José Moura de Melo, primo de Lula, aponta para vestígios do local onde o líder petista teria morado na infância. “Já ouvi de parentes que era uma casa de pobre, mas jeitosa, emboçada” FOTO: FERNANDO RABELO_2017
Onde fica a casa do Lula?
O périplo de um grupo de turistas em busca das raízes do lulismo
Tiago Coelho | Edição 133, Outubro 2017
Antes mesmo que o avião decolasse, o homem baixinho de barba e cabelos brancos mostrou com orgulho aos companheiros de viagem uma fotografia no celular. Era a imagem de uma típica casa de taipa, pequena e decrépita, que bem poderia servir de ilustração a uma reportagem ou capítulo de livro sobre a pobreza rural no Nordeste. A porta e a janelinha, ambas de madeira, eram velhas. O reboco de barro estava gasto e expunha vigas irregulares que sustentavam a construção. No teto, faltavam algumas telhas.
“É a casa de Lula”, anunciou o passageiro do voo que partia do Rio de Janeiro com destino a Pernambuco naquele sábado pela manhã, no final do mês de julho. A imagem aparecia entre outros registros, que se sucediam na tela do smartphone. “Fui eu que tirei a foto”, ele disse.
Chamava-se Jorge Eduardo Nascimento, tinha 65 anos e era engenheiro. Havia trabalhado por três décadas na Petrobras antes de se aposentar. Ao publicar a imagem numa rede social, tinha acrescentado uma espécie de legenda explicativa. “Eles não aceitam que um homem do povo tenha chegado tão longe no cenário mundial! Olha onde ele nasceu!”, dizia o texto.
Ao seu redor, nas poltronas contíguas, na fileira da frente e em assentos mais próximos da traseira do avião viajavam os demais integrantes da excursão. Seis ao todo – quatro mulheres e dois homens –, além de mim, que me juntara ao grupo, e da líder e organizadora da empreitada, Patricia Rabelo, de 58 anos, dona da agência de viagens Sagarana. Alguns deles se conheciam de outros passeios promovidos por Rabelo. A Sagarana, como ela já havia me explicado, é uma “agência butique”, especializada em pacotes turísticos para grupos pequenos, de dez a quinze pessoas.
A ideia do novo tour – uma visita de quatro dias à cidade natal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – tinha surgido por causa da fotografia feita por Nascimento meses antes, no agreste pernambucano. Acomodado na poltrona do avião, o engenheiro repetia brioso que também tinha nascido na “terra de Lula”, daí as visitas frequentes que fazia a Garanhuns – e a fotografia, tirada na vizinha Caetés. Era filho de um alfaiate pobre, que com esforço permitira ao rebento estudar em boa escola, conquistar um diploma universitário e, finalmente, por concurso, ingressar na Petrobras. Apesar de ter passado a maior parte da vida no Rio, mantinha o sotaque pernambucano. Chamou a atenção para o ano de seu nascimento, 1952, o mesmo em que Lula havia deixado a cidade, explicou. O futuro líder político tinha então 7 anos e partia, com a família, para São Paulo. Segundo Nascimento, essa coincidência de datas revelava “uma espécie de sinergia” entre ele e o ex-presidente.
No final do ano passado, o engenheiro mostrou a foto a Patricia Rabelo, de quem é amigo. Foi quando a empresária teve a ideia de preparar um roteiro de viagem para a terra natal do ex-presidente. Àquela altura, Lula já tinha sido denunciado pelo Ministério Público por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Fazia algum tempo, então, que o país se encontrava dividido entre detratores e defensores do petista, uma polarização que se acentuou depois do processo de impeachment sofrido por sua sucessora, Dilma Rousseff.
Por todas essas razões, Rabelo achou conveniente, no caso desse novo pacote, fazer uma espécie de seleção prévia entre os seus clientes mais fiéis. Decidiu que era prudente ter por alvo apenas aqueles que detivessem alguma afinidade ideológica com o ex-presidente. Aos possíveis interessados, enviou um e-mail com o convite para conhecerem “a história do operário que chegou à Presidência do Brasil por duas vezes”. Foi sobretudo por causa dessa pré-seleção ideológica, ela disse, que o grupo que partia naquela manhã para Pernambuco era diminuto. Mas a crise econômica também podia ter contribuído para prejudicar a adesão ao pacote, admitiu. Cada um dos participantes tinha tido que desembolsar entre 3 600 e 4 400 reais pela excursão.
A viagem havia sido marcada para o final de julho, época em que Garanhuns abriga o tradicional Festival de Inverno, com atrações musicais. Faltavam dez dias para o início da excursão quando Lula sofreu novo revés: o juiz Sérgio Moro o condenou a nove anos e seis meses de prisão por ter recebido da construtora oas um apartamento tríplex no Guarujá em troca de favorecimentos à empresa. A defesa recorreu da sentença, e o caso será julgado no tribunal de segunda instância da Justiça Federal em Porto Alegre. O passeio, que já tinha um viés turístico-ideológico, passou então a ter mais uma motivação. Na véspera da viagem, Rabelo mandou uma mensagem aos clientes. “Vamos levar muita energia boa para o Lula!”, pediu a empresária.
Jorge Nascimento havia se vestido a caráter para a excursão: além da camisa vermelha, usava uma calça jeans em que os rostos de Lula e Dilma apareciam estampados em estêncil, na altura das coxas. “Na perna direita, onde tenho mais força, pus o Lula; na esquerda, minha posição ideológica, Dilma”, explicou. As peças se tornariam uma espécie de uniforme para o engenheiro nos dias seguintes.
Ao seu lado, na janelinha, ia Valéria Lopes, uma jornalista de 53 anos, alta, com cabelos louros compridos e um acentuado sotaque carioca. A moradora de Copacabana, habituée dos pacotes da agência Sagarana, também é amiga de Patricia Rabelo. Explicou que conseguia manter o seu estilo de vida por causa de uma herança deixada pelo pai e se definiu, fazendo alguma graça, como integrante da “esquerda caviar”. Não escondia uma ponta de orgulho ao dizer que tinha sido criada à beira-mar, em Ipanema.
