Betina González, em Barcelona, ao receber o prêmio Tusquets, em 2013: para a autora, o senso de deslocamento que toda mulher enfrenta ao escrever deve servir para potencializar sua literatura, mesmo sob as pressões descabidas do meio CRÉDITO: EFE_ALBERTO ESTÉVEZ_2013
A obrigação de ser genial
Para uma mulher, só a obra-prima permite que o crime cometido em solidão – o de escrever – seja perdoado
Betina González | Edição 196, Janeiro 2023
Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina
Cuidado! No país mais velho do século,
a melhor coisa que pode lhe acontecer
é ser ignorada.
Antecipe a jogada: elimine-se
você mesma.
María Negroni, Objeto Satie
LINGUAGEM E SEGREDO
Virei escritora aos 8 anos, um dia em que, voltando da escola, alguns versos começaram a se formar na minha cabeça. Foi como se eu tivesse sido tocada por um raio de Sol. Não, na verdade, como se eu fosse a primeira pessoa no mundo a ser tocada por um raio de Sol. Entrei em casa correndo, sem cumprimentar ninguém, para anotar as frases antes que me escapassem. Lembro da minha letra torta, do lápis apertando a folha, do medo de esquecer aquilo que acabava de encontrar, da palpitação no peito ao sentir uma frase emendando em outra que surgia magicamente. Acabava de descobrir que as palavras tinham música, podiam se tocar, chamar umas às outras, se repelir ou se ignorar sem que, na realidade, importasse o que elas comunicavam. Ou melhor, fazendo algo que não tem nada a ver com comunicar. Quando terminei minhas anotações, eu tinha um “poema” e a certeza de ter encontrado um tesouro. Desse dia em diante, não quis fazer outra coisa.
No entanto, quando me perguntam quando ou como comecei a escrever, nunca conto essa lembrança, porque a verdade – aquilo em que você acredita, o mito do próprio nascimento – é sempre intransferível. E eu, nesta época que tenta nos convencer do contrário, ainda acredito no direito de ter segredos. Dou outras respostas, complacentes, para me afastar desse centro criativo. Por outro lado, sei que, quando alguém faz essa pergunta, tampouco espera uma resposta honesta: espera leituras, mestres, traumas, receitas (sempre há algo disso). Por enquanto, vai aqui a receita.
COMO VIRAR ESCRITORA
O que é necessário para ser escritora? Além de amor pela dificuldade, disciplina e todos esses lugares-comuns que cito nas entrevistas para não tocar na verdade – que a pergunta não pede –, o que funciona melhor é uma porção de gente dizendo para você se dedicar a outra coisa. Para mim, pelo menos, isso funcionou desde pequena.
Alguns anos depois da minha “conversão”, quando eu já estava com 12 anos, insisti tanto em aprender inglês que minha mãe me levou para conhecer uma velha senhorita inglesa que tinha uma escolinha na própria casa. Antes de aceitar um novo aluno, miss Mary entrevistava a criança a sós. Para mim, ela fez a típica pergunta que toda menina detesta: “O que você quer ser quando crescer?” Ainda me espanta que eu tenha sido capaz de responder que queria ser escritora (já escrevia, claro, mas felizmente me abstive de declarar isso).
Miss Mary olhou para mim com cara de quem chupou limão:
“Escritora?” repetiu. “Mas sobre o que você pensa escrever? Para escrever, a pessoa precisa viajar, viver, ver o mundo. Melhor você estudar algo útil, como publicidade.”
Para além do imaginário oitocentista e classista de miss Mary – no qual os escritores e, com mais razão ainda, as escritoras eram gente endinheirada, com tempo para rodar o mundo e se dedicar a contar suas andanças –, essa exclusão se transformou, para mim, numa revelação precoce: eu tinha nascido no lugar errado, com um nome inconveniente e um desejo risível de participar de uma festa para a qual não tinha sido convidada.
Na verdade, o problema era que meu desejo não era apenas risível: era uma afronta, fazia de mim uma insolente, uma desubicada,[1] grande palavra que usamos na Argentina para “pôr as pessoas no seu lugar”. Desde os meus 12 anos até hoje, nunca deixei de topar com gente que tenta “me pôr no meu lugar”. A cena se repete infinitas vezes, e toda escritora deve estar preparada para enfrentá-la, pois faz parte de uma luta muito antiga. Parece mentira, mas cada geração tem que voltar a contá-la. Margaret Atwood faz isso num ensaio que toma emprestado o título de um livro de Alice Munro: Quem Você Pensa que É? No conto que nomeia o volume, Rose, uma adolescente com talento para ser atriz, responde à tarefa de copiar e decorar um poema recitando-o imediatamente, sem necessidade de transcrevê-lo. A professora a castiga por não seguir todos os passos do exercício: Rose fica depois da aula para copiar cada verso três vezes. “Você não pode sair por aí achando que é melhor que os outros só porque consegue decorar um poema. Quem você pensa que é?”, a professora lhe diz.
