pátio, além de um velho DC-3 estacionado em um canto (sem as hélices de seus dois motores), notei um teco-teco recoberto por uma lona, um jipe empoeirado e o caminhão de abastecimento há pouco utilizado. Fora esse conjunto inanimado, dois vira-latas dormiam à sombra de uma árvore. A sensação de harmonia, tranquilidade e repouso se estendia ao modesto galpão de madeira no qual eu me encontrava, responsável pelos serviços de alfândega e imigração – agora fechados.
No trajeto para a residência, descobri que o motorista era um de meus quatro assessores, sendo os demais uma cozinheira que também arrumava a casa, uma datilógrafa encarregada do arquivo e do telex, grupo a que se somava um rapaz que fazia de tudo e funcionava como mensageiro quando as linhas telefônicas da cidade caíam.
Tanto a residência quanto o escritório eram casas pré-fabricadas que tinham sido utilizadas como pavilhões brasileiros em feiras comerciais na Europa. Seus corredores ainda ostentavam vestígios de etiquetas dizendo “Visit Brazil!”. As duas casas dividiam um único terreno, em meio a um jardim onde fora fincado um mastro no qual tremulava a bandeira do Brasil. Naqueles poucos metros quadrados, eu viveria e trabalharia por seis meses.
Era sábado. Dediquei as primeiras horas do fim de semana a dar início a minha instalação, o que incluiu desfazer a mala e encarar um excelente banho frio (dos três que tomaria até a noite), além de rearrumar a disposição dos móveis no quarto a mim destinado – de modo a me valer da vista para a única árvore existente no jardim. Isso feito, saí às compras no mercado da cidade.
Naquele primeiro dia, sob o olhar atento e divertido da cozinheira, despachei para a garagem três quadros retirados das paredes da sala de estar, com os quais me senti impossibilitado de conviver, obras que em boa hora substituí por panos multicoloridos comprados no mercado. Em seguida, sepultei em três gavetões as fotografias de meu colega tiradas ao longo de sua carreira – nas quais ele aparecia envergando uniformes, casacas (em dois casos com cartolas), além de múltiplas condecorações.
No avião, havia lido sobre uma cidade muçulmana chamada Bafatá, a uns 200 km ao Norte de Bissau. Imaginei-a com mesquitas e minaretes reminiscentes das mil e uma noites dos contos de minha infância, quando Simbad, o marinheiro, e a Ilha de Zanzibar frequentavam meus sonhos, em meio a dunas, coqueiros, odaliscas e califados secretos.
O carro da embaixada era um Toyota com apenas um ano de uso e pneus em bom estado. Na cozinha da residência encontrei uma caixa vermelha de isopor com rodinhas, que planejei encher de gelo, sucos, cervejas, frutas e alguns sanduíches. No aeroporto, adquirira um mapa do país, que abri sobre a mesa da sala e examinei com o motorista, decidido a partir já na manhã seguinte.
De início espantado com a energia de que dava provas a nova chefia, o motorista insistiu em me acompanhar. Aos poucos, porém, sentindo-me determinado a seguir viagem só, acabou reconhecendo que a Guiné-Bissau, modesta em matéria de estradas, contava com pelo menos uma razoável rodovia, que passava por Bafatá a caminho do Senegal. O trânsito de domingo, além do mais, se limitaria a algumas caminhonetes e bicicletas.
Assim foi que, com exatas 24 horas no país, e depois de uma noite bem-dormida, embarquei para a conquista de meus novos domínios munido da caixa vermelha de isopor, de Justine (na época relia O Quarteto de Alexandria) e ostentando de pura farra um chapéu de explorador inglês (daqueles pesados, desconfortáveis e duros como pedras) que encontrei metido no fundo de um armário. A sensação que tinha era de estar finalmente saindo de casa após minha separação.
Cheguei sem maiores problemas aos arredores de Bissau e, aliviado com a qualidade do asfalto, enveredei pela estrada estreita de mão dupla. As caminhonetes que passavam por mim levavam pirâmides de trouxas e malas empilhadas no teto, entre animais de pequeno porte e galináceos diversos. Ao longo do trajeto, pelo menos três galinhas de pés amarrados voaram em curvas mais acentuadas, para a alegria da garotada que se mantinha à espreita dessas benesses em pontos estratégicos do caminho.