Na fileira da frente viajava Malu Guimarães. Aposentada da Caixa Econômica, ela vive em Niterói com o marido, tem 59 anos e disse ter se juntado ao grupo para descobrir o que Garanhuns teria a revelar sobre Lula. Na poltrona vizinha, Maria de Fátima Rozadas, moradora da Tijuca, na Zona Norte do Rio. Elegante, cabelos louros cortados na altura do pescoço, dona de gestos e de um tom de voz polidos, Rozadas foi professora primária da rede pública. Aos 62 anos, está aposentada. Contou ter decidido comprar o pacote para conhecer Pernambuco, mas também para prestar apoio a Lula. “Ele está passando por um momento difícil. Ainda que ele não saiba, eu estou aqui para ser solidária.”
Mais atrás ia Fernando Rabelo, um fotógrafo de 55 anos, irmão da dona da agência. Mesmo antes de embarcar, ele mantinha uma conversa animada com uma moça baixinha e magra de cabelos pretos amarrados num rabo de cavalo, a cinegrafista Mariana Vitarelli. Os dois viajariam lado a lado no voo até o Recife.
Vitarelli rivalizava com Nascimento em entusiasmo com a excursão. Sua fala era rápida e animada. Logo fez saber aos outros turistas que tinha um interesse específico na visita a Garanhuns. Nas horas vagas de seu trabalho numa emissora de tevê, ela vinha produzindo sozinha, havia treze anos, um documentário sobre a passagem de Lula pela Presidência da República. A mala gigantesca que carregava – e que chamava a atenção antes do embarque – estava repleta de equipamentos de filmagem. Ao comprar o pacote turístico, tinha por objetivo filmar a cidade e o povo de Garanhuns, uma espécie de berço do lulismo.
A quem lhe perguntava como seria seu filme, respondia sem titubear que pretendia fazer um “painel humanístico-lulista” dos anos que o líder petista tinha passado no poder.
Pouco mais de três horas depois de levantar voo, o avião pousou no Recife. Os passageiros se preparavam para desembarcar, recolhendo bolsas e mochilas, quando Patricia Rabelo fez o anúncio ao grupo. “Moura deve estar a nossa espera”, disse. Ao seu lado, a professora aposentada Maria de Fátima Rozadas tomou um susto. “Quem? Moro?” Rabelo riu e soletrou. “Moura, o primo de Lula que vai nos levar até Garanhuns.”
Enquanto ainda imaginava a programação da viagem, Rabelo procurou o Instituto Lula, anunciando o projeto e pedindo sugestões. Orientada a falar com José Ferreira da Silva, o “Frei Chico”, recebeu do irmão do ex-presidente a orientação de entrar em contato com um parente de Garanhuns que poderia ajudá-la: José Moura de Melo, cuja mãe era prima em primeiro grau do ex-presidente.
Lá estava ele, na área de desembarque: um homem de rosto redondo, bochechas sobressalentes, olhos pequenos, barba e cabelo brancos. Fazia lembrar o primo célebre, só que mais alto. Aguardava o grupo que vinha do Rio de Janeiro na companhia de Cesar Melo, um rapaz de 30 anos, também parente: primo em segundo grau de Lula. Ao contrário de Moura, Cesar Melo era tímido e calado.
Anfitrião atencioso, Moura logo concordou em tirar uma foto com os viajantes, ainda dentro do aeroporto de Guararapes, e depois os conduziu até o estacionamento. Patricia Rabelo o havia contratado para fazer o traslado de carro até Garanhuns – mais três horas e meia de estrada – e prestar serviços como guia de turismo na cidade. Parte do grupo faria o percurso na caminhonete Hilux 4×4 preta de Moura: a cinegrafista Mariana Vitarelli, o engenheiro Jorge Eduardo Nascimento, o fotógrafo Fernando Rabelo e eu. As outras três integrantes da excursão e a dona da agência iriam no carro de Cesar Melo, o primo caladão do ex-presidente. Moura acomodou com algum esforço a enorme mala de Vitarelli na caçamba do veículo. “Cuidado, por favor. Meus equipamentos de filmagem estão aí dentro”, ela pediu, preocupada.
Os veículos logo tomaram a estrada. Ao volante, Moura elogiava os feitos do primo político. Ia apontando mudanças pelo caminho, enquanto nos distanciávamos do Recife: as indústrias que tinham aparecido por ali durante os mandatos de Lula, um conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida e um reservatório de água. “De tanto que Lula fez pelos prefeitos do Nordeste, era para receber apoio em massa neste momento. Mas não deram. Sabe qual foi o único erro de Lula? Não ter apoiado o partido dele tanto quanto apoiou os outros”, especulou.
Mariana Vitarelli tinha pedido para ir no banco do carona. Queria fazer imagens da estrada. Segurando a câmera, explicou aos demais passageiros seus planos de filmagem. “Quero fazer aquelas imagens de estrada com muito sol. Imagem de estrada é sempre bonita. Quero entrevistar o povo, pegar a câmera e fazer um ‘povo fala’. Sair perguntando o que as pessoas na rua acham do Lula, de forma bem espontânea. Câmera na mão, sabe?”, descreveu, entusiasmada. “Ah, e também quero fazer imagens da casinha em que o Lula nasceu”, acrescentou, lembrando-se da imagem que Nascimento mostrara aos companheiros de viagem. Moura ponderou: “O povo de Garanhuns é meio parado para esses assuntos de política.”
Dentro do carro, porém, não se falava de outra coisa. Fernando Rabelo perguntou para Moura se os herdeiros de Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo durante a campanha presidencial em 2014, tinham pretensão política na região. “Já viu morto transferir votos?”, rebateu o parente de Lula, sem tirar os olhos da estrada. “A única pessoa que ganhou votos na sombra de um morto foi o Aécio Neves. Por aqui tem circulado muito o nome de Ciro Gomes, mas acho que só é possível se Lula apoiar. Agora, escute o que digo: se Lula for preso, quem ele apoiar, pode ter certeza, ganha.”
O assunto derivou para a economia. Moura é dono de uma loja que vende areia e brita em Garanhuns. Contou que o movimento no seu negócio caiu pela metade nos últimos anos. “As pessoas perguntam o que eu ganhei sendo primo do presidente. ‘Você não enricou?’ Mas Lula nunca beneficiou seus parentes. Não é de fazer isso. Em todas as obras que fizeram na cidade, nunca recorreram a mim para pedir um caminhão de areia”, comentou. “Melhor assim, já acusam o Lula de tanta coisa”, emendou Fernando Rabelo.