Atwood resgata essa cena e o título do conto como um símbolo da reação do mundo diante de qualquer artista. Rose é castigada por se destacar, por achar “que pode escapar do rebanho da multidão só porque consegue fazer algo engenhoso e banal que a maioria das pessoas não consegue fazer”. Em seguida, Atwood argumenta: “A atitude da professora é a que todos os artistas no Ocidente – mas sobretudo em lugares pequenos e provincianos – tiveram de enfrentar nos últimos duzentos anos.”
Cito o ensaio de Atwood porque me parece que essa atitude sintetiza diversas censuras que os escritores enfrentam: 1) costuma-se censurar (minimizar) o talento, a habilidade ou a inventividade (falar disso não é muito bem-visto hoje em dia, mas continua atravessando a discussão); 2) a questão de classe (que é evidente no meu encontro com miss Mary: “viver e ver o mundo”, a seu juízo, era algo que eu não poderia fazer, sendo, como era, de uma classe que deve trabalhar para viver); 3) a questão da colonialidade e 4) a questão de gênero. Nessa lista deveria entrar ainda o “politicamente correto”, verdadeira praga do pensamento das últimas décadas que atua de modos imprevisíveis e perigosos, sobretudo quando funciona como autocensura.
Os dois primeiros obstáculos (assim como o do “politicamente correto”) se impõem a qualquer escritor em qualquer lugar do mundo; o terceiro, a homens e mulheres em qualquer país periférico (é o que está por trás da velha oposição entre “o local e o universal”); e o quarto é o centro do que estou tentando pensar. Só que, para mim, é impossível pensar no problema da censura de gênero sem pensar nos outros modos de censura que operam ou podem operar simultaneamente.
O ensaio de Atwood integra uma genealogia que me permite entender minha história pessoal como parte de uma história maior, a da luta das escritoras em todo o mundo. Portanto, o que escrevo agora não é (ou não é apenas) uma forma de autobiografia. Estou tentando entender um modo de escrever que me marcou durante a vida inteira e que talvez tenha marcado outras mulheres.
Passaram-se muitos anos – décadas – até que entendi no episódio da professora de inglês não uma exclusão, e sim uma afirmação do meu desejo de ser na palavra escrita: escrever é, acima de tudo, ser uma desubicada. É preciso abraçar essa qualidade, torná-la própria, construir (-se) nela uma poética. Quando voltei da entrevista com miss Mary, disse à minha mãe que tinha pensado melhor e que não queria ter aulas com aquela senhora. Daquele dia em diante, tratei de aprender inglês por conta própria, munida de um dicionário bilíngue e um livro de contos de Edgar Allan Poe. Também passei a tomar mais cuidado ao anunciar o que fazia: comecei a ler e escrever às escondidas, às escuras, de noite (ainda hoje escrevo assim, com ansiedade, por pouco tempo e com uma intensidade e uma concentração extenuantes, como se estivesse cometendo um crime).
COMO SER UMA DESLOCADA
Cada escritora pode ir encontrando suas próprias formas de se desubicar, de se extraviar na linguagem. Existem muitas, tantas quantas autoras e poéticas. Vou me ater aqui às minhas porque acredito que pode haver alguns pontos em comum com as formas de outras escritoras. O que eu sei é que aqueles modos que escolhi aos 12 anos me marcaram mais que todos os meus anos de educação formal e tanto quanto minhas leituras.
Primeira desubicación: achar que podia aprender sozinha uma língua estrangeira à base de puro esforço e dedicação. Seguir outro caminho, queimar etapas, evitar instituições. Trapacear. Ser minha própria professora, aprender quase que por osmose: ler os mestres de um modo esotérico, como se toda língua, todo um cosmos, todo um domínio do mundo pudessem caber num único livro.
Segunda desubicación: dedicar tempo e força vital a uma atividade inútil no seio de uma família que só valorizava o trabalho remunerado.
Terceira, e mais importante, por incluir as outras duas: o segredo, a escrita (e a leitura) como um crime, como algo a esconder.
