Borges disse que toda a sua obra posterior desenvolveu temas apresentados em Fervor de Buenos Aires: "Sinto que durante toda a minha vida venho reescrevendo esse único livro." ILUSTRAÇÃO: QUINT BUCHHOLZ_ONE MORNING IN NOVEMBER_1909 / ACERVO CARL HANSER VERLAG_MÜNCHEN WIEN_1997
Onde está Borges?
Como um livreto produzido às pressas levou uma penca de livreiros às barras dos tribunais argentinos
Graciela Mochkofsky | Edição 88, Janeiro 2014
O universo dos livros e manuscritos antigos é pequeno, cheio de intrigas, propenso a traições e fraudes. Alberto Casares vive nesse mundo há décadas. Presidente da associação de antiquários de livros de Buenos Aires, é um dos maiores especialistas do assunto na Argentina. Tem o perfeito physique du rôle: barba grisalha e mal aparada, corpo pouco tonificado, olhar intenso e desconfiado.
A desconfiança é um pré-requisito da profissão. Alguns meses atrás, alguém lhe ofereceu uma edição original de Dom Quixote de la Mancha, do século XVII, por 1 milhão de euros. Ele examinou o livro com um certo vagar e a máxima cautela, mas não pôde conter a emoção de um peregrino diante do Santo Sepulcro. Constatou que se tratava de uma conhecida falsificação do século XIX; embora tivesse grande valor em si mesma, sua cotação não passava dos 200 mil euros. O vendedor pegou o livro de volta e meteu a viola no saco, decidido a encontrar um cliente mais incauto, e a Casares restou a melancolia de ter perdido um objeto que nunca lhe pertenceu.
O que não fariam certas pessoas para ter um livro como esse? Comentando a respeito de um ex-cliente, Casares revelou que “de repente a ambição o levou a cometer ilegalidades – isso acontece com frequência, bibliófilos se arriscam em crimes pela loucura de possuir certas edições”. O tal ex-cliente era Daniel Pastore, colecionador de livros antigos e de primeiras edições, as ditas princeps, herdeiro de uma fortuna farmacêutica e dono da Imago Mundi, a mais elegante casa de livros e gravuras antigas de Buenos Aires, fechada há alguns anos depois de uma sucessão de escândalos internacionais envolvendo seu nome.
Pastore lhe causava ojeriza e fascínio. Tinha 18 anos quando entrou na livraria de Casares pela primeira vez; a partir de então, passou a frequentá-la com regularidade. Bem-apessoado, rico, simpático e erudito, era um bom cliente, mas também era pedante e gostava de mostrar a Casares que sabia mais do que ele.
Às vezes sabia mesmo. Mas não sobre Jorge Luis Borges.
Numa certa manhã do final de 1999, o cliente apareceu com um exemplar da edição princeps de Fervor de Buenos Aires. Primeiro livro de Borges a ser publicado (antes dele, o autor havia escrito outros dois, que permaneceram inéditos), homens como Pastore e Casares nele reconheciam a mais valiosa edição da maior glória literária da Argentina, e uma das maiores do mundo, do século XX.
Por fora, era um livreto fininho, sem prefácio nem colofão – aquela última página que remata um livro, com informações sobre data e local de impressão. A edição havia sido financiada pelo pai do escritor, quando o filho tinha 23 anos. “Escrevi esses poemas em 1921 e 1922, e o volume saiu no início de 1923”, relembra Borges num ensaio autobiográfico de 1970.[1] “O livro foi na verdade impresso em cinco dias. Ele precisou ser feito com urgência porque tínhamos de voltar à Europa, onde meu pai queria consultar de novo seu oculista de Genebra. Eu acertara um livro de 64 páginas, mas o manuscrito ficou muito extenso e, no último momento, por sorte, foi necessário deixar de fora cinco poemas. Não lembro absolutamente nada deles. O livro foi produzido com espírito um tanto infantil. Não houve correção de provas, não se incluiu um índice e as páginas não estavam numeradas. Minha irmã fez uma gravura para a capa e foram impressos 300 exemplares. Naquele tempo publicar um livro era uma espécie de aventura particular. Nunca pensei em mandar exemplares aos livreiros ou aos críticos. A maioria foi entregue como presente.”