Uma vegetação baixa e muito verde, resultado das chuvas frequentes naquele mês, se espraiava às margens da estrada. “Há um ano não estava assim, era tudo seco”, observou Moura. “Mas também ninguém mais vai embora daqui por causa da seca. Quase toda casa tem cisterna. Se vive melhor por aqui, agora.”
Vitarelli filmava. Passou quase toda a viagem de carro com a câmera na mão, fazendo as “imagens de estrada” que desejava.
Bem-vindos à Suíça Pernambucana, minha terra e a de Lula”, anunciou o engenheiro Jorge Nascimento com animação aos colegas de viagem quando Moura, já no início da noite, manobrou o carro no estacionamento do Hotel Tavares Correia, o mais tradicional de Garanhuns. Construído em 1927, o estabelecimento funcionou a princípio como sanatório para pacientes com tuberculose, infecções renais e hepáticas.
O epíteto alpino da terra natal do ex-presidente se justifica, com algum exagero, pela altitude de Garanhuns, cidade de 140 mil habitantes localizada 896 metros acima do nível do mar. Na noite de sábado, 22 de julho, quando chegamos, fazia frio. Ruas e casas estavam cobertas pela névoa.
Por causa do Festival de Inverno, era intenso o movimento de jovens e turistas nas calçadas. Carros subiam e desciam as vias principais. Os barzinhos e restaurantes estavam lotados. Na parte central da cidade, as avenidas acolhiam um fluxo intenso de automóveis, formando pequenos congestionamentos. Ainda que os prédios, de modo geral, fossem baixos, aqui e ali alguns espigões se destacavam na paisagem. “Imaginava uma cidade pequenina, bucólica”, comentou Maria de Fátima Rozadas. “Eu tinha outra coisa na cabeça.”
À noite, de banho tomado e roupas trocadas – Nascimento substituiu a camisa vermelha da viagem por outra, da mesma cor –, o grupo deixou o hotel para dar uma volta no Parque Euclides Dourado, onde ficava um dos palcos para as atrações musicais do Festival de Inverno, além de barraquinhas com comidas típicas e artesanato. No meio da multidão, o funcionário aposentado da Petrobras encontrou um amigo de infância, antigo colega de colégio em Garanhuns e, mais tarde, do curso de engenharia. Os dois se cumprimentaram efusivamente e Nascimento apresentou Fernando Ferro aos companheiros de viagem vindos do Rio.
Ferro havia sido um militante de primeira hora do Partido dos Trabalhadores em Garanhuns. Ingressou no PT, ele disse, ainda no início dos anos 80. A elite política local, segundo ele, não era então muito simpática à ideia de um partido de esquerda na região. “Teve um comício em que fomos ameaçados por homens com espingardas. Eram pistoleiros a mando de políticos tradicionais”, relatou, orgulhoso, numa das alamedas do parque. Grupos de jovens passavam por ali, com garrafas e latas de bebidas alcoólicas, a caminho de algum show.
Mas o PT nunca vingou na região, admitiu Ferro. Nem sequer chegou a eleger prefeito, apenas um ou outro vereador. Ele próprio, contudo, foi por cinco mandatos seguidos deputado federal pelo partido. Na última eleição, não conseguiu se reeleger.
Nascimento convidou o amigo para jantar com o grupo numa pizzaria perto dali. Sentados a uma mesa grande, pediram duas pizzas, algumas cervejas e uma garrafa de vinho. O grupo conversava no salão cheio e barulhento. Perguntei a Ferro se ele podia dizer qual é, de modo geral, a percepção que se tem de Lula em Garanhuns, hoje. “A maioria entende que a cidade era uma antes de Lula e passou a ser outra depois, apesar de alguns bolsões de resistência que, um tempo atrás, fizeram passeatas contra Lula, e hoje estão calados”, comentou. Eu saberia depois que, em 2016, um grupo de cerca de 300 pessoas marchou pelas ruas da cidade contra o PT. Carregavam uma grande faixa onde se lia: “O povo de Garanhuns e região pede desculpas ao Brasil pelo filho corrupto.”
Já era tarde da noite quando os comensais decidiram pedir a conta. Antes que a nota chegasse, Nascimento se levantou da cadeira e ergueu a mão. O engenheiro não é do tipo brincalhão. Costuma levar as coisas muito a sério – é sério como o pai, explicou. Quando fala sobre política – ou mesmo sobre si –, dá a impressão de estar discursando, ainda que a plateia seja escassa.
De pé, na pizzaria, começou a falar. “Para mim não há alegria maior do que receber amigos nesta terra, que é a de Lula e minha também”, disse. “Essa terra, que me lembra de minha mãe e meu pai. Me desculpem estar falando alto, mas eu estou muito emocionado. Se meu pai estivesse vivo, estaria do lado de Lula, como eu estou. Vocês estão em minha casa. Pelo menos nesta noite, eu pago a conta.”
Quando terminou de falar, algumas pessoas nas mesas em volta se viraram na direção do grupo. Os colegas de viagem tentaram demover Nascimento de cumprir a promessa. “Jorge, já viu quanto ficou a conta? Somos muitos”, argumentou Maria de Fátima Rozadas, com sua voz suave. “Não me importa”, reagiu o engenheiro, convicto. “Tenho certeza de que não é o preço do tríplex que dizem ser do Lula.” A conta, afinal, somava 184 reais. O tríplex no Guarujá está avaliado em 1,8 milhão.
Passava da meia-noite quando o grupo deixou o restaurante. Os termômetros marcavam 18 graus. Uma densa névoa cobria Garanhuns. “Nossa, que maravilhoso esse fog londrino”, observou Valéria Lopes, a jornalista carioca. “Não lembra Londres?”, insistiu, procurando o meu apoio.
No dia seguinte, um domingo, aconteceria o ponto alto da viagem. Um almoço havia sido marcado com a família de Lula – parentes próximos e distantes do ex-presidente que ainda moram na região. Em seguida, de acordo com a programação da agência Sagarana, o grupo do Rio conheceria a casa em que o ex-presidente passou a primeira infância. Nascimento não desgrudava da máquina fotográfica. Queria fazer um novo registro da casinha de barro.