Essas três formas de ser uma desubicada foram moldando um modo de ser e de fazer: a escrita como segredo. “Segredo” no seu duplo sentido, porque, para esconder alguma coisa, primeiro temos que apartá-la do mundo. Isso – excluir-se do mundo – é o que todo escritor faz, e a exclusão (a busca da solidão) é sempre suspeita, sobretudo hoje, quando a exigência de comunicação e participação é tão extrema. Nesse apartar-se também cabem as formas particulares por meio das quais a exclusão é traduzida em práxis, numa poética própria. E aí o segredo encontra sua segunda acepção, a da escrita como algo escondido, privado, encoberto, algo que em princípio é de si para si, algo em que a pessoa cifra um desejo profundo de desaparecer, de não ser descoberta, de não ser compreendida.
ESCRITA E SEGREDO
No desejo de outra língua já está o desejo de ser outra, de habitar outra linguagem, de encontrar nela uma chave para a porta fechada: a permissão para inventar. Falar uma língua estrangeira já é ser uma escritora de ficção. Implica um deslocamento, uma desubicación permanente. Sempre somos outra pessoa em outra linguagem, e isso tem um componente lúdico semelhante ao da ficção (também tem um componente doloroso e irônico, sobretudo quando você vive nessa língua como estrangeira por algum tempo). Mas nesse empenho infantil em aprender inglês (ninguém em casa falava o idioma) havia também uma intuição do que significa ser leitora e escritora num país como a Argentina, uma compreensão de como funcionava o sistema de honras e privilégios em nível global. A língua desejada era a língua do poder que movia (e move) o mundo, na qual nos convenceram de que a “grande literatura” acontece.
Falar uma língua estrangeira é também aceitar a arbitrariedade, a contingência, a qualidade de matéria da língua nativa. Essa outra linguagem fantasmagórica acaba revelando a própria com uma beleza nova. Não conheço melhor treino para quem quer ser na linguagem do que fazer dela seu segredo. Falar, ler – escrever, se possível – em outra língua é livrar-se, pelo caminho, das crostas que a própria língua esconde, encontrar as palavras que, como um abracadabra, significam coisas que nem sequer conhecíamos antes de nomeá-las.
Por outro lado, a inutilidade da escrita em relação a todo o resto (o mundo do trabalho, do mercado, da família) é a primeira coisa que uma escritora entende e deve defender ao longo de toda a vida. É impossível escrever de outra forma que não seja como fruição, desperdício, como um esforço inútil para qualquer outra coisa que não seja essa mesma fruição. É esse gesto o que tanto incomoda o mundo e pareceria um esforço vão de se destacar, de se livrar de um jugo (o que é, de fato). Como cada escritor resolve essa desubicación, esse “estar fora de” em que aposta e põe em jogo a própria vida, depende das suas possibilidades e convicções. Para uma pessoa que, como eu, não nasceu numa classe para a qual viver é “viajar e ver o mundo”, a escrita sempre será um modo de resistência a ser sustentado em todos os embates desse mundo, incluindo o “glorioso” momento da publicação.
“Viver, viajar e ver o mundo”, os verbos que miss Mary reservava ao escritor, hoje me parecem uma síntese perfeita sobre a qual poderiam ser escritas muitas páginas. É preciso viver para escrever, ou seja, “viver” nunca é aquilo que faz quem trabalha como assalariado: “viver” é o contrário de trabalhar (nisso poderíamos concordar com miss Mary), e os exemplos dos escritores que roubavam tempo – do escritório, da sala de aula ou do jornal – são incontáveis. Muitos fizeram disso o centro da sua poética, da sua narrativa, da sua autobiografia (Kafka, Pessoa, Storni, Pizarnik). É preciso viver para escrever, fazer da escrita a coisa mais importante da vida. Ganhar a vida na escrita ou perdê-la em tudo o mais. Mas a frase da senhorita inglesa também encerra um pressuposto básico sobre os temas da literatura. Segundo esse pensamento, toda escrita é necessariamente escrita do eu: a pessoa escreve sobre aquilo que viveu, que viu no vasto mundo por onde andou passeando graças às vantagens da educação, do dinheiro etc. Para além do elemento classista, essa ideia continua vigente no estranho privilégio que hoje se dá à escrita autobiográfica. Aquela frase encerra uma negação da invenção, como se escrever algo saído da imaginação fosse trivial, enganoso, fraudulento: sem valor. Essa é mais uma das formas que exigem afirmar a inutilidade da escrita: guardar, alimentar e proteger o que ela tem da própria imaginação, a qual, na realidade, é mais única que “o vivido”. Ninguém compartilha meus sonhos, por mais que a psicanálise se empenhe nisso.
Mas não é necessário sair da literatura para encontrar argumentos que refutem o preconceito de miss Mary (o mesmo que ressurge toda vez que alguém repete aquela bobagem de “escreva sobre o que você conhece”). As irmãs Brontë viveram recluídas numa casa com janelas que davam para um cemitério. Isso não as impediu de escrever romances belos, perturbadores e imortais. Qualquer escritora de ficção sabe disso: só vemos o mundo quando o imaginamos, e somente então podemos escrevê-lo.
