Um ocupante da Câmara Municipal do Rio é filmado por um repórter Ninja enquanto dá uma entrevista a uma rádio. Tudo por celular. Os criadores da Mídia Ninja logo perderam o controle sobre quem falava em nome dela e declararam: "Somos todos Ninjas" FOTO: MÍDIA NINJA
Olho da rua
O plano da Mídia Ninja de estruturar uma rede editorial de fôlego foi implodido pela realidade
Bruno Torturra | Edição 87, Dezembro 2013
1o de agosto de 2013
Eita. Confirmou… Segunda que vem, eu e Pablo Capilé seremos sabatinados no Roda Viva sobre a Mídia Ninja. Animado para conversar sobre o projeto, esclarecer dúvidas e rumores, falar da ascensão do jornalismo independente em tempos de crise do modelo comercial de comunicação… E em pânico, quase me convertendo a Cristo, para domar minha crônica e inabalável gagueira em situações públicas.
De todo modo… bora!
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Faltavam quinze minutos para o Roda Viva entrar no ar. A bancada e os convidados já estavam acomodados no estúdio alvíssimo. Meu chapa Pablo Capilé, a ser sabatinado comigo, ocupava sua cadeira. Restava apenas a minha, vazia no centro da arena. Eram quase dez da noite e eu, com a bexiga rigorosamente vazia, estava trancado num banheiro da TV Cultura, prostrado diante do vaso. Às voltas com o relógio e refém de uma ansiedade galopante, recorri ao último truque na manga. Ou melhor, a dois truques no bolso da jaqueta: absorventes femininos e um canudo. O par de Always versão fluxo intenso foi aplicado nas axilas, sob minha camisa de poliéster particularmente sensível a uma contrastante, e muito provável, mancha de suor. Restava o canudo. Sem plateia, ainda assim com vergonha alheia de mim mesmo, fechei os olhos e, com o tubinho no bico, soprei lentamente: “Vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.” Para alongar a laringe um pouco mais, repeti o processo duas vezes, e três, e quatro, e… esquece.
Naquela mesma segunda-feira, dia 5 de agosto, eu já havia consultado uma médium de confiança por telefone. O diagnóstico tinha sido simples: “Estão te testando.” Depois disso, ainda pela manhã, me submeti a uma sessão pouco ortodoxa com uma terapeuta neurolinguística. Das técnicas de hipnose a jargões da autoajuda, ela lançou mão do que pôde para desprogramar minha gagueira crônica. No início da tarde foi a vez da fonoaudióloga: soprando, solfejando, aquecendo as cordas vocais, massageando a laringe, alongando a mandíbula, tonificando a língua – a consulta, adiada por mais de três décadas, procurava contornar às pressas minhas súbitas e recorrentes crises de “disfluência” verbal.
Não seriam o suor e a gagueira que iriam determinar um vexame em rede nacional. Eu havia me prevenido na medida do possível. Ao sair do banheiro, repetia comigo: agora é manter a cabeça fria e a atenção naquilo que me for perguntado. Foco, rapaz. Foco. A paz que eu buscava em um exercício fonoaudiológico ou no flocgel do absorvente só viria com um determinado e conveniente “Foda-se!” Não havia plano B.
Ao estúdio.
Alberto Dines, Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Suzana Singer e Wilson Moherdaui, os entrevistadores, tomam notas e passam os olhos por suas pautas. Capilé, como sempre, tecla o celular, Twitter, Facebook, e bate freneticamente os pés no chão. Os convidados, quase todos camaradas do Fora do Eixo, avisam a rede que vai começar o programa. Silêncio, pede o diretor. O Roda Viva vai entrar no ar em 10, 9, 8…
“Bruno, o que é a Mídia Ninja, o que faz, como se mantém – vocês consideram o que fazem jornalismo?”
A resposta a Mario Sergio Conti, em seu último dia como apresentador do programa, saiu curta, quase gaga, e direta.
“Uma sigla. Uma rede. E, sim, claro que é jornalismo!”
Mas, ah… Confesso que eu me estenderia demais se pudesse ser inteiramente sincero. Essa mesma pergunta era feita a todo momento por amigos, colegas, curiosos, detratores, e a verdade é que eu ainda não conseguia respondê-la, nem para mim mesmo. Descobrir o que é, o que faz, como manter a Mídia Ninja – e o que merece ou não o nome de jornalismo na segunda década do século XXI –, isso tudo de alguma forma acabou se tornando meu ofício antes de a sigla NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) aparecer.
E segue o Roda Viva. Jornalismo em crise, grana, patrocínios, Fora do Eixo, crowdfunding, partidos, Zé Dirceu, Marina Silva, FHC, protestos de junho, black blocs, drogas, papa… imparcialidade na mídia. Noventa minutos depois, fim de programa!
Até aquele momento eu carregava no bolso meu principal instrumento de trabalho no ano: um celular, que passou o dia inteiro desligado. Só após me despedir dos colegas e escolher uma caricatura do Paulo Caruso de lembrança, voltei a ligar o iPhone. Enquanto dezenas de mensagens pipocavam, tudo o que consegui dizer no Facebook após a alforria da TV Cultura foi:
Ufa…
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Eu deveria saber… Era cedo demais para respirar aliviado.
Eu estava psicologicamente exausto após quase dez dias de linchamento digital. Tudo havia começado na quarta feira pós-Roda Viva, quando um texto longo e cheio de adjetivos da cineasta Beatriz Seigner foi publicado em seu Facebook. Ela relatava a experiência de sua parceria com o Fora do Eixo na difusão de seu filme Bollywood Dream. E carregou nas tintas para pintar o FdE como uma organização absolutamente nefasta: era uma seita sexista, caloteira, mentirosa, usurpadora – um menu de deméritos, ao gosto do freguês. E Pablo Capilé, o capitão da rede de coletivos, foi apresentado como um manipulador insensível que usava o discurso da cultura livre como forma de se projetar. E de escoar dinheiro público para sua rede. Eu havia testemunhado parte do convívio de Beatriz com o FdE. E, sobretudo, havia convivido tempo demais com eles, e com Pablo Capilé, para ter certeza de que aquelas acusações eram não apenas injustas ou exageradas, mas simplesmente calúnias. Ela dizia a certa altura que a Mídia Ninja também “se beneficiava do trabalho escravo” dos que vivem nas casas Fora do Eixo. O tipo de acusação que não pararia de pé entre os que buscassem os fatos por trás do escândalo ou estivessem curiosos a respeito do particular universo social, cultural e econômico do FdE.
Nada ali aludia a mim, diretamente. Mas o ataque à credibilidade do FdE e da Mídia Ninja que ela buscava afetava todo o meu trabalho dos últimos dois anos. Na esteira da enorme repercussão do Roda Viva (visto por mais de 230 mil pessoas no YouTube, em questão de dias), o texto de Beatriz havia se espalhado pela rede de forma viral. Terminou munição de gente tão distinta quanto o blogueiro Reinaldo Azevedo, com sua hidrofobia de direita, ou os coletivos horizontais da esquerda mais anacrônica. Éramos petistas disfarçados, marineiros no armário, tucanos enrustidos, neocapitalistas, neocomunistas – e aqui cito: “Vivem um regime de autoexploração”, “mais-valia eletrônica”, “egomaníacos que lavam cérebros de jovens incautos” ou, simplesmente, “aí tem”. Na outra ponta, éramos “revolucionários da imprensa”, “visionários”, “heróis que ousaram desafiar o Grande Irmão”. Todo mundo tinha algo a dizer sobre o Fora do Eixo e a Mídia Ninja. Ou melhor… tinha que dizer algo.