Bem cedo, no hall de entrada do hotel, Marina Vitarelli estava a postos com seu equipamento de filmagem. “Hoje o tempo está feio. Queria fazer uns takes da pracinha, o povo na rua, na cidade. Filmar coisas mais simples, do cotidiano. Mas queria fazer isso com o céu azul, dia claro. Você me leva?”, perguntou a documentarista a Moura, que, sentado no sofá da recepção do Tavares Correia, lia o Diário de Pernambuco. “Estou à disposição de vocês”, respondeu o guia, tirando os olhos do jornal. “Mas não sei se vai sair sol hoje, não.”
Apesar da chuva fina e fria, o grupo passou a manhã visitando pontos turísticos de Garanhuns. Vitarelli voltou mais cedo para o hotel, pois tinha marcado uma entrevista com o amigo que Nascimento encontrara no dia anterior, Fernando Ferro. Queria ouvi-lo para o seu documentário. Quando o restante do grupo afinal apareceu na recepção, na hora do almoço, a documentarista ainda conversava com o ex-deputado petista.
A essa altura, os familiares de Lula já procuravam por Moura, pelo telefone, avisando que se encontravam no restaurante, à espera dos visitantes – que por sua vez aguardavam a cineasta, impacientes. Sentada numa das poltronas do hall do hotel, Rozadas olhava para o relógio, emburrada. Valéria Lopes andava de um lado para o outro diante da entrada do Tavares Correia, reclamando em voz alta que estava com fome. Queixou-se com Patricia Rabelo pela demora. Os familiares de Lula voltaram a ligar.
Patricia Rabelo decidiu falar com a documentarista e pediu que ela acelerasse a entrevista. Não podiam se atrasar ainda mais, o roteiro da tarde era intenso: além do almoço ainda iriam visitar a casa de taipa e a chácara de Moura. Vitarelli não ficou muito satisfeita. Agradeceu a Ferro pela entrevista e desmontou os equipamentos. Quando embarcou no banco do carona do carro de Moura, Fernando Rabelo e Nascimento já estavam sentados no banco de trás. Num misto de reclamação e pedido de desculpas, ela procurou se explicar. “Cinema dá trabalho. Não dá para fazer correndo”, disse, enquanto ajeitava a mochila, repleta de apetrechos de filmagem.
Com os carros cheios, Moura e Melo partiram para a cidade de Caetés, que fica a cerca de 25 quilômetros de Garanhuns. Quando Lula e a família deixaram o lugar a caminho do Sudeste, Caetés era um distrito de Garanhuns. Em 1963 a localidade se emancipou, fato que costuma gerar alguma confusão quando se discute qual é a cidade natal do ex-presidente. O município tem 28 mil habitantes, e um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal baixo, de 0,522. Garanhuns, em contrapartida, tem um IDHM de 0,664, o que a coloca no grupo de cidades com desenvolvimento humano médio.
A chuvinha persistia e era mais um aborrecimento para a documentarista. “Eu tinha pensado nessa imagem da estrada com um tempo ensolarado”, queixou-se. Moura, que quase sempre se mostrava solícito, pareceu impaciente: “Com chuva, sol, não é a mesma estrada? Não é documentário?” Vitarelli empunhou a câmera e filmou a estrada com chuva mesmo. Pelo visor do aparelho, via-se que era uma bela imagem.
A churrascaria ficava num posto de gasolina à beira da estrada. Em volta, uma paisagem rural. Já havia alguns carros parados na porta, quando os dois veículos da excursão organizada pela Sagarana manobraram para estacionar. Dentro do restaurante, uma dúzia de rostos redondos, avermelhados, os olhos pequenos – em alguns, barbas e bigodes brancos. Todos lembravam Lula de um modo ou de outro.
Os primos estavam acomodados numa comprida mesa de madeira, acompanhados de filhos, esposas e netos. Nenhum deles tinha Silva no nome. Eram todos Melo. Filhos de irmãos de Eurídice Ferreira de Melo, a “dona Lindu”, mãe de Lula. Silva, disseram, é um sobrenome que Lula carrega do pai. Sobre ele ninguém sabe muita coisa além da história contada em livros e filmes: a de que o patriarca deixou a família em Pernambuco e partiu para São Paulo, onde formou outra família. Todos os parentes tinham os olhos azuis, característica da família de dona Lindu. Os olhos castanhos do primo que virou presidente, disseram, foram herdados por Lula do pai, Aristides Inácio da Silva.
Entre receptivos e desconfiados, os parentes do ex-presidente se dispuseram gentilmente a satisfazer as curiosidades dos viajantes. Alguns ainda levam uma vida no campo. Em comum, todos moraram pelo menos algum tempo, por menor que fosse, em São Paulo.
Era o caso de Sandoval Ferreira de Melo, de 69 anos. Partiu para a capital paulista em 1969. Em Caetés, ele disse, “era uma vida cansada”, de trabalho árduo no campo e pouco dinheiro advindo da lavoura. Trabalhou na capital paulista como entregador numa fábrica de extintores de incêndio. Depois de dois anos na metrópole, foi demitido. Passou um tempo desempregado. Em parceria com um tio que também morava em São Paulo, comprou um bilhete de loteria. Ganharam 120 mil cruzeiros e dividiram o prêmio. Sandoval deu-se por satisfeito e voltou para Garanhuns.
Comprou um caminhão, imóveis e chegou a ter uma loja de carros. Com o confisco das contas bancárias, durante o governo Collor, sofreu seu maior revés financeiro. Hoje trabalha como funcionário de uma imobiliária. “Depois disso, fiquei desmantelado. Se tivesse ganhado na loteria durante o governo do Lula, teria prosperado. Todo mundo melhorou de vida por aqui. Conseguiu um carro, uma moto.”
A condenação do primo político, que Sandoval não vê pessoalmente desde que Lula foi eleito pela primeira vez, entristeceu toda a família. “Eu sou um cabra que boto a mão no fogo por Lula”, ele disse. “Uma vez, quando ele estava em campanha e passou por aqui, ouvi ele dizer: ‘Vou entrar no governo como um copo de leite. Se cair uma mosca dentro, tudo se perde.’” Perguntei a Sandoval se alguma mosca tinha caído no copo de leite. “Da parte de Lula, não”, respondeu com firmeza.