Em toda escrita de ficção há uma negação do eu, ou ao menos seu retraimento. Escrever é sair de si, desubicar-se. Excluir-se. A pulsão de inventar é a de ser outros, a ambição de ser múltipla. Inventar tem um componente de audácia prometeica que as crianças conhecem muito bem (não por acaso elas muitas vezes brincam de faz de conta às escondidas e em voz baixa, a sós com essas testemunhas mudas que são os bonecos). E o segredo ganha mais importância ainda quando é posto por escrito. Logo se descobre que o jogo que se escreve nunca é igual àquele que se joga. Mas ainda assim tentamos. Ocultamos o jogo num texto para preservá-lo (do esquecimento, do medo, de nós mesmas), e nesse ocultamento surge algo diferente.
Fazer coisas com palavras é uma proeza – “engenhosa e banal”, mas proeza enfim. Escrever é, enquanto dura esse momento maravilhoso do raio de Sol, ainda, um tesouro. E se ele cair nas mãos erradas? É preciso protegê-lo, porque nada é tão frágil quanto aquilo que é feito com palavras. Ler, escrever, é entregar-se a um jogo muito íntimo, íntimo demais para a luz do dia. O mundo suspeita (e com razão) de qualquer pessoa que ouse pôr suas fantasias por escrito. Só pode ser um louco ou um gênio (por algum motivo sempre se tentou igualar essas figuras como duas faces da mesma moeda, que só por acaso cai de um lado ou de outro).
Para uma mulher que escreve, o segredo pode adquirir outros sentidos. Pode ser um modo de sobreviver, o único, talvez, em que o jogo tem chances de se realizar; pode ser uma estratégia, a astúcia do animal que finge ser inofensivo; pode ser (muitas vezes é) a desistência de participar de uma festa para a qual sabe que não foi convidada, por mais que agora esteja na moda distribuir convites para cumprir cotas de gênero (fazer a própria festa, isso sim que é viver na escrita).
Isso me leva a uma intuição ainda mais velada na minha precoce consciência da escrita como coisa proibida. Qualquer mulher escolarizada da minha geração sabe disso, mesmo que não se dedique a contar histórias: escrever é coisa de homem, e o cânone a que nos vemos expostas como leitoras confirma esse fato uma vez depois da outra. E não só isso: os protagonistas das histórias que vale a pena contar, os “heróis” em outros discursos afora o literário, são em sua maioria homens. O masculino é o sujeito social por excelência, e o papel “a desejar”, portanto, é inalcançável já desde seu próprio ponto de partida. Para uma mulher, escrever é apropriar-se desse sujeito, e essa apropriação tem um alto custo. É o deslocamento total, a desubicación extrema. Uma transgressão, uma espécie de crossdressing, o cúmulo do “quem você pensa que é?”.
Não estou dizendo nada de novo. De Virginia Woolf até hoje, nós, mulheres, não paramos de apontar e pensar essa questão. Dos livros anônimos escritos por mulheres às autoras com pseudônimo masculino, passando por aquelas que foram vistas ou julgadas como meros satélites dos maridos, amigos, amantes ou companheiros de grupo literário, é uma história que o feminismo vem contando há décadas. Podemos até acreditar que hoje as coisas mudaram, mas não. Ou ao menos não o suficiente. Parece que é preciso continuar escrevendo essa história. Às vezes tudo muda para que tudo permaneça igual.[2]
Foram necessários muitos anos (e muitas conversas com amigas escritoras) para que eu percebesse que esse modo de escrever – ser profunda e intimamente uma desubicada –, na realidade, é a história de qualquer mulher que escreve. Quanto antes uma escritora entender isso, mais essa desubicación se transformará em força, ousadia, originalidade. E mais alto se erguerão ao seu redor vozes masculinas e femininas que tratarão de pôr essa mulher no seu lugar, porque é a primeira coisa que o campo cultural faz. “Pôr uma escritora no seu lugar” tem, como veremos, muitos sentidos, muitas práticas. É preciso estar preparada para elas.