Dentro, o retrato único de uma experiência. Borges tinha morado na Europa entre 1914 e 1921, e os 46 poemas que reuniu no livro refletem o que ele encontrou ao voltar para a Argentina. “A cidade de sua infância havia mudado, não só porque haviam se passado alguns anos, mas porque esses anos foram decisivos para o país”, explica Beatriz Sarlo, uma das maiores estudiosas de sua obra, num ensaio publicado em 1999 na revista Letras Libres. “Durante a segunda década do século XX, consolidou-se um processo que estava em efervescência quando a família Borges partiu para a Europa, em 1914. Naquela época, Buenos Aires estava se constituindo como cidade moderna; quando Borges voltou, embora ainda fosse um espaço em transformação, já havia praticamente perdido as marcas mais pitorescas do seu passado de aldeia criolla. […] Borges voltou, portanto, a um lugar que não conhecia.”
Sobre Fervor de Buenos Aires, Borges, no mesmo Ensaio Autobiográfico, diz: “Receio que o livro fosse um plum pud-ding: continha coisas demais. No entanto, olhando-o em perspectiva, penso que nunca me afastei dele. Tenho a sensação de que todos os meus textos seguintes simplesmente desenvolveram temas apresentados em suas páginas. Sinto que durante toda a minha vida tenho estado reescrevendo esse único livro.” Todo colecionador de sua obra conta com um volume dessa primeira edição. Ou ao menos todo colecionador que se preze. Como não restam muitos exemplares – talvez 150, segundo Casares; não mais do que 15, conforme Alejandro Vaccaro, colecionador e biógrafo de Borges –, não são exatamente fáceis de conseguir.
Mas Pastore estava com o livro. Casares tinha como aferir a legitimidade da edição? “Estão me oferecendo esta joia por um preço muito tentador”, insinuou, sem esclarecer o valor. O livreiro sabia que estava cotado entre 30 e 40 mil dólares. Examinou o exemplar e imediatamente o identificou. Era o Fervor de Buenos Aires da coleção Peña, vendida à Biblioteca Nacional poucos meses antes por seu proprietário, Juan Manuel Peña. Casares conhecia bem aquele exemplar: seis anos antes ele o tivera em mãos, pois o pedira emprestado a Peña para fazer uma cópia fac-similar da edição original. Desprovido de capa, trazia uma dedicatória manuscrita do autor à poeta Nydia Lamarque, além de uma correção no quinto verso do poema “Villa Urquiza”, também à mão:
Atendido de amor y rica esperanza,
¡cuántas veces he visto morir sus calles agrestes
en el Juicio Final de cada tarde!
La frecuente asistencia de un encanto
acuña en mi recuerdo una predilecta eficacia
ese arrabal cansado,
y es habitual evocación de mis horas
la vista de sus calles; (…) [2]
O artigo una estava riscado, e na margem direita o autor o substituíra pela preposição con. Assim, acuña en mi recuerdo una predilecta eficacia passava a ser acuña en mi recuerdo con predilecta eficacia. Vários exemplares da princeps, que saiu coalhada de erros, trazem essa mesma emenda manuscrita. Como então era praxe, dadas as baixas tiragens, os autores corrigiam seus versos na hora de presenteá-los.
“A edição é boa”, disse Casares. “Foi roubada da Biblioteca Nacional. Quem a ofereceu?” Pastore mencionou Guillermo Billinghurst – segundo o livreiro, um “encadernador medíocre” que costumava levar-lhe primeiros exemplares de Borges de origem duvidosa, sempre alegando que alguém os deixara para encadernar e não voltara para retirá-los.
“Vou denunciar o roubo à Biblioteca Nacional”, avisou Casares ao cliente. “O senhor faça como preferir”, completou. Viu-o retirar-se com o livro roubado, e ficou “com a íntima certeza de que Pastore não o compraria”.
Catorze anos mais tarde, Casares lamenta aquele seu rompante de civismo. Porque o que aconteceu a seguir mostrou que na Argentina é melhor ficar de boca fechada.