Um velhinho de boné, em pé em um canto da churrascaria, tinha o rosto avermelhado de quem fica exposto ao sol constantemente. Com 71 anos, Antônio Ferreira de Melo chegou a conviver com Lula em Caetés, quando ambos eram meninos. Em 1966, também se mudou para São Paulo. Disse que morou na mesma casa que o primo, nessa época. Antônio trabalhava numa fábrica de peças de carros; Lula já era torneiro mecânico.
“Passei três meses lá com a família de Lula e fui embora. Era difícil andar em São Paulo. A gente do mato não sabia pegar ônibus. Tudo assustava, dava medo. O feijão aqui já devia estar maduro, e vim-me embora.”
O homem magrinho está aposentado, mas ainda hoje planta feijão-de-corda. Acompanhou o início da carreira política do primo pelo rádio. Depois viu na televisão as cinco disputas pela Presidência de que Lula participou. E foi também pela tevê, “no jornal que passa bem cedinho”, ele disse, que soube da condenação na Justiça. “Lula foi engraxate, torneiro mecânico muito cedo. Foi deputado por quatro anos e presidente por oito. Fez um monte de palestras por 200 mil. Junta tudo isso. Se ele não tivesse dinheiro para comprar os bens que estão dizendo que foram dados por empreiteira, só se ele fosse um ferrado trabalhando na enxada, feito eu”, concluiu. Pontuava nos dedos, segurando um depois do outro, o quanto Lula trabalhou a vida toda.
A essa altura, o ex-presidente ainda não havia sido acusado pelo ex-ministro Antonio Palocci de ter feito um “pacto de sangue” com Emílio Odebrecht, dono da maior empreiteira do país: em troca da preservação das relações “lícitas e ilícitas” entre o governo e a empresa, já na presidência de Dilma Rousseff, o empresário colocaria “à disposição” do petista 300 milhões de reais. De toda forma, dada a convicção demonstrada pelos parentes do ex-presidente, a aparente certeza que todos tinham de que Lula é honesto, é difícil imaginar que mesmo uma declaração como a de Palocci pudesse mudar a opinião que prevalecia ali.
Vitarelli, sentada à mesa com os familiares de Lula, disse que gostaria de aproveitar em seu filme aquela rara oportunidade de ver reunidos tantos parentes do ex-presidente. Quis saber se era possível realizar com todos eles, na casa de Moura, o que ela chamou de “debate” coletivo. A ideia era filmar as opiniões de todos ali sobre o governo do primo que fora eleito presidente. A diretora explicava seus planos, e os parentes de Lula ouviam atentos, concordando com a cabeça enquanto comiam churrasco.
Antes de partirem, os turistas do Rio pediram para a família se reunir. Queriam guardar fotografias de recordação daquele momento. Os catorze parentes de Lula se juntaram e posaram encostados em uma parede. Sustentaram, diante das lentes dos celulares e das câmeras profissionais, uma pose rígida – e uma expressão séria no rosto – por quase um minuto.
“Espera só mais um minutinho”, pediu alguém; “mais uma”, também se ouviu; “deixa eu fazer desse outro ângulo”. Até que um dos primos de Lula, de jaqueta preta e expressão taciturna, pareceu perder a paciência. “Agora chega. Vou começar a cobrar pela foto.” A sessão terminou. Em seguida, um comboio com seis carros – quatro levando os parentes do ex-presidente, dois com os turistas do Rio – pegou a estrada. Os visitantes iam enfim conhecer a casa de infância de Lula. Alguém anunciou que ela ficava a menos de dez minutos do restaurante.
A caminhonete de Moura seguia por último na fila de veículos que sacolejavam por uma estradinha de terra estreita e irregular. O carro de Cesar Melo, logo à frente, levava Patricia Rabelo, Valeria Lopes, Malu Guimarães e Maria de Fátima Rozadas. Na caminhonete de Moura, no banco do carona, Vitarelli registrava o caminho com a câmera. A essa altura da viagem, todo mundo parecia ter lugar marcado. Nascimento e Fernando Rabelo iam no banco de trás da caminhonete.
Moura apontava para terrenos vazios em meio ao cenário rural do agreste pernambucano. Aqui e ali se destaca alguma plantação de feijão. Logo no começo do caminho, nosso guia chamou a atenção para um local onde antes, ele disse, havia um armazém e uma hospedaria. Ali a família de Lula teria ficado antes de partirem para São Paulo, à espera do transporte que daria início à viagem. Não havia mais nada, a não ser um terreno vazio, no espaço indicado por Moura. Em seguida apontou para o lugar onde teria morado uma antiga professora primária do ex-presidente. Tampouco ali havia construção alguma. Vitarelli apontava a lente da câmera de um lado para o outro, seguindo as indicações de Moura.
Os carros da família de Lula e o de Cesar Melo pararam então diante de uma casa pequena de alvenaria pintada de branco, muito simples, mas em bom estado. “Aquela é a casa do Lula?”, quis saber Vitarelli. “Não, aquela casa era de um tio de Lula. Eles devem estar nos esperando, por isso pararam ali”, explicou Moura, reduzindo a velocidade.
“Mas e a casa de taipa da fotografia? Onde fica?”, quis saber Fernando Rabelo.
“Aquela [da foto] nunca foi a casa de Lula”, respondeu Moura.
“Como não?”, perguntou Rabelo.
“Foi um vereador com um pessoal da prefeitura que fez essa réplica para aproveitar a imagem de Lula. A casa dele fica mais lá para cima”, Moura explicou.
“Essa réplica da casa de taipa foi feita para o filme do Barretão?” Agora era Vitarelli que perguntava.
“Não, foi um vereador, pelo que sei. A casa que aparece naquele filme não fica por aqui”, Moura esclareceu.
Jorge Nascimento parecia aborrecido com a discussão sobre a casa de taipa, mas não disse nada. Moura insistiu que o casebre da foto nada tinha a ver com Lula. Quando afinal parou a caminhonete perto dos outros carros, Nascimento desceu e começou a andar, sozinho, por um trecho da estrada de terra. Fui atrás. “É aquela ali”, disse o engenheiro, apontando para uma casinha de taipa, distante poucos metros da casa diante da qual todos tinham estacionado. Era a casa da fotografia.