Antes mesmo da catarse popular de junho, mas principalmente depois dela, eu me perguntava se vivíamos uma espécie de bug do Facebook. Percebia na dinâmica da rede social um processo mais patológico do que terapêutico. Senti na pele que o hiperfluxo contínuo e frenético de posts estava se tornando a antítese da reflexão e da capacidade de informar. Tudo na rede era de alguma forma crível e equivalente. A ferramenta de comunicação que um dia me pareceu tão propícia à transformação da consciência coletiva havia se tornado uma deprimente gruta de ideias cristalizadas, raciocínios curtos e polêmicas passageiras. O Facebook dava status de debate ao mero bate-boca ou a linchamentos sumários. Se foi muito graças a ele que consegui me tornar uma voz pública, agora, à medida que me tornava mais e mais objeto de pauta, e não repórter, o mesmo Facebook começava a me dar ojeriza.
Eu havia anunciado um estratégico afastamento das redes para manter minha sanidade mental. Aquela tempestade havia criado uma demanda – telefonemas, solicitações da mídia, articulação – para a qual eu não estava preparado. Já não tinha mais tempo ou cabeça para escrever, fotografar ou fazer streamings [transmissões ao vivo por celular, sem edição] na rua. Estava no limite da capacidade de trabalho. E não me sentia mais um jornalista. Era antes um gerenciador de crises.
Depois de meses de dedicação voluntária, não financiada e quase que exclusiva à cobertura jornalística de rua, eu estava quebrado. Vivia à custa de um limite bancário largo, herança dos meus tempos de bom salário e cachês esporádicos como DJ da Talco Bells (uma festa de soul music em São Paulo), além da generosidade de amigos que me emprestavam algum quando não havia mais de onde espremer. Buscar um emprego, um freelancer que fosse, numa hora como aquela, não estava no meu cardápio. E o plano anunciado no Roda Viva de lançar nossa primeira proposta de financiamento coletivo – um projeto de assinaturas, micro e macrodoações para a Mídia Ninja – foi colocado no freezer. Dentro daquele coliseu que pedia sangue, não havia como algum cristão pedir dinheiro na arena.
Um telefonema me acorda. Era cedo demais, só podia ser algo urgente. Do outro lado, Felipe Altenfelder, um dos membros da linha de frente da Mídia Ninja. Ligava da Casa Fora do Eixo, em São Paulo, e não falou nem “oi”:
“Saiu a matéria da Carta Capital.”
“E?”
Ele começa a ler a “reportagem”, assinada pelo editor de mídias digitais da revista, Lino Bocchini, e por Piero Locatelli, jovem repórter que ganhou seus dias de fama ao ser preso por carregar um frasco de vinagre numa manifestação.
Nunca li o texto. Bastou o que escutei.
Eu havia me acostumado a todo tipo de repercussão a respeito do que fazíamos. Dos trending topics no Twitter aos colunistas, dos debates em canais comunitários ao Jornal Nacional, a superexposição da Mídia Ninja (e, por tabela, da minha pessoa) naqueles últimos meses criou um calo que me deixava relativamente tranquilo diante das críticas ou das calúnias. Mas a matéria da Carta Capital foi um golpe baixo. Não só pela qualidade abjeta do jornalismo ali praticado. Mas pelo autor…
Eu considerava Lino Bocchini um grande amigo. Nossos anos de relação coincidiram com a transição dura e consciente que eu – e até pouco tempo atrás ele também – desejava fazer do jornalismo comercial para um novo modelo.
Nós nos conhecemos à distância, em 2009, quando ele assumiu a cadeira de redator-chefe da Trip, pouco antes do meu retorno ao Brasil. Longe da redação havia quase um ano, eu morava em São Francisco como correspondente da revista.
De volta à redação, ficamos amigos de cara. Primeiro, ele foi meu chefe. Depois, a partir do início de 2011, eu virei chefe dele. Após dez anos na casa, a Trip havia me oferecido a direção da revista. Apesar de Lino ter um texto nota 4, eu sabia de sua ótima capacidade de organização e gerência. Consciente da bucha de administrar uma publicação impressa em tempo de vacas magérrimas no mercado editorial, contava com ele para tocar o barco, e assim eu poderia me dedicar às pautas que nos eram caras. E Lino poderia contar comigo para ajudá-lo a segurar um dos rojões de sua vida pessoal: ele estava sendo processado pela Folha de S.Paulo por causa do blog satírico Falha de S.Paulo.
O jornal o acusava de uso indevido da marca, e a Justiça havia congelado seu domínio, sob risco de multas elevadas. Lino afirmava que não passava de censura. E comprou uma briga pública, a meu ver justa, mas que colocava em posição delicada a redação da Trip. Até porque seu diretor, no caso eu, também havia se convertido em voz ativa contra a investida judicial da Folha. Convidei Lino a levar sua cruzada para uma nova arena, mais adequada: a Casa Fora do Eixo.
Conheci o FdE no início de 2011. A rede de coletivos culturais recém-chegada a São Paulo tinha sido o tema da minha primeira matéria como diretor da revista. Discutia como eles haviam construído pelo interior do Brasil um circuito musical independente por meio de uma economia comunitária e conscientemente deficitária. Dividiam espaço, comida, roupas, uma conta bancária e um compromisso de criar um ambiente cultural economicamente viável e ideologicamente compatível com os valores de compartilhamento implícitos na rede e explícitos na prática do FdE. Jamais conheci comunidade tão interessante e generosa, tão pacificamente revolucionária. E tão interessada em trocar ideias sobre mídia e política – e experimentá-las na prática.
À frente do Fora do Eixo, meu personagem principal: Pablo Capilé. Tornamo-nos amigos e parceiros. Dois meses depois da reportagem, começamos a conspirar juntos em torno da tal PósTV – uma rede de transmissões ao vivo pela internet que colocamos no ar em todo o país através dos coletivos ligados ao FdE. As imagens vinham sobretudo de São Paulo, mais exatamente de um sofá puído que ficava na edícula de pé-direito alto nos fundos da Casa Fora do Eixo, no bairro do Cambuci. Eram horas e horas, quase todos os dias, consumidas em debates, conversas, experimentações de formato e linguagem sobre temas que não tinham quase nenhum espaço na imprensa tradicional.
Lino era vizinho deles. Além de fã e entusiasta da molecada que vivia em comunidade. E dispôs do entusiasmo da turma, e da estrutura da Casa, para estrear o Desculpe a Nossa Falha, programa sobre imprensa, política e questões em torno da liberdade de expressão na mídia. Audiência baixa, fiel e influente. Para além das fronteiras da Trip, Lino se tornava um pequeno herói da resistência do jornalismo alternativo. Eu apresentava o Segunda Dose, programa sobre drogas, estados alterados da consciência e espiritualidade enteógena. Meus assuntos favoritos. E quase todo dia colaborávamos na programação e na articulação da rede. Por mais de um ano nós dois fomos os principais parceiros do FdE na construção da PósTV e das bases do que ganharia mais tarde o nome Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação – NINJA.