A paisagem, árida às vésperas da estação de chuvas, se revelou familiar para quem, como eu, por tantas vezes fizera a Rio-Brasília de carro nos anos 1970 – e conhecia de perto a vegetação rasteira que se estendia de Minas Gerais ao planalto goiano. Até os vilarejos pelos quais passava lembravam os nossos, com as biroscas de beira de estrada vendendo de tudo um pouco, entre sacos de cereais adornados por gatos ou cachorros adormecidos, crianças jogando bola ou pulando amarelinha, além de galinhas e pintos ciscando o chão de terra batida, para não mencionar carrocerias velhas e enferrujadas de todo tipo às voltas com etapas variadas de lanternagem.
A uma centena de quilômetros de Bafatá, depois de uma curva ao longo da qual a vegetação rasteira fora substituída por árvores de maior porte, dei com um extenso gramado à beira de um rio, que logo desapareceu por força de uma segunda curva, ela também sem acostamento. Pelo que consegui notar, contudo, tratava-se de um oásis inesperado. Registrei mentalmente a quilometragem e, feitos os cálculos, prometi a mim mesmo que, na viagem de regresso, daria um jeito de parar na redondeza.
Essa visão serena, quase paradisíaca, que tanto destoava dos cenários que até ali vinham desfilando monotonamente por minhas janelas, alterou meus planos de viagem. Tanto assim que, mal chegado a Bafatá, e confrontado, ruela após ruela, com as tristes casas de alvenaria e telhados de zinco, todas envoltas em uma melancólica impessoalidade, tomei sem hesitar o rumo de regresso, deixando em meu retrovisor o que não passara de um equívoco. Um rio brilhava agora em minhas prioridades, sem califas e odaliscas. Mas com um estranho poder de sedução.
De olho na quilometragem, reduzi a velocidade nas imediações de meu novo destino, a tempo de dar com um minúsculo promontório, onde desaparecemos, meu carro e eu, entre as folhagens.
E então tudo mudou.
Poucos metros abaixo de onde me encontrava, um grupo de homens e mulheres se dedicava a tarefas singelas, dessas que apenas antigas tradições enraízam na rotina das pessoas. De seios descobertos, com bebês ou crianças atadas às suas costas, as mulheres lavavam roupa à beira d’água, enquanto, não longe delas, em três canoas, os homens se ocupavam da pesca de arrastão. A uni-los, águas verde-claras que faziam, pela lentidão de sua correnteza, um suave contraponto à animação reinante. Uma alegria festiva dava vida àquela estampa.
De meu posto de observação recolhi, do momento, o que ele tinha de essencial – a paz que ali reinava. Antecedia, em séculos, à chegada do estrangeiro e colonizador, que mais adiante desembarcaria com seus projetos de dominação. Era uma cena que a tudo sobrevivera.
Em cada embarcação, com a ajuda de longas varas de bambu fincadas no lodo, um adolescente se encarregava de manter a canoa quase imóvel à altura do grupo de mulheres, de tal forma que os pescadores e suas parceiras conversavam entre si e riam ao sol. Nas brechas de silêncio, ouvia-se o leve roçar das redes caindo no rio, um ruído apenas perceptível, mas que chegava a meus ouvidos com a delicada sonoridade de uma carícia feita à superfície das águas.
Trezentos metros, se tanto, separavam as duas margens do rio, sendo que, do lado oposto, predominava uma vegetação cerrada. Exceto pela faixa na qual se concentravam as mulheres e as crianças, o restante do gramado só despertava as atenções de pássaros e borboletas.
Em um primeiro instante, cheguei a pensar que não teria o direito de violar, com minha presença, aquelas paragens. Nobres intenções logo relegadas ao esquecimento – pois passava das duas da tarde e eu me descobria faminto. As águas do rio, além do mais, acenavam para mim.
Ao chegar ao gramado conquistei, como previa, notável visibilidade. Ergui meu braço direito em saudação, um gesto talhado para sinalizar respeito pelos senhores daquela região. Ainda assim, os músculos de minhas pernas, enrijecidos, retiravam de meus passos qualquer sombra de naturalidade.