***
Antes de fazer a denúncia, Casares telefonou para Juan Manuel Peña para alertá-lo de que o livro de sua coleção tinha sido roubado da Biblioteca Nacional. Em vez de agradecer, seu interlocutor lhe implorou que ocultasse o furto: a instituição ainda não pagara por seus livros, não obstante já terem sido entregues; um escândalo poderia arruinar suas chances de ver a cor do dinheiro. Casares, decidido a fazer o que era certo, falou com Alejandro Vaccaro, o especialista em Borges, que entendeu a gravidade da questão e se prontificou a acompanhá-lo para explicar o caso ao então diretor da Biblioteca Nacional, Francisco Delich.
Conseguiram uma audiência, mas, a exemplo de Peña, o diretor pareceu contrariado com a denúncia. Antes de mais nada, Delich e outros dois funcionários que participaram da reunião negaram que o exemplar tivesse sido roubado – integrava, disseram, uma exposição itinerante sobre o escritor que estava retida em Portugal, com “problemas” para voltar para o país (muito depois, uma funcionária da Biblioteca me informaria que o governo argentino levou três anos para repatriar essa mostra, “devido a impedimentos financeiros”). Além disso, a Biblioteca não tinha uma descrição completa do exemplar, que fora adquirido pouco antes de ser despachado para essa exposição, por isso era difícil afirmar se falavam do mesmo objeto.
Exasperado, Casares exigiu que a polícia fosse acionada e revistasse prontamente o apartamento de Billinghurst, para recuperar o livro. Os funcionários se limitaram a iniciar uma sindicância interna.
***
Passaram-se os anos. Billinghurst, o suposto detentor do livro roubado, já havia morrido quando afinal a sindicância confirmou que, de fato, o exemplar de Fervor de Buenos Aires tinha desaparecido da Biblioteca. Casares foi chamado ao Ministério da Educação para confirmar sua denúncia de roubo. O novo burocrata que tomou seu depoimento avisou: “Pense bem, porque, se ratificar, o caso vai para a justiça federal.”
E assim foi. Os oficiais do fórum federal do juiz Jorge Ballestero, acostumados a lidar com crimes envolvendo drogas ou corrupção governamental, não entenderam a gravidade do caso: não era um manuscrito de Borges, tampouco um exemplar único – era um volume impresso, um entre muitos que andavam por aí. E embora trouxesse a caligrafia de Borges em sua primeira página e num dos poemas do miolo, qual era, realmente, sua importância? A mesma biblioteca dispunha de outro exemplar do livro, da mesmíssima edição. (Catorze anos mais tarde, quando procurei o juiz, agora desembargador, para lhe perguntar sobre aquele inquérito e saber que fim tivera o processo judicial, ele mandou responder que não se lembrava do caso.)
O tráfico de obras de arte, entre as quais se incluem livros e manuscritos antigos, só é superado em grandeza pelo de armas e pelo de drogas. Segundo estimativas repetidas em congressos internacionais, movimenta algo em torno de 6 bilhões de dólares por ano. A Interpol, que há duas décadas teve de criar um escritório específico para investigar esse tipo de crime, afirma que tal estimativa é impossível de ser comprovada. Sabe-se que Londres é o principal centro de comércio ilegal de livros raros e manuscritos, e que o principal destino são os Estados Unidos, onde parece haver bastante gente disposta a pagar centenas de milhares de dólares, até milhões, por um livro raro que ninguém mais tem e que só o comprador poderá apreciar. Sabe-se também que essa gente dificilmente comete o roubo: em geral compra o tesouro do ladrão. Segundo o professor Travis McDade, da Faculdade de Direito da Universidade de Illinois, o maior especialista americano em roubos de livros, uma das razões que levam essas pessoas a querer possuir um símbolo único da cultura universal é que assim elas se sentem especiais, únicas. Ninguém sabe quantos livros valiosos foram desviados e posteriormente vendidos no mercado negro. De quando em quando rebenta um grande escândalo. Em 2003, por exemplo, descobriu-se na Dinamarca que um funcionário da Biblioteca Real tinha furtado, ao longo dos trinta anos anteriores, mais de 3 mil livros únicos, entre eles manuscritos de Immanuel Kant, vários atlas do século XV e primeiras edições de Martinho Lutero. O caso só veio à tona porque, com a morte do funcionário, sua viúva tentou vender a coleção para a casa de leilões Christie’s. O valor desses livros e manuscritos não reside apenas no que um milionário está disposto a pagar por eles, e sim, como tão bem sabem colecionadores e traficantes, em seu valor para a cultura universal.