FORMAS DE PÔR UMA ESCRITORA NO SEU LUGAR
Alocar, situar cada escritor em uma tradição a partir da leitura dos seus livros, montar genealogias, filiações, contraposições em que seus textos dialoguem com os de outros é o que a crítica faz, o funcionamento “natural” do campo literário. Em suma: ler. Claro que não é a essa inserção que eu me refiro quando falo em “pôr uma escritora no seu lugar”. Refiro-me às práticas – conscientes ou não – voltadas a minimizar, invisibilizar e, em última instância, eliminar a escrita das mulheres. Aquelas que Joanna Russ[3] expôs em 1983. Muitas continuam vigentes até hoje, embora talvez de modo menos evidente.[4] Escrito com humor, inteligência e paixão, o livro de Russ é uma exposição dessas práticas, documentadas com exemplos perturbadores para o mundo da literatura escrita em inglês. Não conheço nenhum livro similar sobre o mundo hispano-americano, mas é óbvio para qualquer leitor que esses mecanismos atuam do mesmo modo no nosso campo literário.
Das práticas que essa autora expõe, há duas que me parecem especialmente atuais. Talvez por serem as mais sub-reptícias, conseguiram sobreviver a tantas décadas de luta feminista e se acomodar melhor à adoção, no campo literário, de algumas das palavras de ordem dessa luta. São práticas que podem muito bem se disfarçar de correção política. Uma delas é o duplo padrão, a outra é a anomalia. O duplo padrão – julgar com critérios diferentes as obras de autoras e autores – pode funcionar como certos rótulos de conteúdo. Refiro-me à leitura da obra das mulheres relegando-as a esferas “particulares”, negando o que nelas pode haver de reflexão sobre a condição humana em geral. As formas desse rótulo variam, a segregação não: literatura feminina, água com açúcar, doméstica, íntima, confessional, visceral, lírica, sensível. Agora, inclusive: feminista. Essa prática também tem sua contrapartida: penalizar com resenhas negativas os livros de autoras que “ousam” transgredir essas esferas. O duplo padrão também afeta o juízo sobre a qualidade da escrita. Não é o caso de fazer uma estatística, mas como leitora de resenhas intuo que é mais frequente ver os livros das mulheres serem qualificados com termos condescendentes como “bem-feito” ou “bem escrito”, enquanto os dos homens dispensam qualquer qualificação: são simplesmente “lidos”.
A outra prática que me parece bem vigente é a “anomalização”: sustentar que a obra de determinada autora é uma exceção (à regra tácita de que, em geral, as mulheres não produzem obras interessantes) ou que a própria autora é excêntrica, anômala, “não feminina”, e por isso interessante. Para as argentinas, a primeira recepção da obra de Silvina Ocampo é o exemplo paradigmático dessas práticas, além de outras, como a “falsa categorização”, que não foi superada: até hoje parece impossível para os comentaristas escreverem um texto sobre ela sem falar de Bioy Casares ou de Jorge Luis Borges.
Um bom exemplo dessa recepção da obra de Silvina Ocampo é a crítica de A Fúria[5] que Abelardo Castillo[6] publicou em 1960. O texto é de uma transparência patriarcal impressionante, e para analisar seus mecanismos seria preciso um ensaio à parte, mas me contento em assinalar aqui algumas das suas apreciações que refletem várias das práticas analisadas por Russ. Lidas hoje só desmerecem o resenhista e, na verdade, provocam um pouco de riso. Segundo Castillo, esse livro de Silvina Ocampo se compõe de “versões delicadamente femininas” do gênero de terror, que não chegam à altura de seus gurus – Poe e Horacio Quiroga –, e por isso a autora comete o pecado do “frívolo draculismo”. Em seguida, diz que o estilo de Ocampo não passa de “uma constante tenebrosa” e julga que “a artimanha vaidosamente divertida produz um tropeço não apenas literário, mas de suspeita jocosidade”. Sua sentença final é que a autora só está abaixo de Borges e Cortázar – embora “a uma desoladora distância” deles –, mas seus contos “são defeituosos como contos”.
SER DOSTOIÉVSKI! SER JOYCE!
Foi Ricardo Piglia quem chamou minha atenção para uma frase de James Joyce. Ele a cita para pensar o lugar do artista deslocado, ao ler a obra de Marechal,[7] que, reagindo à exclusão a que é submetido devido à sua filiação peronista, se autoexila. Escreve Piglia: “O ponto-chave, contudo, é o sentido de retiro local que ele dá ao gesto épico e prestigioso do desterro: Marechal se isola, durante mais de quinze anos, em sua casa no Once, na rua Rivadavia,[8] numa espécie de exílio macedoniano em seu bairro” (Adán Buenosayres: A História do Artista Exilado no Seu Próprio Bairro).
Ao ler esse romance de Marechal, Piglia o categoriza como pertencente à forma “obra-prima”, ou “obra-mestra”, “um gênero que, depois de Joyce, tem suas convenções e suas fórmulas e suas linhas temáticas tão definidas e estereotipadas como as que regem, por exemplo, o romance policial”. Depois de descrever sumariamente essas convenções, Piglia parece descartá-las e ficar apenas com uma característica “técnica” que ele considera essencial: a “longa duração”. Para além do seu formato, a “obra-mestra” seria, portanto, um romance em que o artista investe muitos e muitos anos, décadas, de preferência a vida inteira.