Arrastava-me penosamente por aquele cenário adentro, eis a verdade. E devia ser mesmo patética a figura fragilizada do homem branco com seu chapéu de explorador em meio à paisagem intensamente verde, seguido de perto, tal uma cadelinha presa a sua coleira, pela fiel caixa vermelha de isopor.
O tempo, no entanto, logo se encarregaria de estabelecer um embrião de convívio entre nós. E, em questão de minutos, a pequena comunidade voltou a seus afazeres, enquanto, um pouco atrás, recostado sobre minhas toalhas, eu me dedicava a Justine. Nem os risos do grupo nem suas conversas pareceram mudar de tom ou sofrer alteração. E, se fui olhado, em nenhum momento me senti observado.
No entanto, era evidente que, no coração da estampa, no recanto secreto onde a imagem pulsa, algo sucedera. Como demonstravam os pássaros e as borboletas – que agora brilhavam por sua ausência.
Na meia hora seguinte tive a sensação de ter sido esquecido, tão imerso estava em meu romance. Deixara de lado os sucos e optara pelas cervejas, o que revestira minha leitura de uma intensidade adicional. Tanto que, alimentado pelos sanduíches e fortalecido pelo álcool, emergi inspirado das páginas de meu livro.
Mas consegui me controlar a tempo. E foi calmamente que retirei a camiseta, ajustei a bermuda à cintura, caminhei até o rio e penetrei discretamente em suas águas.
Os homens guardaram silêncio em suas canoas e, a rigor, mal me olharam – concentrados que estavam em suas redes. Em contraste, uma eletricidade toda especial contaminou os risos e cochichos das mulheres.
Ah, o frescor daquelas águas…
Durante um tempo que nem teria como definir nadei de um lado a outro daquele rio e por diversas vezes desapareci sob sua superfície. Desisti de inspecionar de perto a outra margem, preferindo boiar ao sabor da correnteza para, em seguida, regressar em braçadas lentas ao ponto de partida, percurso sinuoso que realizei inúmeras vezes.
De quando em quando, voltava-me para os pescadores em suas canoas e registrava com prazer um ocasional gesto encorajador. Mantive certa distância deles, para não afugentar seus peixes. E evitei, por uma questão de pudor, olhar de muito perto para as mulheres, ainda que, a distância, continuasse a escutar seus risos. Limitava-me a sorrir, mas para os deuses – a quem agradecia por minha sorte.
Decorrido um bom momento, no entanto, lembrei-me do conselho recebido de meu motorista: evitar dirigir à noite dada a virtual inexistência de sinalização na estrada. E, como a tarde principiasse a cair, tomei o rumo de minhas toalhas. Lá chegado, comi um último sanduíche e bebi mais uma cerveja.
Meus vizinhos também davam início a suas providências de partida. As mulheres dobravam as roupas que haviam secado no gramado, os homens recolhiam suas redes ou amarravam as canoas a troncos baixos escondidos na vegetação. Deduzi que morassem não longe dali e até alimentei a fantasia de conhecer suas choupanas e algo saber de suas rotinas. Algumas palavras de português certamente falariam.
Enquanto embarcava nessas ilusões, meus companheiros começaram a tomar o rumo da estrada. Os homens dividiam entre si as redes e as cestas com seus peixes. Esbeltas, as mulheres equilibravam suas trouxas de roupa à cabeça, sempre com os filhos atados ao corpo.
No trajeto gramado acima passariam bem próximos de minhas toalhas. Sensível à beleza natural que nos cercava, e grato pela tarde em certa medida passada juntos, fiz um segundo gesto de saudação. Mas dessa vez fui além: abri minha caixa de isopor e ofereci as bebidas e frutas que me restavam. Com vagar, o grupo se aproximou.
Chegados a uma distância de alguns metros, no entanto, todos pararam. E o mais velho entre eles deu uns passos adicionais em minha direção. De pé, um sorriso nos lábios, eu aguardava.
– Russo? – ele indagou muito sério, em um português rústico e gutural.
– Não… – respondi surpreso.
– Português? – ele voltou a indagar no mesmo tom abrupto.