Casares, na primeira vez que foi chamado a confirmar sua denúncia, quatro anos depois de registrá-la, não conseguiu fazer com que os funcionários do Judiciário argentino entendessem a importância dos originais.
***
Aparentemente, tampouco havia quem se interessasse pelo aspecto cívico da questão.
A Biblioteca Nacional é tão antiga quanto a Argentina: foi criada em 1810, junto com o primeiro governo independente, e seu primeiro diretor foi Mariano Moreno, um dos maiores próceres nacionais e fundador do primeiro jornal da nação, La Gazeta de Buenos Aires. A Biblioteca foi, em algum momento, motivo de orgulho; por volta de 1960, porém, ficou evidente que o prédio onde funcionava já não dispunha de espaço ou condições para abrigar as coleções. Os livros se estragavam ou se perdiam. O problema suscitou um debate público; para encerrar a polêmica, o presidente da República Arturo Frondizi desapropriou 3 hectares no bairro de Palermo e promoveu uma licitação para construir um novo edifício. O arquiteto Clorindo Testa venceu com um ambicioso projeto da escola brutalista, repleto de estruturas de concreto armado aparente.
A construção, no entanto, só começaria onze anos mais tarde. Depois parou. Depois recomeçou. Depois tornou a parar. Uma sucessão de verbas milionárias foi liberada especialmente para a obra, mas o dinheiro nunca era gasto para a construção da biblioteca. O prédio acabou por se transformar num símbolo da corrupção e da falta de interesse pela cultura por parte das sucessivas ditaduras militares que governaram o país. Só no início dos anos 90, graças a um empréstimo milionário do governo espanhol, o presidente Carlos Menem conseguiu terminar uma obra planejada havia mais de trinta anos. Enfim, o edifício foi inaugurado no dia 10 de abril de 1992.
O nome de Borges está indissociavelmente ligado à história da Biblioteca Nacional. Diretor da instituição durante dezoito anos, entre 1955 e 1973, foi em sua gestão que se decidiu pela mudança do prédio. Os livros já desapareciam em sua época; mas quando lhe perguntavam se isso era verdade, saía-se com uma de suas típicas evasivas, dizendo que não podia saber se roubavam os livros porque era cego…
Débora Yánover, proprietária da livraria Norte, de Buenos Aires, conta que seu pai, o falecido Héctor Yánover, fundador da livraria e diretor da Biblioteca Nacional entre 1994 e 1996, muitas vezes recebia em sua loja pessoas que lhe ofereciam edições princeps e manuscritos surrupiados da biblioteca que ele mesmo dirigia. Segundo Horácio Salas, outro ex-diretor, a instituição perdeu 200 mil livros nas últimas décadas.
Sobre que total? Ninguém sabe. É isso mesmo: ninguém sabe quantos livros há, ou deveria haver, na Biblioteca Nacional da Argentina. Horácio González, seu atual diretor, confidenciou-me que, “em números aproximados, a Biblioteca tem mais de 1 milhão de livros, mais 4 milhões em materiais diversos, entre revistas, jornais, partituras, discos, fotografias etc. Não tenho números exatos, e com um volume desses é muito difícil de calcular”.
Uma reportagem recente observou que, “quando o usuário devolve um livro, este desce pelo monta-cargas e é recolocado no lugar que lhe corresponde. Se por alguma razão vai parar numa estante errada, corre-se o risco de que o exemplar fique perdido por anos, décadas ou até para sempre”.