O cargo de diretor de redação da Trip já não era mais meu; havia deixado a cadeira no começo de 2012, num acordo pacífico com a revista. Voltei a ser repórter especial, e não frequentava a redação diariamente. Menos dinheiro, porém bem mais tempo para me dedicar à PósTV e ao projeto ninja. Lino estava dentro, até que, no início de 2013, foi demitido da Trip. Agora sem emprego e com mais tempo livre, começou a ser cobrado pelo Fora do Eixo a ser mais presente e assumir de vez a direção da PósTV. Lino ouviu, e não topou. Em um e-mail coletivo, cordial e claro, disse que iria se desligar do projeto: precisava pagar suas contas e cuidar da família. A turma do FdE ficou magoada. Pouco depois Lino foi contratado pela Carta Capital para assumir site e redes. Nós lançamos, discretamente, a página da Mídia Ninja no Facebook em março de 2013. Eu sabia de um ressentimento crescente que havia entre as duas partes. Mas nunca da minha. Entendia o lado do Lino e o do FdE.
Até que veio a matéria da Carta Capital. Falava de ex-membros que saíram magoados do FdE, acusando o coletivo de exploração e intimidações. Em tom de denúncia, apresentava a Mídia Ninja como uma fachada, uma agência de comunicação do FdE. Pablo Capilé era uma espécie de tirano, Felipe Altenfelder, um capanga. E eu, um porta-voz secreto, quase um testa de ferro de Capilé; alguém que, ancorado na Mídia Ninja, teria pretensões eleitorais. A matéria dizia, com todas as letras, que o plano era me lançar candidato ao Congresso Nacional pela Rede Sustentabilidade. Nunca a revista me procurou para confirmar tais intenções, nem, em momento algum, sugeriu o envolvimento do autor da matéria com o assunto. Ele, afinal, era um dos que saíram magoados. A despeito disso, em questão de horas a matéria era o mais novo texto hipercompartilhado no Facebook. Coroava a semana dedicada a viralizar a sordidez dos Ninjas.
Parte da imprensa e dos amigos estava assumindo como verdade que eu seria candidato. Depois de escrever um post chamado “Desculpe minha Carta”, no qual desabafava de maneira genérica, em tom quase filosófico, percebi que teria de ser mais direto:
16 de agosto de 2013
Lamento ter que entrar em detalhes, mas esclarecendo a matéria mentirosa da Carta Capital:
* Não. Não sou porta-voz de ninguém. As únicas ordens que sigo são as da minha consciência. Minha autonomia não é negociável.
* Não. Não sou candidato. Nem serei. Mesmo.
* Não tenho agenda secreta alguma. Não tenho a menor ideia de como funcionam as entranhas da política institucional. Não tenho qualquer interesse em fazer parte do jogo partidário.
* Não. Não sou “marinista”. Assinei a ata de fundação da Rede porque acredito que será um partido importante e, tomara, trará a pauta ambiental mais forte nas eleições. O que, independente de Marina, é o assunto mais importante de todos. Acordem.
* Lamento que a imagem da política nacional seja tão tóxica e apodrecida que uma pessoa que, como eu, não abre mão da felicidade, sinta-se repelida pela mera possibilidade de um cargo político.
* O repórter nunca me telefonou, apesar de ser meu amigo, para checar, me escutar, me perguntar sobre as graves acusações que fez a meu respeito. Isso não é jornalismo.
Alguma dúvida?
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Achei uma boa ideia ligar para minha médium de confiança. Ela insistiu no diagnóstico: “Estão te testando…” Mas quando uma ex-namorada me telefonou chorando e perguntou como eu estava aguentando a pressão toda, não deu… desatei a chorar com ela. Foi até bom. Em algumas horas eu deveria estar despressurizado, estável de novo. Canudinho e absorvente no bolso! Eu seria entrevistado ao vivo na Record News por Heródoto Barbeiro. Na pauta, Deus o abençoe, algo com que ninguém mais parecia se importar quando falava na Mídia Ninja: o jornalismo que poderia emergir das redes.
Ufa…
***
Junho passado. Os protestos do Movimento Passe Livre estavam prestes a eclodir em São Paulo. E nas semanas anteriores, ao menos na minha timeline, o assunto mais quente eram as demissões coletivas nas grandes redações da cidade, conhecidas entre as pessoas do meio como “passaralhos”. Etimologicamente, um caralho voador. No primeiro semestre deste ano, principalmente em São Paulo, uma revoada deles ceifou cabeças no Estadão, na Editora Globo, na Abril… Na primeira semana de junho, passou na Folha de S.Paulo e na Trip Editora. Onde eu ainda trabalhava.
Na manhã do passaralho da Trip, fui o primeiro a ser chamado. A editoria estava prescindindo dos meus serviços após onze anos de casa em mais de uma centena de edições. Não fiquei surpreso. Afinal, a redação sabia da minha falta de tempo e de interesse em seguir no jornalismo impresso convencional.
A instabilidade do mercado, as mortes recentes de Ruy Mesquita e de Roberto Civita, a narrativa apocalíptica sobre o futuro do jornalismo, as demissões em cambulhada, o clima pesado entre os colegas – e um estranho e pouco comentado alívio entre os demitidos – eram as deixas perfeitas para um convite público, uma carta convocando possíveis interessados em estruturar a tal Mídia Ninja. Que, aliás, àquela altura já tinha sua comunidade no Facebook e cobria desde março protestos de rua e pautas ligadas aos direitos humanos.
A tese da convocação era muito simples: é um erro confundir jornal com jornalismo. A crise era do modelo comercial de produção e difusão de informação. Não poderíamos aceitar a derrocada do ofício, muito menos de sua relevância, como produto inevitável da obsolescência do modelo industrial, vertical, dependente de grandes verbas publicitárias e vasta circulação. Era preciso reconhecer que havia uma crise ainda mais profunda do que a financeira. Uma crise existencial no jornalismo. E que talvez ambas pudessem ser encaradas como uma só.
Essa era uma percepção empírica e de baixa amostragem, mas pela primeira vez os que haviam sido poupados pelo passaralho estavam mais deprimidos, mais desencantados do que os que foram parar na rua. De repente, e paradoxalmente, parecia mais espoliado quem sobrou nas redações, sobrecarregado de trabalho e desprovido de motivação. Daí o texto que divulgamos, “Ficaralho”, com a sugestiva provocação do termo. Se fode quem fica.
Se das redes e da inteligência coletiva emergisse um modelo capaz de sustentar e arejar a profissão, quem sabe o jornalismo não encontraria uma nova idade de ouro. Para mim, era o mínimo que poderíamos esperar da sociedade hiperconectada. Mas o convite explícito no “Ficaralho” era bem mais modesto: propunha uma reunião no Centro de São Paulo, aberta a qualquer interessado em discutir ideias e formas para viabilizar produção e difusão jornalística fora dos padrões comerciais e convencionais. Eu só não esperava o rebu que foi.
Nunca, em onze anos de profissão, um texto meu repercutiu tanto. Cerca de 250 mil visualizações e mais de mil e-mails na caixa em três dias. Havia uma fila de críticos e outra de desafetos que, antes de a MN existir, já a acusavam de ser “a morte do jornalismo”. Jornalistas de todas as idades me trataram com hostilidade. Os mais mansos me chamaram de mal-agradecido, eu estaria cuspindo no prato em que comi. Os menos mansos viam em mim um Judas, um insensível, um oportunista atrás de mão de obra gratuita. Outros tantos, em privado, perguntavam como poderiam participar. Enquanto os protestos do Passe Livre começavam a crescer, a repercutir e a se tornar a pauta mais quente das redes e da própria imprensa, mais de 300 pessoas confirmaram presença na primeira reunião aberta para a expansão da MN.
