ILUSTRAÇÃO: ROBERTO NEGREIROS_2014
Odisseia pré-histórica
A longa viagem de volta de treze mesossauros brasileiros
Bernardo Esteves | Edição 99, Dezembro 2014
“Quando cheguei ao Brasil em 2013, tive a surpresa de descobrir que os arquivos mais antigos desta embaixada datavam de 250 milhões de anos”, brincou Denis Pietton, embaixador da França no Brasil, diante de autoridades dos dois países. Ele se referia a onze placas rochosas com esqueletos de mesossauros, répteis marinhos que viveram no fim da era paleozoica num território hoje ocupado pelo Brasil. Os fósseis haviam passado os últimos anos num armário-cofre da embaixada, sem que os funcionários soubessem o que fazer deles.
As placas estavam expostas sobre uma mesa comprida num salão contíguo ao espaço em que Pietton discursava. Cenário habitual de jantares de gala e recepções diplomáticas, naquela noite o ambiente se convertera num museu de história natural. Convidados engravatados se inclinavam para apreciar a anatomia dos répteis extintos enquanto aguardavam o coquetel que se seguiria aos pronunciamentos. A cerimônia marcaria a devolução dos expatriados que estavam em poder das autoridades francesas desde 2006.
Aqueles répteis viveram num grande mar interior, na região onde hoje está a bacia do rio Paraná. Não chegavam a 1 metro de comprimento, e ao que tudo indica se alimentavam provavelmente de pequenos crustáceos. Os mesossauros são animais especiais para a paleontologia: encontrados também na África do Sul, eles deram um argumento decisivo em favor da deriva continental numa época em que nem todos aceitavam a ideia de que em outras eras América do Sul e África estivessem ligadas.
Os treze espécimes de Mesosaurus brasiliensis expostos na embaixada – em duas das placas havia um par de indivíduos – estavam em excepcional estado de preservação. Era possível discernir detalhes das articulações das patas adaptadas para o nado, bem como as dezenas de dentes pontudos distribuídos por suas mandíbulas finas. Um dos répteis entrou para a posteridade de braços abertos, como se tivesse sido crucificado.
Enquanto passava em revista os exemplares antes do início da cerimônia, o adido aduaneiro Nicolas Masson chamou a atenção para o refinamento da preparação do material, provavelmente conduzida num laboratório bem equipado. “É trabalho de profissional”, avaliou. “As pessoas sabiam exatamente o que estavam fazendo.”
Para animais que nas últimas eras geológicas ficaram imprensados entre camadas de sedimentos, até que a última década foi animada. Conservados na Formação Irati, que se estende pelo Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país, os fósseis foram coletados provavelmente no interior de São Paulo. Acabaram nas mãos de um comerciante de pedras preciosas que encontrou um colecionador particular de Munique disposto a comprá-los. Não se sabe o valor da transação, mas um especialista avaliou cada esqueleto em cerca de 8 mil euros, num total de quase 350 mil reais pelos treze espécimes.
O comércio de fósseis é proibido no Brasil desde 1942, quando Getúlio Vargas baixou um decreto determinando que os depósitos fossilíferos são de propriedade da União. A lei nunca impediu que o patrimônio paleontológico do país escoasse para museus e colecionadores do exterior, como mostra uma visita a qualquer site de venda especializado. Já fósseis brasileiros que fazem o caminho inverso, devolvidos ao país depois de apreendidos, são bem mais raros.
Os mesossauros embarcaram em São Paulo, acondicionados em grandes caixas e etiquetados como livros religiosos. Na escala que fizeram em Paris, algo chamou a atenção de um funcionário da alfândega, que decerto se surpreendeu ao constatar que se tratava de carga bem mais antiga que as escrituras. Vender ou comprar fósseis não é crime na França, mas o material foi apreendido por falsidade na declaração da mercadoria.
Restava devolver os répteis ao Brasil, mas o caminho de volta foi bem mais demorado e tortuoso que o de ida. A começar por um longo processo judicial, que precisou conferir a posse do material à França – afinal, o país só poderia devolver algo que de fato lhe pertencesse. Até que o caso transitasse em julgado, já corria o ano de 2010. Seguiram-se outros dois anos até que os mesossauros cruzassem de novo o Atlântico.
Em Brasília, o serviço de cooperação cultural da embaixada francesa foi incumbido da restituição dos répteis. Buscaram, inicialmente, informar-se junto ao Ministério da Cultura, mas não encontraram ninguém que se declarasse competente para receber a encomenda. A quem confiar os mesossauros? A pergunta se revelou mais complicada do que parecia. Não estava claro se deveriam ir atrás do Itamaraty, da Receita Federal ou do DNPM – o Departamento Nacional de Produção Mineral, responsável pela gestão do patrimônio fossilífero.
Enquanto a embaixada buscava um interlocutor no governo brasileiro, outros dois anos se foram. “É claro que não tratamos apenas desse assunto durante todo o tempo”, minimizou Jean-Paul Rebaud, conselheiro da missão encarregado do caso. “Não havia nenhuma emergência particular e os fósseis estavam bem guardados.” A essa altura, os mesossauros já estavam criando raízes no armário que lhes servia de morada provisória. O funcionário que trabalha naquele gabinete disse não ter se incomodado com a presença pré-histórica – “tirando as pessoas que vinham o tempo todo ver os bichos”.
O imbróglio só se resolveu quando se descobriu que os fósseis deveriam ser endereçados à Polícia Federal. “Afinal, havia um inquérito em curso e o caso era uma questão de polícia”, explicou Rebaud. Os contatos começaram a ser feitos há alguns meses, mas, com o calendário repleto de eventos, a devolução acabou agendada para depois das eleições.
Os esqueletos foram recebidos pelo delegado Oslain Santana, diretor de combate ao crime organizado da PF. “O responsável pela remessa foi identificado, indiciado e está em fase final de julgamento”, anunciou. Da embaixada da França, os repatriados seguiram numa camionete para a sede do DNPM, que vai abrigá-los até que se resolva seu destino definitivo. “Encaminharemos a uma instituição com estrutura adequada para expor o material e com um pesquisador especialista em mesossauros”, contou o geólogo Felipe Barbi Chaves, do DNPM.
Antes de dar início ao vin d’honneur, o embaixador Denis Pietton festejou a cooperação das autoridades dos dois países e fez um breve apanhado do périplo pelo qual os bichos haviam passado. “O processo todo demorou alguns anos”, reconheceu, “mas para répteis da era paleozoica isso é uma fração de segundo.”