Os demais integrantes da excursão, vendo o movimento de Nascimento, também seguiram o engenheiro. Moura, contudo, preferiu não acompanhá-los. Ainda um pouco irritado, o ex-funcionário da Petrobras defendeu o valor da construção que todos tinham diante dos olhos. Tanto fazia, ele disse, se a casa era ou não de Lula.
“Não me interessa, nesse momento político, me apegar a esses detalhes. É a casa de um trabalhador, de um homem pobre, um nordestino de origem humilde. Daqui a pouco os homens que hoje perseguem Lula, como Moro, vão querer apagar qualquer vestígio de sua história. Aquela casa para mim é uma simbologia. Se Lula tivesse nascido em um palacete, ninguém estaria tentando impedir a candidatura dele. Mas ele veio desse lugar, de uma casa como aquela, e isso é o que importa”, argumentou aborrecido.
As câmeras se ergueram, buscando capturar novamente a imagem da casinha que tinha dado origem à viagem. Nascimento suspendeu a cerca de arame que protegia o grande terreno onde ficava a construção, no alto de um morrinho, e entrou.
“Não vão colocar no Facebook que essa é a casa do Lula, pessoal”, alertou o fotógrafo Fernando Rabelo. “O Moura está dizendo que nunca foi.” Apesar de ele mesmo ter acabado de fazer a advertência, Rabelo também quis fazer um clique. Vitarelli, segurando uma câmera de vídeo e um tripé de apoio, teve dificuldade para passar pela cerca. Suspendi o arame, em seu socorro. “Obrigado!”, ela disse. “Pode ter certeza de que o seu nome vai estar nos créditos finais do filme.” Os três gastaram cerca de dez minutos registrando a casinha de taipa em diferentes ângulos.
Patricia Rabelo e as outras três mulheres preferiram não atravessar o arame que marcava os limites do terreno. Olhando bem, agora, a casa parecia ainda mais arruinada do que no retrato feito por Nascimento. De longe, as turistas levantaram seus celulares e garantiram uma lembrança do casebre.
A casa de taipa onde Lula não morou tampouco foi erguida por desígnio de algum vereador da cidade, como dissera Moura. Na verdade, o idealizador da obra tinha sido Zé da Luz, ex-prefeito de Caetés, eleito pelo pt em 2004. O gestor caeteense queria ter como um dos marcos de sua administração a homenagem ao presidente conterrâneo e correligionário, à época em seu primeiro mandato.
Conversei com Zé da Luz pelo telefone algumas semanas depois de encerrado o tour da Sagarana por Garanhuns e Caetés. O político, hoje no PSB, me disse que a “réplica” da casa dos Silva fora projetada tendo por base uma consulta aos moradores mais velhos da região. A prefeitura queria saber como era uma casinha típica de família pobre, na época da infância de Lula. Feitas as entrevistas, Zé da Luz mandou levantar o casebre, que por algum tempo, ele disse, atraiu a curiosidade dos moradores locais e de quem visitava a cidade. “Lula estava no auge. Vinham equipes de reportagem de tudo quanto é lugar do mundo para filmar, fotografar a casa. Grupos de turismo chegavam de van. Mas hoje é diferente, não aparece mais tanta gente”, contou.
Eu quis saber de Jorge Nascimento se ele já estava ciente, antes da viagem da Sagarana, de que o casebre que ele havia fotografado era uma réplica idealizada da morada dos Silva. O engenheiro me disse que sabia, sim, que aquela não era, literalmente, a “casa de Lula”, como ele havia anunciado, mas reiterou que considerava esse fato de menor importância. O fundamental, ele insistiu, era que aquela casa representava o lar de um trabalhador pobre.
Patricia Rabelo, que a princípio se enganou e chegou a acreditar que Lula de fato havia morado naquela casa, soube da verdade numa conversa com Nascimento, meses antes do périplo por Pernambuco.
Depois que todos haviam tirado fotos do casebre, o grupo resolveu voltar para o local onde os carros estavam estacionados. Moura, que os aguardava, anunciou então, como se guardasse uma surpresa para o fim da festa, que iria levá-los até a verdadeira casa do Lula. A Hilux do guia seguiu por uma estreita estrada de terra morro acima, ladeada por umas poucas casinhas pobres, mas bem cuidadas. No fim do caminho, ele disse, estaria o lugar onde o ex-presidente passou os primeiros anos de vida.
Menos de três minutos depois, os dois veículos do grupo do Rio paravam no quintal de uma casa de alvenaria em perfeito estado, embora aparentemente deserta, sem moradores, pelo menos naquela hora do dia. Diante dela havia um cajueiro. Era aquela, enfim, a residência do Lula? Todos queriam saber. “Não”, disse Moura. Depois apontou para um descampado contíguo à construção. “Ela ficava ali.”
No local que Moura indicava com o dedo não havia nada além de uma pequena plantação de feijão-de-corda e milho. “Onde fica essa casa que ninguém está vendo nada?”, perguntou a própria dona da agência, já impaciente. Moura então caminhou até o meio da plantação. Os viajantes seguiram o guia. O primo de Lula mostrou, próximo ao solo, o que pareciam ser vestígios da fundação de uma casa que havia existido ali e que, o motivo ele não sabia, tinha sido demolida. “Já ouvi de parentes que era uma casa de pobre, mas nada parecido com aquela casa velha de taipa. Era jeitosa, emboçada.”
O grupo não demonstrou muito interesse pelos vagos vestígios daquela que, segundo Moura, teria sido a legítima morada da família Silva. Em poucos minutos, sem muitos comentários, subiram de volta aos carros. Fernando Rabelo ficou para trás e pediu para que Moura posasse no meio da plantação, apontando para o local onde antes ficava a casa. O guia atendeu ao pedido, esticando o braço para o nada. Rabelo tirou a foto. Depois foram embora.
Os carros dos viajantes e dos primos de Lula foram chegando aos poucos na porta da chácara de Moura, a última parada na programação daquele dia. Alguns buzinavam animados conforme iam chegando. Parentes que não tinham participado do almoço também apareceram. Patricia Rabelo parecia estar de bom humor. “Chegamos ao tríplex do Moura, pessoal!”, disse, ao descer da caminhonete. O riso foi geral.