Teria sido ótima… se não tivesse sido marcada para a noite de 13 de junho. Naquele mesmo dia a Folha e o Estado de S. Paulo haviam publicado editoriais enfáticos contra a escalada das manifestações. “Retomar a Paulista”, dizia o primeiro; “Chegou a hora do basta”, escreveu o segundo. Os manifestantes, por sua vez, prometiam o maior protesto da história da luta pela tarifa zero. Dito e feito.
13 de junho de 2013
AVISO URGENTE SOBRE A REUNIÃO NINJA
Por conta da dimensão do protesto previsto para o final da tarde, muitos confirmados nos procuraram, questionando a segurança ou a viabilidade da reunião. Em virtude da grande proximidade da concentração dos manifestantes e do local marcado para nosso encontro, ambos no Vale do Anhangabaú, estamos cancelando a reunião de hoje. Mas se o encontro era para discutir novos modelos possíveis para um jornalismo independente, ninja convoca todos os jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e comunicadores a participar de uma grande cobertura, em tempo real, direto dos protestos.
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Eu estava quase no gargarejo da manifestação, a cerca de dez metros da linha de frente, quando a passeata parou diante do bloqueio da Tropa de Choque da Polícia Militar, na esquina da Consolação com a Maria Antônia. Atrás de mim, 10, 20 mil pessoas? A ausência de liderança era clara, de ambos os lados. Multidão e polícia firmes, num impasse que foi quebrado quando, diante de um coro popular pedindo “Sem violência!”, o Choque agiu. Primeiro, bombas de efeito moral, que serviram de deixa para balas de borracha disparadas a esmo e à queima-roupa. E para as bombas de gás lacrimogêneo atiradas no meio da multidão.
Sufocado pelo gás, protegendo a nuca das balas com um casaco, temi pelo pior – corre-corre, descontrole, pisoteio na multidão espremida na Consolação em busca de uma rota de fuga. Quando vi dezenas, talvez centenas de pessoas pedindo calma umas às outras, erguendo gente do chão, suportando o gás e as balas que zuniam, e repetindo o mantra coletivo “Sem violência”, eu me acalmei. E mais: também entendi que havia muito mais consciência e preparo do lado de cá do conflito.
Como muitos, escapei, em direção à rua Augusta, pela praça Roosevelt. Foi ali que me perdi dos companheiros da Mídia Ninja. Sem câmera na mão, as mucosas queimadas pelo gás, fiquei atônito diante da barbárie. Tiros de borracha e gás lacrimogêneo no meio do trânsito, motoristas abandonando os carros. Tiros de borracha, gás lacrimogêneo e cacetadas nos bares onde manifestantes buscavam refúgio. Relatos randômicos, na rede e no boca a boca de quem se cruzava na rua, de que a polícia estava dispersa pelos bairros, caçando qualquer um ao alcance.
O Movimento Passe Livre não perdeu tempo. Naquela mesma noite marcou seu próximo ato: segunda-feira, 17 de junho, 17 horas, no Largo da Batata. Não precisava ser bidu para saber que seria grande, muito grande a reação.
Naquela quinta-feira houve uma mudança na percepção pública dos protestos. Mas não apenas isso. O cidadão com uma câmera no celular e um perfil no Facebook tomou a hegemonia narrativa dos grandes veículos de comunicação. Muitos jornalistas reportaram, clicaram, filmaram e sofreram muito abuso dos agentes do Estado naquele dia. A Folha de S.Paulo teve sua equipe particularmente agredida, com sete jornalistas vítimas de violência policial, uma delas atingida perto do olho por uma bala de borracha. Mas não tenho dúvida de que foram os relatos e as imagens feitas e difundidas por cidadãos, e não pelos profissionais da grande mídia, que mais impactaram, pautaram e indignaram o país a partir daquela noite.
“Pois não?”, pergunta o porteiro com a cabeça para fora da guarita.
“Vamos no apartamento tal…”
Ele hesita.
“Falar com quem?”
“Com o Zé Dirceu.”
Manhã de 14 de junho, sexta-feira. Maldormido e com as vias respiratórias ainda acusando a presença de gás lacrimogêneo, já encarava o segundo compromisso do dia. O primeiro tinha sido às oito da manhã, meu último freelancer até o presente texto da piauí: fotografar uma adestradora de cães-guia em Cotia, cidade perto de São Paulo. O segundo, agora, às dez da matina. Ao lado de Pablo Capilé, estava na portaria do prédio onde morava o ex-presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, ex-deputado, ex-presidente do PT, ex-ministro da Casa Civil do governo Lula e recém-condenado pelo STF. O encontro havia sido marcado de madrugada, pelo telefone, pouco depois de a PM recolher a Tropa de Choque do Centro. Era surreal, mas também muito simples: Dirceu queria saber, de quem tinha estado na rua e entendia das redes (nós!), que cargas d’água estava acontecendo. E nós queríamos saber o que um dos maiores articuladores políticos do Brasil pensava daquilo tudo.
Vestindo a camisa do Corinthians, ele nos serviu café e foi de uma simpatia quase nunca retratada publicamente. Falamos sobre a Dilma, o Lula, a mídia. Uma ou duas piadas sobre a Veja. Falamos sobre Haddad e Alckmin. Sobre a PM, a UNE e os partidos. Sobre desconexão. E sobre uma questão crucial para os rumos de junho: como o Passe Livre estava prestes a perder o controle da causa, das motivações e das convocações. E fizemos um diagnóstico da noite anterior, a quinta-feira fatídica em São Paulo: a manifestação havia acendido um pavio nacional, dando um start para que emergissem insatisfações de toda ordem. Produziu uma energia política difusa, confusa e colossal: os 20 centavos, ou a tarifa zero, eram agora incidentais. Não haveria saída política fácil. O campo estava aberto.
Fomos embora perto do meio-dia, direto para a Casa FdE, a fim de publicar uma carta aberta ao prefeito Fernando Haddad, criticando sua postura diante das manifestações. E também precisávamos organizar a tropa para a segunda-feira.
Meu Facebook havia explodido em seguidores, repercussão e influência. Assessorias de imprensa e fontes políticas telefonavam para comentar, fornecer informações ou reclamar de algo que eu havia postado no meu perfil. A Mídia Ninja, que já havia coberto os primeiros protestos do Passe Livre, naquela manhã viralizou seu primeiro hit de YouTube: ao som de uma trilha travolteana, de Staying Alive, um Ninja dança na Paulista, na noite anterior, diante de uma linha do Choque, e se desvia de uma bala de borracha, que acaba atingindo o câmera que filmava a cena.
Era tudo muito excitante, muito tenso, muito divertido, muito… Mas ainda não tínhamos noção do protagonismo que em questão de dias ganharíamos graças ao streaming de rua.