Talvez nem seja necessário, mas em todo caso vou assinalar que, como é frequente na produção desse que é considerado um dos críticos argentinos mais importantes das últimas décadas, Piglia não cita um único caso de uma obra de tal envergadura escrita por uma mulher.[9] Uso a palavra “envergadura” sem inocência: será que, de Goethe a Bolaño, “o romance sem fim” (que na maioria dos casos é também perturbador pela quantidade de páginas) é uma empresa preferencial dos homens? Talvez. Mas há livros escritos por mulheres que poderiam perfeitamente se enquadrar nessa categoria ad hoc de “obra à qual se dedica a vida inteira”. Acontece que, na verdade, Piglia não está pensando na “longa duração” temporal, e sim em certo efeito, certo feito que só se mede em termos da superação de um precedente. Escrever o grande romance, no sentido literal da quantidade ou do tamanho (o romance de quinhentas páginas!, o romance que levou trinta anos para ser escrito!), diz muito sobre o modo como nossas sociedades continuam a definir não o que é uma “obra-mestra”, mas o que é um romance e quem pode ser chamado de romancista.
Não acho que seja o caso de levar muito a sério essas notas de Piglia sobre a “obra-mestra” como gênero.[10] A própria ideia parece obsoleta – quase medieval – e circunscrita à crítica e ao funcionamento do sistema de honras e privilégios do campo artístico. O termo vem dos ofícios. Produzir uma masterpiece era, originalmente, passar num exame, receber o título de mestre, medir-se com (e obter a aprovação de) um grupo de avaliadores. Não nos diz nada da obra em si, exceto que é suficientemente boa para passar nesse exame. Como tal, essa obra é um exercício virtuosístico de um gênero, não sua ruptura. Uma obra-mestra é a que leva esse gênero à máxima perfeição ou, o que dá na mesma, a que respeita ao máximo suas convenções.
Não me interessa tanto essa elaboração de Piglia, e sim uma ideia que ele insinua logo em seguida, muito de passagem, e que ilumina de modo insuspeito o que apontei acima. Sempre se referindo a Marechal (e, por meio dele, a outros homens) escreve: “A ambição desmedida como recurso defensivo. Nisso Marechal era igual a Arlt[11] (Ser Dostoiévski! Ser Joyce!). A obrigação de ser genial é a resposta ao lugar inferior, à posição deslocada.”
Nessa frase, Piglia abandona a ideia da obra-mestra como gênero para falar da ambição não mais em relação à obra, ao texto em si, e sim, de modo literal e (ai!) demasiado transparente, a uma competição entre homens. Isso explicita – de novo – o que é ser romancista para a crítica e como se mede sua “envergadura”. Tudo isso me leva de volta ao tema central destas notas: estar excluída por default dessa medição viril pode ser uma vantagem. Suspeito que nenhuma mulher escritora tenha querido alguma vez “ser” Joyce ou Dostoiévski, mas alguma pôde, sim, ter desejado escrever algo próximo e, ao mesmo tempo, inevitavelmente diferente de Ulysses ou de Os Demônios.
A OBRIGAÇÃO DE SER GENIAL
“A obrigação de ser genial é a resposta ao lugar inferior, à posição deslocada.” Essa afirmação de Piglia me parece brilhante. A obra escrita em reclusão e em exclusão se estranha, ensimesmando-se de tal maneira que só pode ser única. A resposta do escritor excluído é de uma originalidade e uma excentricidade extremas. Sua obra é incompreensível para quem a olha do centro. Assim, a obra secreta esconde sua própria recompensa e até, talvez, uma vingança: o sistema próprio, sob medida de um eu que, no entanto, inclui o universo. Em suma, a obra que antigamente era chamada “de gênio” – termo que Piglia insinua muito sub-repticiamente, sem defini-lo nem retomá-lo.
Mas há algo mais nessa frase: nem todos os escritores homens têm “a obrigação de ser geniais”, só aqueles que, de um modo ou de outro, foram relegados ou excluídos, situação na qual, de fato, se encontram todas as mulheres escritoras. O corolário é simples: uma escritora tem a obrigação de ser sempre genial, um escritor pode se contentar em ser bom, aceitável ou francamente medíocre, pois até para a mediocridade masculina há espaço no campo literário, garantido pelo simples pertencimento de gênero.