A construção na verdade tinha dois pavimentos. Uma casa de sítio, ampla, acolhedora e bem equipada, mas que nem de longe ostentava riqueza. A propriedade contava também com um curral em que Moura criava alguns carneiros, e um aviário, cujo espaço era compartilhado por galinhas, galos, patos e pavões.
Antes de entrarem na casa, os convidados passaram um tempo conhecendo a parte externa do sítio. Um dos primos de Lula, o velhinho de boné, se debruçou sobre o curral dos carneiros que tinham sininhos no pescoço e, num gesto gaiato, gritou: “É Lula 2018 ou não é?” Os carneiros sacudiram os sinos e berraram: “Béééé.”
Moura contou que, certa vez, quando foi convidado a visitar o primo em Brasília, levou um casal dos pavões que cria para dar de presente ao então mandatário. Na parede da chácara e nos porta-retratos sobre os móveis havia fotografias do ex-presidente com a família de Moura. No celular dele também. Mostrava para todos uma foto descontraída em que ele posava com Lula na beira da piscina no Palácio da Alvorada. Noutra os dois apareciam no gabinete presidencial. “Ele dizia que eu podia ir quando quisesse, eu chegava sem nem avisar e ele me recebia muito bem”, contou Moura.
A mulher do guia, uma moça jovem de pele morena e cabelos lisos, pediu aos convidados que ainda estavam do lado de fora para entrarem. A temperatura caía rápido no fim da tarde. Depois que todos estavam acomodados, ela serviu café ao grupo, e uma cachaça temperada com mel e cascas aromáticas.
A documentarista Mariana Vitarelli tratou então de convocar a parentada de Lula que se espalhava pela casa para o debate que tinha planejado. Ajeitou a câmera daqui, o áudio dali. Testou o som, a luz. Oito parentes do ex-presidente esperavam, pacientemente, sentados no sofá da sala. Era árdua a labuta da cineasta, que conjugava as tarefas de diretora, fotógrafa, sonoplasta e iluminadora – mas também começou a parecer penoso o tempo de espera dos entrevistados.
Como tinha apenas uma câmera no tripé, e a intenção de registrar oito pessoas conversando numa sala pequena, Vitarelli desistiu da ideia de fazer um “debate”. Cada um deles daria um depoimento: essa era a nova ideia. O parente se sentaria diante da câmera e diria suas impressões sobre as mudanças trazidas por Lula ao Nordeste.
O primeiro a falar foi Eraldo Ferreira dos Santos, um primo de Lula muito articulado, que já fora caminhoneiro e liderança do pt em Garanhuns: “O Nordeste sempre foi colocado como uma reserva de mão de obra barata para o Sul e o Sudeste do país. Com o Lula, a região passou a fazer parte da nação. Trouxeram para cá alguns investimentos. Houve melhoria da renda e inclusões soci…”
“Gente, pode fazer um pouco de silêncio”, pediu Vitarelli, interrompendo o seu entrevistado. Um barulho de conversas e risadas vinha da cozinha. “Está vazando no áudio”, reclamou a cineasta.
“Pode recomeçar, por favor”, disse então, dirigindo-se ao entrevistado.
“O Nordeste sempre foi colocado como uma reserva de mão de obra barata para o Sul e o…”
“Só um minutinho”, Vitarelli interrompeu mais uma vez.
Um zunido constante vinha do teto. Era o sistema de iluminação da sala, com lâmpadas fluorescentes, que fazia barulho agora. Criava-se um dilema para a cineasta. Se apagasse a luz, ficariam todos no escuro, pois já era noite lá fora. Era preciso escolher entre a luz e o som.
“Vai com esse barulho mesmo, depois resolvo na edição”, decidiu. “Pode continuar.” O primo de Lula pôde afinal concluir o seu raciocínio.
Moura aproveitou os dois dias restantes para passear com os visitantes por pontos turísticos de Garanhuns. Cesar Melo e seu carro, por sua vez, passaram a se dedicar quase exclusivamente às necessidades de Mariana Vitarelli e seus planos de filmagem. Vez ou outra ela contava com a ajuda do fotógrafo Fernando Rabelo. Às vezes os dois grupos tomavam o mesmo rumo, noutras seguiam para direções opostas.
Não era só Vitarelli, de toda forma, que produzia imagens – os registros dos dias de folga do grupo em Garanhuns aos poucos iam aparecendo nas redes sociais. Valéria Lopes, a jornalista carioca, era a mais atuante no Facebook. Não demorou para que o tour lulista, que ela registrava, provocasse reações. Na segunda-feira, ao fim do dia, parte do grupo comia carne assada e sarapatel num boteco da Central de Abastecimento de Garanhuns, quando Lopes se deu conta de que sua página no Facebook não parava de receber notificações.
A jornalista abriu o aplicativo no celular. A multiplicação de mensagens e interações tinha a ver com uma das fotos que ela publicara, uma imagem da família de Lula. Muitas eram de apoio, mas houve uma – “de um coxinha” com quem ela vinha se desentendendo, segundo disse – que tirou Lopes do sério. “Está hospedada na casa dos Silva?”, dizia o comentário. Malu Guimarães e Maria de Fátima Rozadas tentaram convencê-la a não responder, mas não teve jeito. Valéria Lopes pegou o celular impacientemente e respondeu em voz alta enquanto digitava: “Não. Estou hospedada no melhor hotel de Garanhuns. Esqueceu que sou esquerda caviar?”
“Eu não era tão lulista”, ela explicou depois. “Era mais brizolista, como meu pai. Mas esse Moro e esses coxinhas me fizeram admirar mais o Lula. Adoro quando me chamam de esquerda caviar. Sou mesmo. E daí? Já me chamaram de tudo: piranha comunista e esquerda festiva. Para Cuba já me mandaram um milhão de vezes”, contou, rindo.
Apesar de se dizer resistente aos ataques, a jornalista achou melhor se precaver num momento de particular tensão política no ano passado, quando se aproximava a votação do impeachment de Dilma Rousseff. Lopes disse ter admiração ainda maior pela ex-presidente do que por Lula. Não queria ter que suportar as reações e torcidas ideológicas em seu bairro naquela semana e por isso decidiu visitar Machu Picchu. “Eu sabia que ela iria acabar saindo. Então viajei para o Peru, para não ouvir aqueles panelaços em Copacabana. É um bairro cafona, cheio de pobres de direita.”