***
Baita salada ideológica no Largo da Batata. Patriotas, comunistas, esquerda do PT, PSTU, classe média “Cansei”, anarcopunks. Muita gente, sabendo ou não, se odeia por aqui. Todo mundo junto. Estou adorando. #sp17j #midianinja
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Sabíamos que na segunda-feira, dia 17, a manifestação seria grande. E que talvez fôssemos o único grupo organizado e experiente o bastante para uma cobertura ao vivo, coordenada e difundida de forma totalmente independente de qualquer veículo ou grupo de comunicação. Mas a imprensa apareceu em peso. Carros e motos da tevê, pequenos drones para filmagem aérea, batalhões de repórteres e fotógrafos. E não só do Brasil. Um repórter do El País, recém-chegado da Espanha para cobrir os distúrbios brasileiros, queria saber no que consistia nossa “base-móvel” no Largo da Batata.
Um carrinho de supermercado equipado com um gerador velho, dois laptops, mesa de som e de corte de vídeo, duas filmadoras e caixas de som. Sobre toda a parafernália, lona e guarda-chuva preventivos. Soltos na multidão, dois fotógrafos e dois cinegrafistas. Contávamos com o wifi liberado de algum vizinho gentil ou com nossos dois instáveis modems 3G para streaming e envio de material aos membros da equipe que, assentados na Casa FdE, o recebiam e divulgavam na página da MN no Facebook. Era esse o esquema, mambembe e altamente funcional, com o qual transmitíamos da rua pela PósTV.
Já na concentração, a multidão era tão grande, e tão alta a demanda dos celulares, que a internet simplesmente caiu. Não foi um dia normal.
Parte da Mídia Ninja registrou o que pôde em fotos e vídeos off-line. Não conseguimos transmitir ao vivo, via streaming. Parte, eu inclusive, rendeu-se à perplexidade e a uma meia dúzia de informes (quando o sinal voltava) pelo Twitter. Parecia que ninguém tinha ficado em casa. A massa tomou a Paulista e a Brigadeiro Luís Antônio, ao mesmo tempo. Um fluxo contínuo de pessoas ocupava toda a extensão da Faria Lima, da Juscelino Kubitschek e da Marginal Pinheiros. Cercaram a sede da Rede Globo na Berrini e pegaram a direção do Palácio dos Bandeirantes, no distante Morumbi. Lá, uma turma resoluta tentou derrubar os portões da sede do governo do Estado. E lá estava eu, para respirar um pouco do gás lacrimogêneo disparado pelas únicas bombas atiradas pela PM naquela noite.
Foi sem um centésimo da presença popular da véspera que, na terça-feira, dia 18 de junho, a Mídia Ninja saiu do gueto. Aconteceu quando a completa ausência policial e a presença de alguns manifestantes com intenções suspeitas deu início ao quebra-quebra (inclusive estraçalhando vidros da Prefeitura) e partiu para alguns saques pelo Centro da cidade. Filipe Peçanha e Rafael Vilela, ou Carioca e Pira, respectivamente, moradores da Casa FdE, cobriam como Ninjas o protesto na frente da Prefeitura de São Paulo. Seguiram a turba até que, na rua Augusta, Filipe conseguiu sinal suficiente para acionar o twitcasting, um dos aplicativos que permitem a transmissão ao vivo, em baixa resolução, de qualquer smartphone conectado à internet. E passou a narrar o que via: a chegada da Tropa de Choque para conter o pequeno grupo que seguia em direção à Paulista.
Não foi a primeira transmissão ao vivo da Mídia Ninja. E nem de longe a primeira de Carioca. Ele era o principal responsável por colocar a PósTV no ar todos os dias. Não imagino alguém que tenha acompanhado e produzido mais horas de streaming no Brasil. Mas foi a primeira vez que transmitimos a ação da polícia contra manifestantes. E não só isso: éramos os únicos jornalistas em tempo real cobrindo os desdobramentos dos protestos em São Paulo. Menos de 24 horas depois do enorme levante.
O jornalismo de baixa resolução e alta fidelidade viralizou pelo Twitter. Em vinte minutos de transmissão tínhamos 2 mil espectadores. Em trinta minutos, 15 mil. Quando NINJA virou trending topic, havia 30, 40 mil espectadores simultâneos. Filipe nunca aparecia diante da câmera, nem dizia seu nome. Descompromissado com a suposta neutralidade do repórter de tevê, ele se indignava, se exaltava, xingava e sucumbia à adrenalina inevitável numa situação como aquela. Na esquina da Paulista com a Consolação, repousava inviolado um display da Coca-Cola celebrando a iminente Copa das Confederações. Repleto de latas de refrigerante, ostentava o slogan: “Vamos colorir o Brasil.” Alguém deu a ideia: “Vamos colocar fogo?”
Por uma pequena janela de 400 pixels de um site japonês (o servidor do twitcasting), mais de 50 mil pessoas viram a sequência final: o incêndio do display, a chegada da PM, o bate-boca de Carioca e os policiais sem identificação. Ao sair do ar, a transmissão alcançara mais de 100 mil visitas. Para fechar a noite, Rafael posta, minutos depois do clique final, a imagem de catadores recolhendo as latas de alumínio do painel destruído. Pronto. A Mídia Ninja estava oficialmente no jogo.
No dia seguinte, no final da tarde, os aumentos da tarifa no Rio e em São Paulo foram revogados. O Passe Livre convocou para a quinta-feira, na Paulista, a celebração da conquista. A MN já estava pronta, mais bem equipada com um modem 4G, gerenciando a crescente expectativa pública que nossa cobertura provocara. Dessa vez, Carioca e eu ancoramos a transmissão da manifestação, rigorosamente tomada por uma massa verde e amarela, em grande parte hostil a qualquer lábaro que não o nacional. E em grande parte motivada a expulsar da rua os partidos e movimentos sociais que, então temerosos de uma cooptação da direita, da mídia ou da inconsciência civil, reivindicavam a rua como seu território. Pela contramão da Paulista, literalmente, chegou a reação, um bloco autodeclarado “onda vermelha”.
Nós quase apanhamos por tabela, ao vivo, no momento da furiosa expulsão do PT, PSTU, PSOL, sindicatos, movimento negro e qualquer organização que vestisse vermelho ou aludisse a alguma ideia que soasse vagamente socialista. Transmitimos ao vivo por seis horas e meia, conversando com todo tipo de manifestante. Em sua grande maioria, virgens de passeatas que acreditavam estar diante de um revolucionário “basta”. Apartidários, em geral mal informados, eufóricos, imbuídos de um sentimento fresco de propósito cívico, repetiam o meme preferido da grande mídia: “O gigante acordou.” Em meio à fauna ideológica, a previsão comprovada: o Passe Livre havia de fato perdido o controle narrativo das manifestações. E, diante do prédio da Fiesp, transformado em um telão em que flamulava a bandeira do Brasil, diante do qual milhares, de meia em meia hora, cantavam o hino, o Passe Livre se retirou não apenas da avenida: no dia seguinte anunciou que daria um tempo nas convocações às ruas.
De alguma forma, o compreensível recuo do Passe Livre, e sua dogmática ojeriza ao papel de liderança, abriram um vácuo de protagonismo nas manifestações. Todas as causas disputavam a frente: dos ativistas LGBT anti-Feliciano aos contrários à PEC 37; dos profissionais da saúde contrários ao Ato Médico àqueles favoráveis; dos Anonymous pedindo a cabeça de Dilma aos movimentos de periferia que paravam o trânsito no extremo sul da cidade. E todos os grupos que emergiam no Facebook e transtornavam o entorno dos estádios durante a Copa das Confederações. A única organização que estava criando uma narrativa em torno dos protestos em todo o país, e ao mesmo tempo sendo percebida como fruto deles, e fragmentária como eles, era a nossa.