Esse não é um problema exclusivo da Biblioteca; os arquivos estatais naufragam no abandono. Há alguns anos, um oficial da Marinha abriu, a meu pedido, um porão onde eram guardados documentos oficiais da primeira metade do século XX; encontrou-o transformado num lago de águas servidas onde boiavam caixas, papéis e ratos. Em 2001, um subsecretário do Ministério do Interior por acaso achou, ao mudar de sala, um valioso arquivo de documentos reservados da última ditadura (1976–83). Sua primeira iniciativa foi me oferecer a papelada: quem sabe não teria serventia para o livro que eu estava escrevendo? Que eu pegasse o que quisesse. Só depois que o jornal em que eu trabalhava publicou a história da descoberta do arquivo, o funcionário se viu obrigado a entregar os documentos a uma repartição oficial incumbida de organizá-los. Há apenas dois meses, em novembro de 2013, outro importante arquivo com 1 500 atas secretas da última ditadura apareceu no Ministério de Defesa, quando um diligente funcionário da limpeza resolveu fazer o seu serviço. Na hemeroteca da Biblioteca do Congresso Nacional, é comum encontrar coleções de revistas e jornais com páginas e fotos arrancadas. Ou, na seção de livros, ao pedir um título que já se consultou anteriormente, receber como resposta que tal volume nunca esteve em poder da Biblioteca. (Se esteve, talvez não esteja mais.)
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Em meados de 2003, enquanto a investigação definhava nos tribunais, Pastore voltou a procurar Casares, desta vez não para lhe mostrar uma raridade, mas para lhe pedir um exemplar da princeps de Fervor de Buenos Aires. Estava preparando uma coleção de primeiras edições e outros tesouros de Borges, a ser leiloada pela Bloomsbury Auctions, em Londres. Pensava obter um preço recorde pelo lote: 4 milhões de dólares.
Casares não tinha o que ele queria, tampouco logrou encontrar entre os colecionadores que contatou: quem possuía não mostrava a menor intenção de vender. Em vez disso, por uma pequena soma vendeu a Pastore a cópia artesanal que fizera dez anos antes do episódio do roubo do exemplar da coleção Peña; e, por 10 mil dólares, passou adiante um exemplar de uma primeira edição de outro livro de Borges, Luna de Enfrente (poemas, 1925). Pastore ainda lhe pediu que escrevesse um texto de apresentação para o catálogo da coleção, cuja redação final ficaria a cargo de outro redator.
Em 28 de outubro de 2003, quase um mês antes da data marcada para o leilão, o catálogo chegou às mãos de Alejandro Vaccaro, o colecionador que acompanhara Casares à Biblioteca Nacional quando o livreiro resolveu denunciar o roubo às autoridades. Ao folheá-lo, Vaccaro se deparou com a descrição do exemplar de Fervor de Buenos Aires incluído na oferta: correspondia exatamente à do exemplar roubado da Biblioteca. Lá estavam a dedicatória a Nydia Lamarque (seu nome tinha sido apagado, mas conservava-se a saudação: “Cordialmente, Jorge Luis Borges”) e a correção no poema “Villa Urquiza”. Além disso, uma legenda informava que o exemplar tinha pertencido à coleção Peña. O especialista não tinha dúvida: era o exemplar roubado!
O que Vaccaro não entendia era por que Casares, que havia denunciado o crime logo depois de descobri-lo, agora se tornara seu cúmplice. Telefonou para um jornalista de La Nación e no dia seguinte o mundo inteiro soube que um valioso exemplar roubado da Biblioteca Nacional argentina seria posto à venda em Londres por 22 mil libras esterlinas – àquela altura, o interessado em adquirir o lote inteiro havia retirado sua oferta e a coleção havia sido desmembrada. Era um escândalo internacional e um vexame para o país.
Pastore e Marino Massimo de Caro, o organizador do leilão, asseguraram que se tratava de um erro do catálogo. O primeiro explicou que, na hora de descrever o exemplar, o redator do catálogo tivera diante dos olhos a cópia fac-similar. Daí o engano. O exemplar incluído no leilão não era o da coleção Peña, de jeito nenhum.
Só que ninguém acreditou neles. Precisaram retirar o livro do leilão, que acabou sendo um fiasco. Pastore e De Caro se prontificaram a encaminhar o volume à Biblioteca, para que o então diretor, Horácio Salas, pudesse verificar que não era o exemplar roubado. Salas aceitou, mas antes de recebê-los entrou em contato com Ballestero, responsável pelo caso àquela altura esquecido, e o juiz acionou a Interpol. Quando Pastore e De Caro entraram no gabinete do diretor, depararam com os policiais, que lhes tomaram o livro e o puseram sob a custódia da Justiça.