– Não… – respondi novamente, sem abrir mão de meu sorriso.
– Cubano? – ele perguntou por fim, já meio impaciente.
– Não… – insisti por meu lado, sentindo que chegara a hora de colocar as coisas em seu devido lugar – … brasileiro!
A surpresa do homem se fez acompanhar de um sobressalto. Ele reagiu, na realidade, como se estivesse alarmado. Juntou-se aos demais e por alguns instantes trocaram frases incompreensíveis, enquanto as mulheres, sérias pela primeira vez, me examinavam em absoluto silêncio. Mais de uma vez, escutei a palavra “Brasil” sendo murmurada. Fiquei também com a impressão de que discutiam. Em duas ocasiões, elevaram o tom de voz em sinal de discórdia.
Crianças começaram a choramingar, o que levou as mulheres a se afastar com duas delas. Era um pouco como se, tendo deliberado, os homens necessitassem agora de espaço para produzir um veredito.
Por fim, o idoso aproximou-se novamente. Dessa vez, porém, deu-me as costas e se virou para as águas, àquela altura azuladas, que contemplou em silêncio. Ergueu o braço direito na direção da correnteza e, em um tom mais baixo, quase entristecido, como se desse forma a um pensamento e não a uma palavra, murmurou:
– Rio…
Em seguida voltou-se para mim, cravou seus olhos nos meus e exclamou bem alto, o dedo em riste a centímetros de meu rosto:
– … crocodilo!
Espantando, e sem desviar meu olhar do dele, repeti o brado na mesma entonação, como se de um grito de guerra se tratasse:
– Rio… Crocodilo!
Somente então ele baixou o braço. E todos passaram por mim.
No dia seguinte, ao realizar uma visita protocolar a meu colega da Grã-Bretanha, soube que, meses antes, um engenheiro búlgaro fora devorado por cinco crocodilos naquele exato trecho do rio.
– Você teve sorte… – comentou o inglês. – Eles deviam estar ocupados em outro local.
Acrescentou entre duas baforadas de seu cachimbo:
– Os guineenses têm adoração pelos brasileiros. Por causa do futebol. Por conta desse time de vocês, com jogadores geniais que eles consideram africanos. Detestam os colonizadores portugueses, naturalmente. E com mais razão ainda, sabe-se lá por quê, esses cooperantes russos ou cubanos, que lhes ensinam coisas inúteis que nada têm a ver com sua cultura…
Após um novo silêncio, concluiu:
– O pobre do búlgaro acabou caindo na categoria mais genérica dos estrangeiros.
E sorriu, entre irônico e amargo:
– Pagou por algum horror que seu país tenha cometido em outra parte do mundo, quem sabe até em outros tempos… Se não como colonizador, como representante de uma vaga forma de imperialismo. Essa é uma conta, como você sabe, que nunca fecha.
As famosas contas que nunca fechavam…
Já lá se vão hoje quase quarenta anos dessa história. De lá para cá, nossa embaixada em Bissau conquistou representatividade maior, com direito à construção de residência e chancelaria novas, ambas erigidas no terreno antes ocupado pelas casas pré-fabricadas onde eu vivera e trabalhara. Gestos que conferiram densidade a nossos laços bilaterais naquela nação, como sucederia nos demais países africanos com os quais estabelecemos relações diplomáticas ou fomos consolidando laços já existentes.
Não é disso, contudo, que desejo tratar aqui. Mesmo porque são as pessoas que dão graça a certas histórias – e não foram poucas as que conheci naqueles tempos. Falarei de três delas, e assim mesmo em pinceladas muito singelas, recolhendo, de cada uma, algo que me marcou. Nada de grandioso ou espetacular, como se verá; mas pequenos flagrantes que, a sua maneira e a meus olhos, ajudaram a compor determinados contornos de um país em transição.
Um país com um sentimento de identidade nacional à flor da pele, decorrente do processo de luta por sua independência, processo que durara mais de uma década, envolvera todas as colônias de Portugal na África e se encerrara apenas em 1974. Ou seja, meros oito anos antes de minha chegada a Bissau. O tempo que terá levado para que as pessoas comuns voltassem a ter uma vida normal.