O plano do início do mês, de estruturar uma rede, pensar uma teia editorial, organizar pautas e equipes, estudar a viabilidade financeira da Mídia Ninja não estava simplesmente adiado. Havia sido implodido pela realidade. O crescimento súbito, a fama meteórica e a ausência de nomes e rostos entre os Ninjas acabaram criando um fenômeno decisivo para a transformação da MN. Por mais que tentássemos, não éramos mais um veículo, mas uma estética, uma modalidade de jornalismo que se confundia com ativismo. Pipocavam, uma atrás da outra, páginas de sucursais da MN de gente que nunca havia nos procurado. Garotos transmitiam com seus celulares, em primeira pessoa, e compartilhavam seus links com o hashtag #MidiaNinja. Blogs reuniam todos os streamings de rua simultâneos pelo país como se todos fizessem, e não faziam, parte de nossa rede.
Perdíamos o controle sobre quem falava em nome da Mídia Ninja. E, longe de nos incomodar, abraçamos o carma com um slogan: “Somos todos Ninjas.” A essa altura, nossa página de Facebook, que havia começado em junho com menos de 10 mil seguidores, já carregava potentes 200 mil. Em março deste ano, havíamos feito nossa primeira cobertura como Mídia Ninja. Felipe Altenfelder e eu transmitimos ao vivo uma passeata pró-Palestina no encerramento do Fórum Social Mundial na Tunísia. Pico de audiência de trinta pessoas. Agora, nosso conteúdo era produzido em mais de cinquenta cidades, ancorado por dezenas de jovens, e chegava a atingir no auge, segundo as estatísticas da rede social, cerca de 11 milhões de timelines por semana.
Sem que estivesse em nossos planos, o meme da Mídia Ninja acabou ocupando o vazio deixado pelo Movimento Passe Livre depois do troféu dos 20 centavos. Não éramos apenas uma rede cobrindo as manifestações: constituíamos uma pauta nova, mais palpável e legível do que a volátil horizontalidade das mil demandas que tomavam as ruas. Folha, Estadão, O Globo, SBT, Gazeta, Record, Bandeirantes, TV Cultura. New YorkTimes, Wall Street Journal, Al Jazeera, The Guardian. Rádios e tevês comunitárias. Em duas semanas, todo o mundo repercutiu ou perfilou a Mídia Ninja. Só faltava, sei lá, o Jornal Nacional. Não por muito tempo…
24 de julho de 2013. Via celular.
Linda reunião aberta da Mídia Ninja: mais de 200 pessoas na UFRJ, enquanto o Jornal Nacional dava um bloco sobre a crise narrativa dos protestos do Rio a partir das transmissões Ninjas. A guerra de memes está em curso, amizades. Tudo de novo no front!
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Havia outro sentimento que permeava praticamente todos os indignados, na rua ou na internet. E que não seria pauta fácil na grande mídia: a credibilidade em ruínas da imprensa. Em nenhum outro lugar esse sentimento era tão palpável, tão presente nas ruas quanto no Rio de Janeiro, sobretudo naquela semana em que o papa Francisco desembarcava na cidade. E mais gente começava a perguntar onde estava Amarildo.
Desde a cobertura da grande repressão aos manifestantes do “Fora Cabral” (a ocupação na orla do Leblon que se estendeu por meses em frente ao prédio do governador do Rio, pedindo a sua saída) que a paulistana Mídia Ninja havia conquistado o amor de muito carioca. De novo, Filipe Peçanha e Rafael Vilela haviam feito talvez a única cobertura mais próxima e mais crua da violência policial e da resistência civil no Rio. Era como se aqueles moleques de 20 e poucos anos tivessem quebrado o muro do jornalismo da Globo, onipotente (mas nunca onipresente) na capital fluminense.
Até o dia em que de repente apareceu a chance de entrevistarmos o prefeito do Rio, Eduardo Paes. Uma simpatizante da MN havia encontrado o prefeito na noite anterior e comentou sobre nosso trabalho. Perguntou se ele toparia uma entrevista conosco e ele concordou – mas teria que ser no fim da tarde do dia seguinte. Foi só no dia da entrevista que soubemos da disponibilidade do prefeito. Não havia como adiar, porque depois ele estaria às voltas com a chegada do papa. Dispúnhamos de poucas horas para chegar à prefeitura.
Como não dava tempo de levar nosso time até o Rio, começamos a alistar as tropas cariocas pelo telefone. Ainda sem repórteres escalados, divulgamos que entraríamos ao vivo no final da tarde, direto do gabinete de Paes. A pressa, o improviso, a incapacidade de elaborar uma pauta com tanta gente em trânsito e sob o efeito de muita adrenalina transformaram a primeira grande entrevista política da Mídia Ninja num desastre diante da opinião pública.
A altíssima expectativa por uma matéria combativa, impactante como as tomadas de rua, e a performance de um prefeito famoso pela lábia fizeram da hora e meia de transmissão uma experiência decepcionante para quase todos os que assistiram. E foi uma agonia para nós, que de São Paulo acompanhávamos a equipe corajosa que fez o possível diante de Paes. Verdadeiro banho de água fria, essa foi a primeira grande onda de críticas, sarros e desqualificação da MN. Apesar de ninguém conseguir indicar uma boa entrevista que tivesse enquadrado Eduardo Paes, muito jornalista aproveitou para reivindicar o profissionalismo das grandes redações.
Com hematomas no orgulho, e em respeito à turma da MN carioca, só havia uma coisa a fazer: deslocar toda a tropa de São Paulo em peregrinação ao Rio. Chegaríamos dois dias depois, junto com cerca de 3 milhões de jovens da Jornada Mundial da Juventude para a semana da visita do papa. Era hora de compensar. Antes mesmo de o papa Francisco aterrissar, já estávamos na rua, ao vivo. Três equipes em diferentes pontos da cidade, acompanhando os jovens católicos e os que planejavam protestos. Filipe e eu nos posicionamos cedo na frente do Palácio Guanabara, antes que o perímetro de 1 quilômetro do entorno fosse bloqueado por um efetivo aparelhado como se à espera de uma guerra.
Começamos com uma transmissão cândida. Entrevistas com devotos, dos clássicos, rosário na mão, aos que pareciam tietes do pontífice, fita na cabeça e abadá cristão. Conversas com a meia dúzia de infiéis que estavam lá para criticar a subserviência do Estado a uma determinada Igreja. Eis que o papa desembarca de um helicóptero. Permanece duas horas dentro do palácio e vai embora sem dar o ar de sua pontifícia graça a quem estava fora. Um mero tchau de dois segundos pela janela do blindado executivo que saiu escoltado em disparada. Seria o desfecho da transmissão. Eu estava feliz, satisfeito de, enfim, realizar uma cobertura sem violência ou exaltação. Seguimos ao vivo pelas ruas de Laranjeiras, atrás da manifestação que estaria por perto, mais precisamente na fronteira imposta pela polícia para o bloqueio papal.