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Casares, agora apontado como suspeito de ter participado de um crime que ele mesmo denunciara, declarou perante o juiz que o livro oferecido no leilão não era o exemplar roubado da Biblioteca, nem a cópia fac-similar que ele vendera a Pastore. Tratava-se, explicou, de um terceiro exemplar que se parecia com os outros dois: a obra em questão, encadernada e com a capa original (diferentemente do exemplar furtado), trazia a emenda no quinto verso do poema “Villa Urquiza”, a dedicatória com o nome apagado e a saudação “Cordialmente, Jorge Luis Borges”. Porém, sustentava o livreiro, a linha traçada na correção do poema era diferente da do exemplar dedicado a Nydia Lamarque.
Laura Rosato, responsável pela coleção Borges na Biblioteca, disse, em seu depoimento, que não podia afirmar se aquele era ou não o exemplar roubado, porque mal o tinha visto quando abrira as caixas da coleção Peña, em 1999. O livro nem sequer tinha sido carimbado e tombado como patrimônio da Biblioteca.
Vaccaro denunciou à imprensa que Casares mentia e chegou a se abalar até a entrada da Mostra Anual do Livro Antigo para distribuir panfletos contra os “ladrões de livros”. A pá de cal foi o anúncio de Juan Manuel Peña garantindo que aquele livro era, sim, o exemplar que pertencera a sua coleção e que ele tinha vendido à Biblioteca.
Em setembro de 2007, oito anos depois de seu desaparecimento, o juiz concluiu que o livro custodiado era de fato o exemplar roubado e, sem indiciar culpados nem impor penalidades, ordenou que fosse devolvido à Biblioteca. Com isso, deu-se o caso por encerrado.
“Foi comprovado que o livro pertencia à Biblioteca Nacional”, anunciou Horácio González, diretor da instituição desde 2005 (o quinto, desde o momento do roubo). “O juiz Ballestero agiu de modo preciso e fervoroso, para fazer um jogo de palavras com o título da obra de Borges, e em breve o exemplar estará à disposição do público.”
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Três semanas antes da decisão judicial, um uruguaio chamado César Gómez Rivero, colecionador de livros e mapas antigos radicado em Buenos Aires, consultou na Biblioteca Nacional da Espanha, em Madri, alguns livros do século XV. Sem que ninguém percebesse, com uma gilete recortou dezenove valiosas gravuras, dentre as quais dois mapas-múndi da Cosmografia de Cláudio Ptolomeu, impressos em 1482; o Reconocimiento Estrecho de Magallanes, de 1621; o mapa esquemático Temperata Antipodum Nobis Incognita, do geógrafo medieval Macrobio, impresso em 1485; não bastasse, ainda se afeiçoou a umas cenas de caça do Arte de Ballestería y Montería, de Alonso Martínez de Efpinar, de 1644, e resolveu recortá-las; enrolou tudo com cuidado e escondeu em sua roupa. Nessa mesma noite pegou um avião para Buenos Aires. Quando, dias depois, o crime foi descoberto, a diretora da Biblioteca da Espanha, a escritora Rosa Regás, viu-se obrigada a pedir demissão.
A Interpol seguiu o rastro das valiosas lâminas – só o mapa de Ptolomeu estava avaliado em 110 mil euros – e chegou até Pastore. A Imago Mundi oferecia as lâminas em seu catálogo. Já tinha vendido algumas, pela internet, a clientes da Austrália e dos Estados Unidos. Pastore foi condenado a uma pena leve, de serviço comunitário, mas o escândalo internacional foi tamanho que, antes que a associação argentina de antiquários de livros pudesse puni-lo com a expulsão, ele decidiu fechar a Imago Mundi.