O que nos leva de volta às práticas expostas por Joanna Russ. A genialidade é a resposta favorita do campo literário para dar conta das mulheres escritoras como anomalia ou exceção, lampejos convenientemente isolados num panorama “naturalmente” masculino. Como assinala Russ, ser alocada no campo da genialidade, reconhecida como genial, também é uma forma de pôr uma escritora no seu lugar (sozinha, isolada, sem antecessores nem sucessores: uma exceção que confirma a regra). Por outro lado, o gênio (não o talento: o talento não basta) é a única resposta aceitável ao “quem você pensa que é?”; a única permissão, a única desculpa possível para o ato subversivo da mulher que escreve. Não basta ser boa: é preciso ser genial. A obrigação de ser genial é interiorizada, portanto, como aquilo que realmente é: um mandado social, a autoexigência de produzir uma obra extraordinária para que o crime cometido em solidão seja perdoável. Quando interiorizado assim, como mandado, em termos de “quem sou eu para escrever?” ou “quem sou eu para escrever assim?”, o genial é a forma mais efetiva de censura para uma escritora, a meta impossível, algo terrivelmente nocivo para o trabalho cotidiano de fazer coisas com palavras.
A desconfiança da própria escrita, da importância dos seus temas, a certeza de que nada nunca será suficiente predomina, por exemplo, nos diários de Alejandra Pizarnik, desde sua primeira juventude até seus últimos dias. “Quanto ao meu lindo livrinho, só vou saber se sou capaz dele quando resolver encará-lo. Em literatura, o talento não prova nada.” E: “Falei dos meus tateios literários. Sempre insistirei neles, mas nunca vão dar em nada. Nunca vou escrever nada de bom, pois não sou genial. Não quero ser talentosa, nem inteligente, nem estudiosa. Quero ser um gênio! Mas não sou! Então, o quê? Nada, Alejandra. Nada!”
Mas também pode ser outra coisa: o que era para Arlt ou para Marechal. “A ambição desmedida como recurso defensivo”, aponta Piglia. Desmedida para quem?, eu gostaria de perguntar (como e para que se mede a ambição, se não para censurá-la?). Por ambição desmedida, Piglia entende também a condição colonial (o escritor argentino medindo-se com “os titãs europeus”). Esse olhar é o do próprio Arlt, que Piglia cita para depois concluir que “a pergunta do escritor fracassado” percorre a literatura argentina. É verdade que a pergunta pelo original e pela cópia, pelo centro e pela periferia atravessa nossa literatura desde Sarmiento[12] até hoje, mas formulá-la em termos de ambição desmedida ou de fracasso é repetir o olhar colonial sobre a própria literatura.
Os termos “ambição” ou “obra-mestra” só servem ao crítico, não passam de maneiras de pôr os escritores e, mais frequentemente, as escritoras no seu lugar. Do outro lado, do lado da autora, podem adquirir outro sentido e outro valor. A ambição de quem escreve nunca é desmedida. Quem escreve tem o direito e o dever de ser ambiciosa. Para uma escritora, concentrar-se no seu gênio, ser profunda e deliberadamente uma desubicada pode ser uma tomada de posição. Fazer da exclusão sua estratégia, sua festa, sua astúcia. Quando se abraça tudo isso como uma tomada de posição, como uma forma de viver o fora em termos de liberdade absoluta, de escrever como você bem entender, distanciando-se do sistema de honras e privilégios, quando estar profundamente perdida em você mesma é uma forma de viver, o gênio – que é então concentração, ensimesmamento – pode ser muito produtivo (não por acaso “gênio” é também sinônimo de caráter).
Gênio é alguém que vive sua vida na sua própria medida, que constrói seu próprio sistema, alguém para quem a escrita não está separada da vida: são a mesma coisa, um cosmos, um sistema particular em que os outros não têm voz nem voto. É o que Pizarnik consegue nos seus últimos anos de vida em textos de humor tão estranho, tão sexualmente vitais que foram rejeitados e incompreendidos por seus contemporâneos. Nessa etapa da sua obra desponta a marca própria da escritora desubicada que ela foi, o temperamento ou o gênio (“essa loucura do talento” ela aponta em outro lugar) que produz uma obra genial (no fim das contas esse termo já não significa nada além de “pessoal” ou profundamente diferente do sistema que a exclui). O que não quer dizer uma obra isolada, sem filiações ou genealogias, pois pessoal e única é também a obra de Silvina Ocampo. E a de María Negroni, de Beatriz Vignoli, de Esther Cross ou de Fernanda García Lao. Todas, no entanto, participam de uma mesma conversa.