Chegamos quando já se ensaiava uma dispersão. Movimento LGBT, feministas, ativistas pelo Estado laico e o uníssono de “Fora Cabral”. Clima relativamente pacato. Até que, no momento em que Filipe dava uma entrevista para a Reuters, explode uma bomba de efeito moral. O clássico sinal de que as portas do inferno se abririam novamente. No corre-corre, me perco do parceiro e estou ao vivo sozinho, com o celular na mão. O buquê de gás lacrimogêneo toma as ruas e, algo inédito na minha experiência, a Tropa de Choque entra com uma caminhonete aberta no meio da correria. Disparando balas de borracha, bombas de estilhaços e mais gás em qualquer um que estivesse à vista. Me atiro no chão quando vejo uma escopeta apontada para mim e rolo para trás da coluna de um prédio. Inconformado de ter perdido o tiro, um policial mascarado rola uma bomba até mim. Torcendo para não ser de estilhaço, viro de costas e tampo os ouvidos. BUM! Tremem as tripas, zune a audição, mas meus tímpanos não ficam lesionados, como possivelmente ocorre com o rapaz ao meu lado, que sai desorientado e com fortes dores no ouvido. Ao vivo pelo twitcasting, vejo a audiência disparar. Dos 900 em média que estavam lá pelo papa, agora tínhamos 5 mil e o número continuava a subir.
Filipe reaparece, assume o celular e, sempre mais kamikaze que eu, vai atrás da caminhonete do Choque para tomar satisfações. Com escopetas voltadas para sua cabeça, aponta de volta o celular e diz seu bordão: “Imprensa, amigo! Tem 5 mil pessoas vendo você nesse momento. Cadê a identificação?”
Não recebe resposta. A caminhonete segue em frente e vamos atrás dos manifestantes que começam a se reagrupar nas escadarias da igreja do Largo do Machado. Filipe prossegue seu inquérito com os policiais que se colocam em formação diante da escadaria. Um estranho o puxa pelo braço para trás do cerco da polícia, tentando tomar seu celular. Era um policial à paisana, um P2. Filipe grita e pede que o filmem. Nem era preciso. Enxames de câmeras surgem, não vão embora nem com o spray de pimenta borrifado como inseticida.
Em menos de um minuto ele está dentro do camburão, transmitindo ao vivo sua prisão, sob gritos de apoio de uma multidão cada vez maior. Só tenho tempo de sacar meu celular e tirar uma foto dele com a cara na janela da viatura. Posto em nosso Facebook.
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22 de julho de 2013
urgente!
Repórter NINJA preso pela PM carioca por transmitir a manifestação. Ele segue ao vivo no camburão. Espalha!
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“Ei, polícia, cadê a Mídia Ninja?!” Esse era o grito ritmado de milhares de pessoas que começavam a se organizar para ir do Largo do Machado até a 9ª DP, para onde Filipe havia sido levado. Tomei um táxi e cheguei quando havia apenas três manifestantes perguntando por nosso repórter. Um deles, também Filipe, também da Mídia Ninja, filmava sua conversa com um policial civil. Sem muito aviso, tem seu celular sequestrado e também é detido. Discretamente, gravo a cena com meu celular, e em minutos mando para o Facebook. Mais alguns milhares de compartilhamentos. Um advogado da Ordem dos Advogados do Brasil me informa que os Ninjas estavam detidos por suspeita de incitação à violência. O fato é que a prisão dos dois Filipes incitou uma multidão a se aglomerar na porta da delegacia e mudar ligeiramente o mantra: “Ei, polícia, libera a Mídia Ninja!”
Nesse ponto eu já entrava ao vivo novamente. Mais de 10 mil do outro lado. Trend topic mundial. E chegavam os primeiros carros de canais de tevê para a cobertura.
Duas horas depois, o primeiro Filipe, o Peçanha, é solto. Carregam-no nos ombros e lhe entregam um megafone. Ele agradece, fala de ditadura velada e sugere que ninguém arrede pé até que todos sejam soltos. Não eram apenas os dois Ninjas que haviam sido detidos: outros oito manifestantes estavam lá dentro. Bruno Teles era um deles. Acusado de atirar um coquetel molotov nas tropas, o suposto estopim da repressão, ele alegava inocência. Não sabíamos se ele era ou não inocente. Mas não tínhamos por que confiar na versão da polícia, que não saía das ruas havia mais de um mês e meio. A pedido do advogado do rapaz, entrei na delegacia e filmei Bruno convocando as pessoas que enviassem à MN os eventuais registros do momento em que a garrafa foi atirada, ou alguma imagem que o ajudasse a provar sua inocência.
Era madrugada de segunda para terça. Centenas de e-mails batiam na nossa caixa com cenas, links, fotos e relatos. Enquanto seguíamos na transmissão ao vivo, Ninjas na base compilavam e checavam o material. Quando amanheceu, todos os detidos haviam sido soltos. Menos Bruno Teles, que, embora sem provas materiais de culpa, tinha sido transferido para Bangu. Um time editava os documentos que, naquela altura, não só provavam a inocência de Bruno como também mostravam que ele fora agredido e, mesmo dominado, eletrocutado até desmaiar no asfalto. Algumas imagens sugeriam que o coquetel molotov tinha sido atirado por um agente provocador da própria polícia: logo depois do ataque, vê-se um P2, sem camisa e encapuzado, correndo pelo bloqueio policial após mostrar a identidade.
A inocência de Bruno já era defendida na rede, com o compartilhamento de vídeos. Enquanto parte da MN editava um pot-pourri com legendas e close-ups dos principais takes, fazíamos a primeira reunião aberta no Rio, numa sala da Universidade Federal do Rio de Janeiro abarrotada de gente a fim de conversar e compor com a MN. De repente, alguém levanta a mão e avisa: o Jornal Nacional acabava de dar uma matéria sobre a noite da véspera. Bruno Teles e a Mídia Ninja eram os protagonistas.
Um bloco inteiro do noticiário destacava a prisão, a reação popular e a soltura dos Ninjas, num momento em que as atenções estavam focadas na visita do papa. Mas, o mais importante: a matéria detalhava o caso Bruno Teles, desmontando a argumentação oficial e sugerindo a participação de policiais infiltrados, esses sim os verdadeiros “vândalos” da segunda-feira. E tudo a partir das nossas imagens e das que nos foram enviadas por cidadãos com uma câmera na mão. A inocência de um manifestante era demonstrada em rede nacional por causa do jornalismo Ninja. Muitas pessoas se revoltaram ao ver a Globo usando nossas imagens – sentiram-se usurpadas. Mas a maioria só pôde comemorar: era a quebra final de uma barreira que afastava da massa o jornalismo independente. Para mim, um sinal de que as Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação eram o caminho certo. Capazes de soltar inocentes e constranger o poder. E contaminar a opinião pública.
Ao final da reunião, depois das dez da noite, ainda sem muita noção do que havia acontecido na tevê aberta, fomos seguidos por três homens que fizeram questão absoluta de conhecer o apartamento do Fora do Eixo, também a base carioca da Mídia Ninja, no bairro da Urca. Queriam se informar mais, queriam saber nossos nomes. Queriam fazer parte. E sobretudo perguntavam a cada cinco minutos se alguém tinha maconha. Só não perceberam que, ao abrir a mochila, deixaram à mostra um uniforme da polícia.