A primeira delas foi Pombo, o piloto português do DC-3 que eu havia visto sem suas hélices, na pista do aeroporto no dia de minha chegada. Já não me recordo – se é que soube em algum momento – se Pombo era o sobrenome de meu novo amigo (amizade costurada no bar do único hotel de Bissau) ou seu apelido. Inclino-me pela segunda hipótese, pois era um piloto excepcional.
Conseguia a proeza, nas ilhas vizinhas à costa da Guiné, de pousar um avião que nada tinha de leve ou maleável em uma pista que encolhia a cada metro – destino a que já chegávamos todos meio altos, passageiros, caronas e aeromoças. Porque sabíamos que no momento lancinante e vital não haveria tempo para um último drinque… E um último drinque acaba sempre sendo, em situações de perigo, o que mais apreciam diplomatas, jornalistas e aventureiros variados. (Éramos todos naquela viagem, vale lembrar, jovens ou quase jovens – ninguém com mais de 40 anos pisaria, em sã consciência, naquele avião.)
Por quatro anos, Pombo havia lutado nas tropas portuguesas de ocupação e aprendera a respeitar os rebeldes guineenses. “Eram corajosos e lutavam como poucos”, contou-me. “E tinham como líderes heróis que faltavam a nossas fileiras.” Para minha surpresa acrescentou: “Casei-me com a irmã de um deles, fiquei amigo de vários.” Palavras que redimiram a meus ouvidos anos de crueldades e insanidades habituais em guerras de colonização. Daí a relevância que atribuo a esse afeto, de que fui testemunha em mais de uma ocasião ao também conhecer seus novos amigos.
Pombo recusou-se a retornar a Portugal depois da independência. Disse que havia “visto horrores em quantidade suficiente para dez vidas” – e que, em Lisboa, já não poderia voltar a beber com seus amigos ou conversar sobre política e futebol. E muito menos namorar uma portuguesa “dessas de óculos e bolsinha”. Ficou então em Bissau, onde se dedicou a reunir as peças de dois DC-3 derrubados durante a guerra, fabricando, a partir delas, um bom avião no qual acabei voando mais de uma vez – para Dacar e para o Arquipélago dos Bijagós. (Eram os dois destinos registrados da Air Bissau naqueles anos, companhia da qual o DC-3 era a única aeronave.)
Demorei a conhecer guineenses fora do mundo oficial, com quem pudesse conversar sobre política ou economia, mas acabei ficando amigo de alguns jornalistas locais, regra básica quando se chega a um país sem acesso claro a fontes, confiáveis ou não. De um deles ouvi uma confissão difícil – um desabafo desses que só surgem na calada da noite e assim mesmo com a sagrada ajuda de alguma bebida: “Quando seu país é um ponto no mapa e esse mapa faz parte do Terceiro Mundo, não há manchete jornalística que erga sobrancelhas de quem quer que seja, ou produza efeitos.”
Apesar de sua melancolia, a frase era sobretudo dramática, o que me levou a tentar relativizar a frustração evidente de que vinha revestida. Em vão: meu interlocutor se mantinha irredutível. Até que, pensando em meu país (e no regime militar em meio ao qual vivíamos desde 1964, e do qual somente nos livraríamos três anos depois), abri o jogo: “Pelo menos, aqui, vocês não têm censura! Nem ditadura! E escolhem livremente suas lideranças. Por terem conquistado sua independência na marra!”
Era verdade, mas também se fazia tarde – e o jornalista, quem sabe cansado, não levou minhas palavras em conta. Talvez por não ter como contextualizá-las ou situá-las em um parâmetro que lhe fosse familiar. O bar estava deserto, além do mais, a pracinha ao lado parecia abandonada, o que acentuou aquela tristeza compartilhada no coração da África.
Mas não era pouco o que ela denunciava – as distâncias que tardariam uma eternidade para serem reduzidas. E, de fato, somente anos depois, a famosa frase sobre desigualdades nos meios de comunicação (“guerras que não saem na CNN simplesmente não existem”) se tornaria conhecida e abriria espaços para um debate sobre o que mereceria, ou não, as atenções gerais no horário nobre.