Terça-feira, 25 de julho, era o último dia em Garanhuns para Mariana Vitarelli. Deixaria a cidade antes do restante do grupo, cuja viagem de volta até o Recife estava marcada para o dia seguinte.
A bateria da cineasta pela primeira vez dava sinal de esgotamento. Refastelada no sofá do hall do hotel, tinha olheiras visíveis no rosto. Desde a semana anterior, mantinha uma intensa rotina de trabalhos. Conciliava o emprego de cinegrafista na tevê com as entrevistas para o documentário nas horas vagas. E quando não estava fazendo nenhuma dessas duas atividades, se dedicava a rever e organizar o material filmado. “Durmo pouco, trabalho muito, mas vai valer a pena.”
A cineasta nunca botou na ponta do lápis, mas acredita já ter gastado, do próprio bolso, cerca de 20 mil reais no filme. “Já inscrevi meu projeto em editais e não passou. Então resolvi investir meu dinheiro nele.” Ela não faz ideia de quantas horas de filmagem já produziu. Disse apenas que tem muitos “terabytes” armazenados em discos rígidos. O filme, garantiu, vai começar a ser montado no final do ano – por ela mesma.
Perguntei se o documentário tinha uma ótica pró-Lula. Vitarelli respondeu que o “painel humanístico-lulista” que pretendia construir seria amplo e plural. As entrevistas que fez, ela disse, iam de Jair Bolsonaro a Jean Wyllys, de Paulo Maluf a Oscar Niemeyer. Conversou também com gente da periferia do Rio e de São Paulo, assim como ouviu a classe média de Brasília que defende a prisão de Lula. “Eu tenho que dizer que gosto do Lula. Se não gostasse, não estaria fazendo esse filme. Mas o que eu queria mesmo era poder ter ele como entrevistado. Estou buscando isso.”
Naquela tarde, quando já arrumava as coisas para partir, a cineasta foi informada de que poderia filmar mais um primo de Lula. Tinha pouco mais de duas horas livres antes do horário marcado para deixar Garanhuns com destino ao aeroporto no Recife. Decidiu ir ao encontro do novo entrevistado, mas, para que não perdesse tempo na hora de partir, deixou as malas prontas na recepção do hotel.
Manoel Ferreira de Melo mora na cidade e tem 74 anos. Foi mais um dos primos que migrou para São Paulo, em 1964. Perdeu parte do polegar esquerdo numa prensa de fábrica. Com o dinheiro da indenização, comprou um caminhão. Disse ter emprestado o veículo, no final dos anos 80, para que Lula fizesse campanha em alguns bairros de São Paulo. Foi convidado a participar, segundo disse, das duas cerimônias de posse do primo presidente.
Faz um ano que o caminhoneiro viajou até a capital paulista para o casamento de uma sobrinha e encontrou Lula por lá. “Conversei quinze minutos com ele. Não falamos das tristezas da política. Ele parecia estar bem, apesar de tudo que estava acontecendo. Mas estava a caminho de Brasília e tinha pressa. Pediu que eu voltasse para continuar o papo. Preciso dar um abraço nele. Tem acontecido tanta coisa ruim para ele neste ano.”
Mariana ligou a câmera. A casa de Manoel era muito simples. Havia uma estante onde ficava a televisão, ligada naquela hora num programa policial local. No mesmo ambiente, um sofá e uma mesa de jantar. Na parede, uma fotografia de Lula em tamanho ampliado. Na imagem, o líder petista segura no colo a neta do parente caminhoneiro.
A documentarista achou a luz na casa fraca. Precisava acoplar um spot de luz portátil na câmera, mas a peça não encaixava de maneira alguma. Pediu emprestada uma fita adesiva e fixou a aparelhagem na câmera. Eram seis da tarde quando a diretora começou a entrevista. O início da viagem para o Recife estava marcado para as oito.
“O Lula está sendo injustiçado?”, foi a primeira pergunta que fez.
“Sim, muito”, respondeu Manoel Ferreira de Melo.
Já haviam se passado mais de quarenta minutos de entrevista – e Vitarelli fizera mais de vinte perguntas – quando subitamente a cineasta se mostrou preocupada. Começou a repetir para si mesma que tinha cometido um erro. Havia se esquecido de ligar o microfone.
“Podemos fazer de novo? Eu ainda tenho meia hora”, perguntou ao parente de Lula, com o rosto cansado e frustrado.
“Tudo de novo? Tá bom, vamos”, concordou Manoel Ferreira.
Ao sair de Garanhuns, Fernando Rabelo quis tirar uma fotografia do portal de entrada da cidade. Reclamou que deveria existir ali algum registro do filho ilustre da cidade. Algo como: “Bem-vindos a Garanhuns, terra do Lula.” Não havia.
Quando chegamos ao Recife, perguntei à ex-funcionária da Caixa Malu Guimarães a que conclusão ela tinha chegado, depois de passar quatro dias em Garanhuns. Ela própria havia dito, no início do roteiro turístico, que um dos motivos por que decidira fazer a viagem era o de tentar decifrar o que a cidade natal do ex-presidente teria a revelar sobre Lula. “Engraçado, mas não enxerguei o Lula em Garanhuns”, ela disse. “Não senti a presença dele. Parece que transcendeu aquele espaço, ficou maior que a cidade.”
Poucas semanas depois, Lula daria início a uma caravana que tinha como objetivo passar por 25 cidades do Nordeste. Garanhuns não estava no roteiro. Já a comitiva da agência Sagarana teve a última etapa de seu tour lulista no Parque Dona Lindu, que fica à beira da praia de Boa Viagem, no Recife. A partir dali, o roteiro dos turistas vindos do Sudeste incluía praias, museus e uma visita a Olinda.
Cercado por prédios de classe média, o memorial que leva o nome da mãe de Lula retrata, num conjunto de estátuas de metal, uma mulher com uma trouxa de roupas na cabeça e um bebê no colo, cercada por sete filhos pequenos com expressões de desamparo nos rostos. Não era possível identificar Lula entre aquelas crianças, mas ele estava ali, próximo de dona Lindu. O nome do ex-presidente tampouco era mencionado na placa explicativa do monumento. O texto dizia apenas que aquela era uma homenagem a todos os retirantes nordestinos.
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