A partir do Jornal Nacional, o jogo virou novamente. De veículo independente, novidade a ser discutida, a Mídia Ninja se tornou catalisadora de um debate maior. Sobre a própria imprensa e sua crise – de credibilidade, de finanças, de função social. Nos transformamos em assunto dos articulistas de política. Todos os veículos voltaram a ligar, dessa vez com outras perguntas. Mais sobre a mídia e seu futuro do que sobre as ruas e as redes sociais. Mais sobre quem nos financiava do que o que pretendíamos. E nossos detratores, cada vez mais raivosos, pararam de questionar quem estava à frente, passando a fazer suposições sobre quem estaria por trás. Bem, para uma tropa de jornalistas de gabinete, quem estaria nos financiando? Quem seria o Grande Arquiteto? O PT, é claro… Era quase cômico, mas estávamos perdendo o controle narrativo sobre quem éramos.
Menos de uma semana depois da cobertura do Jornal Nacional, ligam da TV Cultura: o Roda Viva queria a Mídia Ninja no centro da arena. Deixamos a ideia decantar por dois dias, e topamos.
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17 de setembro de 2013
Na Câmara dos Deputados em Brasília. Em minutos vou falar no plenário da Comissão de Cultura e responder às dúvidas dos parlamentares sobre a Mídia Ninja. E falar sobre a defasagem das leis que regulam a imprensa no Brasil.
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Meados de setembro, Brasília. A ficha da Embratur e uma caneta são postas no balcão. Era o vigésimo hotel em que me hospedava nos últimos três meses. Nome, sobrenome, RG, CPF, ocupação… Ocupação? Jornalista? Defina jornalismo. Preenchi a lacuna com “Ninja”. O concièrge nem leu. Não faço mais transmissões, não escrevo, não entrevisto. Apenas falo. Quando fotografo, é para o Instagram. A gagueira deixou de ser problema. Não que tenha ido embora: apenas não me preocupo mais com ela. Não carrego mais no bolso canudo ou absorvente para eventos públicos. Era como se o imediatismo, o ao vivo, o improvisado do streaming tivesse contaminado minha rotina, agora uma turnê ininterrupta de palestras, aulas, debates, seminários Brasil afora. Nunca preparados. E, claro, reuniões. Muitas reuniões para refazer o plano de uma redação independente no Centro de São Paulo.
Minha última transmissão foi na avenida Paulista, no final de julho, na noite em que os black blocs destruíram treze agências de banco, incendiaram um carro da Record e inauguraram uma nova fase nas ruas e na cobertura dos protestos. O gás lacrimogêneo que pela enésima vez desencadeou uma crise de asma por dias, e o paralelepípedo que voou na minha direção e não atingiu minha cabeça por centímetros me cansaram um pouco. E, dias depois da ascensão e queda da Mídia Ninja no pós-Roda Viva, achei conveniente sair do ar.
Não conseguia mais manter o prumo, fazer planos ou pensar o que a MN era agora. A boa notícia era constatar como, com uma página no Facebook, ela havia conquistado um colossal capital simbólico, tinha virado o debate sobre mídia e comunicação em rede no Brasil e legitimado dezenas de jovens a falar em nome dela. A notícia ruim era ver que a MN – que havia conquistado um colossal capital simbólico, tinha virado o debate sobre mídia e comunicação em rede no Brasil e legitimado dezenas de jovens a falar em nome dela – ainda era apenas uma página no Facebook.
O plano de financiá-la, de desenvolver uma estrutura editorial e investir no jornalismo de fôlego estava refém do déficit entre seu enorme simbolismo e sua estrutura gasosa. Precisávamos de um muito adiado site. E de alguma orientação sobre como organizar equipes e financiar não apenas a produção, mas o tempo e a dedicação integral de jornalistas e comunicadores.
Minha relação com o Fora do Eixo seguia perfeitamente boa, porém mais distante do que nunca. Às voltas com uma crise inédita na rede, eles precisavam manobrar o dia a dia da cobertura, as constantes adesões e as demandas da MN. E, claro, dar conta das centenas de shows e dezenas de coletivos e casas que, com pouco recurso, administravam. O FdE entendeu e respeitou minha distância, e, imagino, não gostou. Eu não tinha do que reclamar deles. Ao contrário, o modo como lidaram com a berlinda midiática, a saraivada de graves acusações só aumentou meu respeito, minha vontade de ver florescer o processo coletivista que representavam. Era bizarro. Tanta gente acusava o FdE de ser uma senzala, e para mim o movimento era cada vez mais parecido com um quilombo.
Uma crise inédita nas minhas contas se alastrava. Eu necessitava de um espaço silencioso para o planejamento de 2014. Precisava fazer alguma coisa com os 40 mil e-mails nem sequer lidos na caixa de entrada, e dar um feedback à fila de amigos e parceiros que esperavam respostas ou um minuto de atenção. Nada disso iria para a frente se eu não descomprimisse, se não desse um respiro para minha cabeça. Era hora de voltar às raízes, aos mergulhos interiores nos quais, em tempos de ruas menos inflamáveis, eu tinha submergido – mergulhos no jornalismo ativista e nos propósitos que desembocaram na Mídia Ninja.
Nos últimos dias de setembro, alguns e-mails, mensagens de SMS e telefonemas pipocavam com uma estranha sondagem: que tal disputar as eleições de 2014 para deputado federal? O dia 5 de outubro se aproximava e, com ele, encerrava-se o prazo para a filiação partidária de qualquer um que estivesse a fim de virar opção nas urnas no ano que vem. Recebi convites implícitos e mais ou menos explícitos de mais de um partido. Alguns amigos me pressionavam para topar – “Faz todo o sentido, Bruno”; outros me pressionavam para nem pensar nisso – “Não faz o menor sentido, Bruno.” Para mim, não era uma questão de falta de sentido: era falta de desejo.
Enfim, 5 de outubro. Dois dias antes, a Rede Sustentabilidade de Marina Silva, da qual eu era um dos fundadores, teve seu registro negado. Marina correu para Eduardo Campos. Recebo um SMS: “Cara, se registra no PSOL. Último dia.”
Essa sugestão não poderia ter vindo em pior hora. Ou em melhor.
Se a questão da mídia e da política crescia internamente como algo crucial no jogo pessoal e coletivo, havia um norte em parte esquecido em minhas decisões recentes. Minha saúde mental, espiritual. Minha felicidade. A garantia de um lastro de sentido e propósito antes de agir. A catarse de junho ganhava, enfim, uma dimensão interna. Depois de meses em que minha figura pública e minha autoimagem se confundiam com um perfil no Facebook, tudo o que eu não precisaria era de uma campanha eleitoral. Em resumo: Deus me livre!
Fui à praia. O mar do Arpoador estava forte, rápido, imprevisível. Peguei meu celular para uma foto. Mas foi ver o mar salpicado de surfistas pela tela e me senti ridículo. Quase tive vontade de atirar o aparelho na água antes de ver o adesivo da Mídia Ninja colado em suas costas. Voltei à ressaca coalhada de surfistas subindo e sumindo atrás das vagas. E descendo pelo caos iridescente das ondas, rente às pedras, sob o real risco da morte, em nome de muito mais do que mera adrenalina ou aplausos dos que estavam em terra firme. Num súbito frio na barriga, a narrativa de 2013 fez todo o sentido do mundo. A ficha caiu: streaming, em português, é apenas o gerúndio de fluir, do fluxo que corre.
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