Quando perguntaram a Margaret Atwood como nascera a ideia de O Conto da Aia, ela falou dos experimentos nazistas e da Escola de Mecânica da Armada durante a ditadura argentina ILUSTRAÇÃO_ZOË VAN DIJK
A origem da tristeza
Reflexões sobre o aborto e sua legalização
Josefina Licitra | Edição 143, Agosto 2018
Só lembro do quarto e do banheiro. Minha casa toda, com vários cômodos, jardim e escritório no andar de cima, se reduz a esses únicos espaços onde tudo aconteceu. Foi há dez anos. No banheiro, vi no teste de gravidez as linhas que indicavam “positivo”. E no quarto seguiu-se o resto. A imagem é tão nítida que a recordo no presente: ando de um lado para o outro com os dedos cravados na cabeça, e repetindo “meu Deus”. Não quero outro filho; puxo os cabelos tentando arrancar alguma ideia. “Meu Deus, meu Deus”: é só isso que sai.
As paredes do quarto são cor de pêssego; o sol rebate nelas como se quisesse me convencer de algum tipo de felicidade possível. Sinto que vou morrer. A cada segundo há mais células dentro de mim: posso morrer ou enlouquecer, são essas as duas opções. Vou até o computador. Fica na sala de cima, mas não tenho lembrança daquele cômodo. Sei que estive lá, só isso. E que abri uma agenda de contatos. Durante anos, cobri notícias sobre aborto para o jornal Crítica de la Argentina. Procurei os médicos que eu tinha entrevistado sempre que precisei de uma opinião a favor da legalização. Eram poucos. Anotei os números e desci para o quarto: o lugar onde a lembrança volta a estar viva.
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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