A terceira figura, que por anos a fio acabou sendo a primeira em minhas lembranças, foi Glória, que namorei depois de cortejá-la longamente, pois era negra e, como me dizia e repetia, “namorar um branco por esses lados é difícil, pá”. E como eu insistisse em saber por que, ela confessou que, “para sua surpresa, descobrira-se com preconceitos raciais”.
Entendi, por fim, o óbvio. Ou seja, que em Bissau o preconceito, quando existia, operava em sentido inverso ao que me formara (ou deformara) no Brasil. E aquele espelho invertido, além de abrir minha cabeça para o inesperado, cedeu espaço ao encantamento.
Glória, por seu lado, nada cedia em terreno algum. Achava “enorme graça” em minhas tiradas, mas até aí montava sua admiração. E nisso ficávamos, eu encantado, ela plantada… Foi preciso que uma tia dela, funcionária graduada do governo local (que tinha simpatia por mim), articulasse com delicadeza toda uma intriga amiga a meu favor. Somente assim as coisas melhoraram.
Ela deixou de ser arredia e se tornou até carinhosa, mas sem abrir mão de sua timidez inicial. Vinha de uma relação complicada, cujos pormenores não revelou. (E em momento algum demonstrou maior interesse pelo final do meu casamento.) Não era assim surpreendente que ela se fechasse para mim, um homem que, além de estrangeiro e branco, tinha data mais ou menos certa para regressar a seu país. Sabia que eu dificilmente retornaria um dia. Mas fizemos planos de nos rever em Lisboa, onde seu irmão servia como diplomata. Esse reencontro, porém, apesar da seriedade de nossos propósitos, nunca ocorreu. Uma pena, pois gostava dela… Poderá não ter sido uma grande história de amor, mas creio que, para ambos, terá ficado entre as mais delicadas, curiosas e instigantes de nossas vidas.
Em uma única ocasião, Glória deixou de lado sua timidez e chamou a si, por assim dizer, a iniciativa de nossos embates noturnos no leito onde dormíamos. Para tanto, porém, foi necessário que o destino interviesse. A casa onde ela vivia, dotada de um teto de zinco, ficava diretamente debaixo de uma jaqueira. E, uma noite, uma jaca desabou do alto, produzindo um estrondo absurdo na escuridão. (Por pouco tive um ataque cardíaco, pois viajava em sonhos com Pombo e achei que nosso DC-3 tinha se espatifado sobre minha cabeça.) Foi quando Glória murmurou: “Não é nada, pá, não passa de uma jaca…”, antes de prosseguir naquele sotaque aveludado que a meus ouvidos soava como melodia “… mas já que estás acordado, venha cá, meu brasileirinho…”
Quando regressei a Brasília ao término de minha missão em Bissau, fui designado pelo então secretário-geral do Itamaraty, a bela figura de João Clemente Baena Soares, como secretário executivo do Ibecc (Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura) – que era, na realidade, a Comissão Nacional do Brasil para a Unesco. Sediado no Rio de Janeiro, o instituto era presidido por Guilherme Figueiredo, que acabara de ser empossado.
Escritor e dramaturgo, autor de peças memoráveis como A Raposa e as Uvas, Guilherme Figueiredo era, sem favor algum, uma figura querida e respeitada entre os intelectuais brasileiros. Como criador polivalente que foi, também escreveu roteiros para o cinema, teve textos musicados e se notabilizou como professor de história (era reitor da Unirio, a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Antítese perfeita de seu irmão João Baptista Figueiredo (na época nosso carrancudo presidente da República), Guilherme acabara de ser indicado como presidente do Ibecc pelo conselho daquele instituto.
A situação era curiosa. Ambos os presidentes, um da República, o outro do instituto… O primeiro, todo-poderoso, apadrinhado pelo general Geisel e endossado por um colegiado militar, mandava no país; o segundo, artista, sem poder algum, mas apreciado pelo meio cultural, por educadores e cientistas – e mandando, quando muito, em seus personagens.
Tinham, os dois, uma relação reconhecidamente complicada e mercurial. O prudente Baena Soares, quem sabe por mero instinto, achou conveniente que o irmão civil contasse, a seu lado, com um diplomata familiarizado com a Unesco. E como eu vinha da área cultural do ministério, na qual militei por boa parte de minha carreira, fui convidado para a função. Aceitei sem hesitar.