Às vezes, sobretudo quando releio Pizarnik e outras escritoras, eu me pergunto se essa – nas sombras, ensimesmada, duvidando o tempo todo do próprio valor – é a única forma de escrevermos. Então, tento imaginar como será escrever do outro lado, lutando apenas com a ansiedade da influência, medindo o tamanho e o poder da minha espada com a de outros heróis que me precederam na batalha, escrever, em suma, querendo ser nada mais que “Dostoiévski ou Joyce”. O exercício me parece divertido e um tanto ridículo, como se fantasiar ou vestir a roupa de outro – um jogo que eu poderia até jogar vez por outra, se tivesse tempo sobrando. Mas na obrigação de ser genial raramente me sobra tempo, portanto logo volto ao que me ocupa: ser, vezes sem fim, a primeira pessoa no mundo a ser tocada por um raio de Sol.
[1] O adjetivo desubicada, assim como o verbo e o substantivo correspondentes, reverbera uma série de conotações que nenhuma palavra em português reúne com a mesma intensidade: deslocada, inadaptada, desajustada, extraviada, desnorteada, desgarrada – “sem noção” do seu lugar. (N. T.)
[2] A autora aqui adapta a frase famosa do romance O Leopardo, do autor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa. No livro, Tancredi, um jovem voluntarioso e oportunista, diz ao seu tio, o príncipe Frabizio de Salinas: “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (N. R.)
[3] Joanna Russ (1937-2011) foi uma crítica literária, professora e ativista feminista norte-americana, conhecida também por ser uma das primeiras mulheres a se popularizar como autora de livros de ficção científica. (N. R.)
[4] A tradução em espanhol de How to Suppress Women’s Writing só foi publicada em 2018. [O livro permanece inédito em português.] Resumo a seguir as práticas analisadas pela autora: 1) Proibições (talvez o aspecto em que houve maiores avanços desde os anos 1980): consiste em vedar o acesso das mulheres às ferramentas básicas para a escrita; 2) Má-fé: criar e perpetuar sistemas sociais que ignoram ou desvalorizam a escrita das mulheres; 3) Negação da autoria; 4) Contaminação da autoria; 5) Duplo padrão de conteúdo; 6) Falsa categorização; 7) Isolamento; 8) Anomalização; 9) Carência de modelos; 10) Reações (obrigar as mulheres a negarem sua identidade feminina para serem levadas a sério); e 11) Estética (popularizar trabalhos estéticos que contêm papéis e caracterizações depreciativas das mulheres). (N. A.)
[5] A Fúria, publicado originalmente em 1959, é um dos principais livros de contos de Ocampo. Em 2019 foi traduzido para o português e lançado no Brasil pela Companhia das Letras. (N. R.)
[6] Abelardo Castillo (1935-2017) foi um romancista, dramaturgo e ensaísta argentino. Na década de 1960 fundou e dirigiu El Escarabajo de Oro, uma revista literária que marcaria época. Entre seus colaboradores estavam Julio Cortázar, Ernesto Sabato, Alejandra Pizarnik e Ricardo Piglia. (N. R.)
[7] Leopoldo Marechal (1900-70), escritor argentino conhecido sobretudo por seu romance de inspiração modernista Adán Buenosayres, que foi inicialmente ignorado pela crítica local quando publicado em 1948, mas hoje é considerado uma das obras-primas da literatura argentina. (N. R.)
[8] Hoje Avenida Rivadavia, uma das principais avenidas de Buenos Aires. (N. R.)
[9] São estes os seus exemplos: “O romancista que sabe esperar. (Joyce trabalhou dezessete anos no Finnegans Wake; Robert Musil, cerca de trinta anos em O Homem sem Qualidades; Malcolm Lowry, catorze anos em À Sombra do Vulcão.) O modelo máximo (o modelo argentino da paciência do artista) é, claro, Macedonio Fernández, que começou a escrever Museu do Romance da Eterna em 1904 e nunca o terminou. Trabalhou no livro ininterruptamente durante cinquenta anos.” (N. A.)
[10] Nem ele mesmo leva essa ideia a sério. No fim das contas, Piglia a recebe do próprio Marechal e, este, de Macedonio Fernández. Com uma diferença importante: Marechal considerava que estava escrevendo um “romance genial” (não uma “obra-mestra”), seguindo o preceito de Macedonio, que concebia o romance como a forma literária capaz de narrar “um destino completo”. (N. A.)
[11] Roberto Arlt (1900-42), um dos grandes escritores argentinos do século xx, conhecido por desempenhar papel crucial na inauguração da narrativa moderna da literatura de seu país (N. R.)
[12] Domingo Faustino Sarmiento (1811-88), escritor e ex-presidente da Argentina, autor de Facundo: Civilização e Barbárie, livro de não ficção considerado um dos pilares fundacionais do pensamento crítico e da literatura do país. (N. R.)
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