ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Onde os fracos não têm vez
Lama, hipotermia e choque elétrico na corrida mais difícil do mundo
Paulo Henrique Martins | Edição 67, Abril 2012
Aceito que, caso eu morra durante a prova, a culpa terá sido única e exclusivamente minha.” Com essas palavras de estímulo, concluía-se o termo de compromisso assinado por cada participante da Tough Guy Challenge, a Corrida dos Durões, realizada numa fazenda no município de Perton, no centro-oeste da Inglaterra. Os atletas receberam um folheto que listava as possíveis consequências da competição: hipotermia, hipertermia, desidratação, cortes profundos, sangramento e ossos quebrados. A vacina contra tétano era um pré-requisito para a inscrição. A contratação de um seguro-saúde – não compulsória – era veementemente recomendada.
Autoproclamada “a corrida mais difícil do mundo”, a Tough Guy consiste em um percurso de 13 quilômetros repleto de obstáculos. Um caminho bem cruel, que envolve subir e descer um morro sucessivas vezes, atravessar um córrego lamacento repetidamente, pular muros e passar por baixo de redes num bosque. Mas nada se compara à provação dos “Campos Mortíferos”, nome dado com muita propriedade à sequência final da prova, na qual os corredores precisam se arrastar dentro de canos, atravessar fogueiras, rastejar sob o arame farpado, dependurar-se em cordas a vários metros de altura, ultrapassar montanhas de pneus e mergulhar em lagos quase congelados.
O público não é incentivado a assistir à competição, para que as ambulâncias possam transitar com mais liberdade e os médicos se preocupem exclusivamente com os atletas. A prova já fez duas vítimas fatais: em 2000 e em 2007, por ataque cardíaco decorrente de hipotermia extrema.
O criador da corrida é Billy Wilson, mais conhecido como Mr. Mouse, um simpático senhor de 73 anos, dono de uma copiosa bigodeira grisalha. A Tough Guy evoluiu a partir de trilhas de cross-country que ele organizava. A competição ocorre pelo menos desde 1987.
“Tentamos adicionar algo todos os anos para deixar a prova mais difícil”, explicou Paul Goss, de apelido Gossy, da equipe organizadora. “Às vezes fazemos alguma mudança na rota ou acrescentamos novas voltas aos slaloms – qualquer coisa para que fique diferente a cada vez. Este ano colocamos fios elétricos em todo o percurso.”
Gossy é um dos comissários espalhados ao longo do trajeto para auxiliar os competidores que não conseguem prosseguir. Ele próprio participou da competição onze vezes no inverno e oito no verão. “Os túneis de água são o pior de tudo”, afirmou. “Frio é sem dúvida o maior problema. Mesmo na prova de verão algumas pessoas sofrem com a hipotermia, principalmente as mais magras, que não conseguem reter tanto o calor.” Na corrida de inverno deste ano, os corredores foram poupados das temperaturas extremas de anos anteriores. “Nossa prova mais fria foi com 9 graus centígrados negativos”, contou. “Havia uma camada de 10 centímetros de gelo nos lagos e antes de começar tivemos de quebrá-la para os participantes poderem pular.”
Naquela manhã de janeiro, havia apenas uma fina camada de gelo cobrindo alguns pontos dos lagos que faziam parte do trajeto. O termômetro marcava perto de 1 grau centígrado positivo enquanto os atletas se preparavam para a largada. Elegantemente vestido com seu kilt, Mr. Mouse andava pelo local vistoriando os detalhes para o início da prova.
Foi um canhão que disparou o tiro de largada às 11 horas, liberando uma turba de 3,4 mil pessoas de várias idades e nacionalidades. Alguns estavam fantasiados. Uma dezena de homens trajavam saias de balé.
Durante a corrida, o clima não é de rivalidade, mas de cooperação – muitos competidores se ajudam ao longo do trajeto, puxando uns aos outros para superar obstáculos. Nessa prova, terminar é mais importante do que chegar na frente.
Muitos participantes percebem que não têm uma resposta apropriada quando lhes perguntam por que, afinal, entregar-se a tamanha parvoíce. “Eu devia estar bêbada quando fiz a inscrição”, disse a holandesa Paula Ijzerman, de 36 anos, gerente de produtos de uma multinacional. “Tem algo a ver com lama. Eu adoro lama”, completou.
“Acredito que tenha relação com a vontade de viver a vida ao máximo”, arriscou o britânico Pio Cardoza, um analista de sistemas de 41 anos prestes a correr sua segunda Tough Guy consecutiva. Com um currículo que inclui três maratonas convencionais ao redor do mundo, Cardoza considera a corrida de obstáculos a mais difícil de todas. “Numa maratona, tudo o que você tem a fazer é continuar correndo”, definiu. “Aqui não: há a água glacial, a altura, os lugares fechados. Todos os seus medos têm de ser enfrentados.”
Peter Fee, funcionário de uma empresa de finanças, veio de Nova York só para participar da corrida. “A expectativa da largada, a sensação de união e a satisfação de ter completado são coisas que jamais esquecerei”, disse, após cruzar a linha de chegada, coberto de lama. E quer repetir a dose. “O evento me elevou a um nível melhor. Mal posso esperar pelo próximo ano.”
A edição de inverno deste ano deixou alguns ossos quebrados e centenas de casos de hipotermia. Nada menos que 2 851 finalistas, entre 17 e 69 anos, foram recebidos com manta térmica, chá, chocolate quente e biscoitos. Quando, cambaleante, cruzei a linha de chegada, já não sentia mais meus pés congelados. Tinha gosto de lama na boca, cãibras em cinco pontos das pernas e a convicção de que jamais repetiria aquela maluquice. Concluí o percurso em 3 horas e 41 minutos, duas horas depois do primeiro colocado.