Não vou dizer que ficamos amigos, Guilherme Figueiredo e eu (quase trinta anos separavam o grand seigneur de seu jovem assessor), mas nos demos muito bem. Naqueles tempos eu não escrevia, mas provavelmente já alimentava o sonho, o que nos aproximou ainda mais – como bem sabem os candidatos a autor.
Meu novo chefe tinha notado, em meu currículo, que eu havia sido crítico de cinema no periódico O Jornal, onde ele também escrevera quando jovem. Achou graça na coincidência. Conversávamos sobre tudo um pouco, o que naturalmente incluía falar mal dos militares, temática a que eu aderia pisando em ovos, dada a combustão familiar de que o assunto também se revestia. Mas foram trocas agradáveis, amparadas pela brisa fresca da tarde que nos chegava das janelas, ambos de olho nas palmeiras do Palácio e, ao fundo, no Corcovado.
Inevitavelmente, em um desses momentos mais confessionais, falei de Bissau e de meus crocodilos. E Guilherme Figueiredo se declarou fascinado pela história. Encarou-a como se antropólogo fosse, examinou-a por diversos ângulos, dissecou-a de mil maneiras e, por fim, me assegurou que havia ali ensinamentos múltiplos a serem colhidos. Chegou a pensar em transformá-los em peça teatral, ideia que felizmente abandonou dias depois.
Mas não abandonou o tema. Mais de uma vez me perguntou se eu não teria sentido mágoa de meus “companheiros de piquenique”. Afinal, ao permitirem que eu fosse o objeto do desejo alheio – “dos crocodilos, no caso” –, tinham demonstrado uma frieza exemplar, “além de notável coerência política”. Pois, segundo ele, aqueles homens e mulheres haviam decidido que a cor de minha pele denunciava o colonizador português, ou, com mais razão, os neocolonizadores que em tempos mais recentes continuavam “a sugar as riquezas africanas, russos e cubanos incluídos”. Daí o silêncio olímpico por eles adotado enquanto eu me banhava. Tratava-se, segundo ele, de “um silêncio eloquente, de forte conteúdo ideológico”.
Para amenizar tanta retórica, também dava ocasionalmente um close cinematográfico (“Vejo seu chapéu de explorador boiando rio abaixo e, ao fundo, os crocodilos palitando os dentes na grama!”). Certa vez mesclou em uma só frase política externa e dadaísmo: “Uma pena, no fundo, você não ter sido comido. Desfeito o equívoco, e diante da consternação geral, o incidente teria aberto inúmeras portas para nossa política externa na África!”
“Não teria deixado de ser uma parceria inédita…”, reconheci por meu lado.
Parceria ou não, o episódio que por pouco me vitimou jamais saiu de minha memória. Fico achando que, tendo ocorrido imediatamente após minha chegada à Guiné-Bissau, abriu portas pessoais, intransferíveis – e sobretudo simbólicas.
Portas da sorte… Como se, ao me poupar, o país também tivesse me adotado.
Nunca me esqueci da delícia representada pelas águas límpidas daquele rio, da delicadeza de meus companheiros de gramado (que, sensibilizados ao me saber brasileiro, não deixaram de me alertar para um futuro perigo, caso retornasse àquelas paragens), da sensação de afeto que me ligaria para sempre aos amigos que fiz por lá.
Um povo heroico, além do mais, que soube conduzir sua guerra de independência contra Portugal pelas mãos de gente do quilate de Amílcar Cabral e Nino Vieira, homens da estirpe de um Patrice Lumumba no Congo – e de tantos outros guerreiros destemidos pelo continente africano afora.
Quanto ao diplomata inglês e seu cachimbo, creio que, no que me dizia respeito, minhas contas, sim, tinham fechado. Por cortesia de uma natureza que, generosa e cúmplice, me protegera, permitindo que meus filhos continuassem a ter pai até os dias de hoje. E que o diplomata que eu era abrisse espaço para o escritor no qual aos poucos me transformaria.
Atento aos pássaros e às borboletas (bem como às jacas, naturalmente).
Leia Mais