Seu sócio no leilão londrino, Massimo de Caro, foi pego alguns anos mais tarde, na Itália. Em abril de 2012, descobriu-se que pelo menos 1 500 livros (uns dizem terem sido 4 mil) dos séculos XV ao XVII, de valor incalculável, tinham desaparecido da Biblioteca dei Girolamini, de Nápoles, uma das mais antigas do país. Fazia onze meses que De Caro fora empossado diretor da instituição, e em sua casa a polícia encontrou caixas com centenas de livros roubados. Já na prisão, o italiano confessou o crime e passou a colaborar com a polícia na recuperação dos exemplares furtados e vendidos por milhões de dólares no mercado internacional. O nome de Pastore, como contato argentino de De Caro, também consta nessa investigação.
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Seis anos depois da devolução de Fervor de Buenos Aires à Biblioteca, e catorze desde o início dessa história, Casares ainda lamenta o dano a sua reputação, nunca reparado. Disse que o deprimia a lembrança daquela denúncia que resultara em sua própria acusação. Preferia não voltar ao assunto.
Em seguida, porém, me deu uma infinidade de detalhes, além de mostrar uma outra cópia fac-similar e o catálogo do leilão em Londres. Voltou a afirmar que o livro devolvido à Biblioteca não era o mesmo que havia sido roubado. Diante da minha incredulidade, insistiu: na correção do poema “Villa Urquiza”, a linha que Borges traçou entre o artigo suprimido e a preposição que o substituiu na margem direita (de una até con) tinha comprimento e inclinação diferentes num exemplar e no outro. Não era preciso consultar o original para compará-lo; bastava a cópia fac-similar. Disse-me ainda que havia depositado a cópia em juízo para que fizessem o cotejo – que, por ignorância ou desinteresse, não havia sido feito.
Sua explicação, porém, não poderia ser comprovada: se ele mesmo vira o livro roubado nas mãos de Pastore, parecia evidente que este havia ficado com o volume. Os antecedentes de Pastore e de seu sócio De Caro pareciam confirmar essa evidência. Além disso, Peña, o dono original, reconhecera o exemplar como sendo o de sua coleção. Se isso ainda não bastasse, Vaccaro, o outro denunciante, havia me contado que, poucos anos depois do escândalo do leilão malogrado, Pastore o convidara para um almoço e lhe contara “a verdade”: o livro era, de fato, o exemplar roubado da Biblioteca, mas ele e De Caro o haviam comprado de boa-fé de John Wronosky, um vendedor de livros antigos de Boston que costuma oferecer manuscritos de Borges (cuja autenticidade alguns colecionadores puseram em dúvida) até por meio milhão de dólares.
Como eu estava fora de Buenos Aires por alguns meses, pedi a um estudante de letras que fosse à Biblioteca Nacional, solicitasse o exemplar recuperado e me mandasse uma cópia da página do poema “Villa Urquiza”.
Surpreendentemente, depois de muitas idas e vindas, não lhe permitiram vê-lo. Onde estava o livro? Escrevi então para o diretor, Horácio González: era verdade que o exemplar recuperado não era o roubado? Por que o público não tinha acesso a ele?
Para minha surpresa, González respondeu: “Sim, procede: a primeira edição de Fervor de Buenos Aires que temos é um livro recuperado que não parece ser o mesmo que foi roubado.” Laura Rosato, responsável pela coleção Borges, copiada no e-mail, confirmou a informação: de fato, tratava-se de outro livro.
De onde surgira esse exemplar? O que acontecera com o roubado?
Ninguém sabia.
“Da próxima vez que alguém me trouxer um livro roubado”, sentenciou Casares em sua livraria, “eu não abro a minha boca.”
[1] “Autobiographical Notes”, publicado originalmente em inglês na revista The New Yorker em 19 de setembro de 1970, foi ditado a Norman Thomas di Giovanni, seu colaborador e tradutor. Meses depois serviu de apresentação à edição americana de O Aleph. No Brasil, foi lançado como Ensaio Autobiográfico.
[2] O poema não consta da edição definitiva de Fervor de Buenos Aires, revista pelo autor e estabelecida em 1969. Segue a tradução literal: Atendido de amor e rica esperança,/ quantas vezes vi morrer suas ruas agrestes/ no Juízo Final de toda tarde!/ A frequente assistência de um encanto/ cunha em meu lembrar uma predileta eficácia/ esse arrabalde cansado/ e é habitual evocação das minhas horas/ a visão de suas ruas.