"Acho que aqui na fase dois você podia ser um pouco mais explícito" ILUSTRAÇÃO: SIDNEY HARRIS_THE NEW YORKER_WWW.CARTOONBANK.COM
Os alquimistas
Químicos acusados de forjar resultados de onze estudos colocam o Brasil no mapa da fraude científica mundial
Bernardo Esteves | Edição 60, Setembro 2011
O gabinete de Denis Lima Guerra lembra uma sala de estar. Há mais objetos de decoração do que livros. São tapetes, relógios, porta-retratos, bibelôs, almofadas por todo canto e dois sofás, além da cadeira über ergométrica do professor. Há um aparelho de som, adega e frigobar. Nas paredes, quadros, reproduções e fotos de Veneza e Paris. Uma tabela periódica discreta e modelos de plástico de moléculas orgânicas lembram que se trata do ambiente de trabalho de um pesquisador de alto nível da área de engenharia química.
A integridade moral e acadêmica desse cientista de currículo recheado foi posta em xeque no final de uma manhã de sexta-feira, em abril do ano passado. Guerra se preparava para ir até o auditório da Universidade Federal de Mato Grosso, onde o aguardavam seus alunos de mestrado em geociências, quando resolveu dar uma última checada nos e-mails. Deparou-se com uma mensagem de Arthur Hubbard, editor do Journal of Colloid and Interface Science, revista científica em que o brasileiro já publicara dois artigos. Anexada à mensagem, Hubbard encaminhava ao pesquisador uma carta anônima com denúncias pesadas. O documento questionava vários artigos publicados recentemente por Guerra em parceria com seu coorientador de doutorado, o conceituado decano do Instituto de Química da Unicamp, Claudio Airoldi. Ambos estavam sendo acusados de forjar gráficos que apresentavam resultados desses estudos.
Em resposta ao pedido de explicações do editor, Guerra enviou-lhe os dados originais usados para construir os gráficos que estavam sendo postos em questão. Hubbard agradeceu e não entrou mais em contato. Pior: parou de responder às mensagens do cientista brasileiro.
Guerra só voltou a ter notícia dele no início de 2011, ao descobrir que havia sido punido pela Elsevier, a maior editora científica do mundo, responsável pelas revistas nas quais os trabalhos haviam sido publicados. A editora holandesa concluiu que as acusações de fraude eram procedentes e decidiu invalidar onze artigos assinados por Guerra, Airoldi e demais coautores. Pelo número de trabalhos envolvidos, o episódio configura a maior acusação de fraude já feita a pesquisadores brasileiros.
Os artigos sob suspeita foram publicados entre 2008 e 2010 e Denis Guerra, por ser o pesquisador que conduziu os estudos, sempre aparece em primeiro lugar na relação de autores. Claudio Airoldi, que também assina os onze trabalhos, figura em quase todos na última posição, reservada ao líder do grupo, geralmente um cientista sênior.
Denis Lima Guerra é dono de uma vasta cabeleira preta e o tom de pele do brasileiro amazônico – nasceu em Belém, 41 anos atrás. Usa barba bem aparada e se veste com esmero, colete incluído. Guerra fez toda sua formação de engenheiro químico na Universidade Federal do Pará, com mestrado em engenharia mecânica. No doutorado voltou-se para a área que até hoje é seu objeto de estudo: a química dos materiais geológicos.
Foi na época do doutorado que o paraense passou alguns meses na Universidade Estadual de Campinas, trabalhando sob a supervisão de Claudio Airoldi, a quem considera seu pai acadêmico. “Ele me pôs em contato com a pesquisa, foi meu maior incentivador”, contou em seu gabinete de Cuiabá durante uma entrevista de três horas numa manhã de julho passado. O primeiro artigo científico de Guerra nasceu dessa temporada em Campinas e foi publicado em 2005 numa revista portuguesa de ciência dos materiais.
Após o estágio na Unicamp, o pesquisador regressou a sua Belém natal para defender a tese de doutorado. Ainda retornaria a Campinas para um pós-doutoramento sob as asas de Airoldi antes de se mudar definitivamente para Cuiabá, na condição de professor-adjunto do Departamento de Recursos Minerais da UFMT. Desde então, dá aulas para alunos de química e geociências e orienta estudantes de mestrado na Federal do Mato Grosso. Seis dissertações supervisionadas por ele já foram aprovadas e há outras duas em andamento.
Como engenheiro químico, Denis Guerra altera a estrutura de materiais que ocorrem espontaneamente na natureza. Ele trabalha principalmente com argilas coletadas por geólogos em trabalhos de campo, sobretudo na Amazônia. “O geólogo não tem grande interesse nos materiais com que trabalho, às vezes até os despreza”, explicou. “Mas na mão de um engenheiro químico eles podem ser modificados.” Guerra insere moléculas nessas argilas a fim de lhes conferir propriedades de interesse industrial. “Esse material, por exemplo, tem esse espaço vazio”, ensina ele, apontando para a imagem de microscópio de uma esmectita na tela de um computador. “Aqui dentro posso colocar uma molécula orgânica que a torne mais reativa.”
As modificações químicas promovidas por Guerra têm por objetivo aumentar a capacidade dos novos materiais de reter substâncias tóxicas – uma propriedade que os cientistas chamam de adsorção. Em testes de laboratório, os materiais híbridos criados por ele mostraram-se capazes de filtrar chumbo, arsênio, mercúrio e outros metais pesados presentes em águas contaminadas. Por isso, eles são potenciais candidatos para uso no tratamento de efluentes industriais. Mas o pesquisador não trabalha em parceria com a iniciativa privada. “Faço ciência básica”, disse.
Denis Guerra apresenta os resultados de suas pesquisas em artigos que envia para revistas especializadas e que só são publicados depois de lidos e aprovados por pelo menos dois especialistas na área – esse sistema de revisão pelos pares é considerado o controle de qualidade da ciência. Seus artigos têm quase todos a mesma estrutura. O que varia muitas vezes é apenas o material usado na origem e o poluente escolhido para os testes de adsorção. Se um mesmo material sofrer diversas modificações, cada uma será objeto de um artigo. No final de agosto, Guerra listava 41 trabalhos publicados em seu currículo.
A caracterização química do material é feita com várias técnicas. Uma delas é a ressonância magnética nuclear, um método que revela detalhes sobre a estrutura e a geometria de uma molécula. É uma técnica “poderosíssima”, na descrição da química Heloise Pastore, que coordena a divisão de materiais sólidos do Laboratório de Ressonância Magnética Nuclear da Unicamp, o Spinlab. “Ela permite examinar os detalhes das ligações químicas e dizer como é o ambiente de um átomo.”
Nos trabalhos conduzidos por Denis Guerra, a ressonância magnética nuclear serve para confirmar que os materiais analisados por ele de fato sofreram a modificação desejada. Comparando testes feitos com a argila natural e com o material híbrido, ele mostra que houve de fato a incorporação de uma molécula orgânica.
O resultado típico de um ensaio de ressonância magnética nuclear é um gráfico que os cientistas chamam de espectro. A curva tem a aparência de uma linha horizontal interrompida por picos em alguns pontos – aos olhos de um leigo, não é de todo diferente do traçado de um eletrocardiograma. Os picos são o que interessa aos cientistas: eles assinalam a presença de um determinado átomo no material estudado e dão informações sobre a sua vizinhança. A parte horizontal não costuma trazer informações relevantes para a interpretação dos resultados. É formada por um zigue-zague sutil e aparentemente errático. Gerados aleatoriamente durante as medições, esses trechos do gráfico são considerados ruído.
O objeto das suspeitas de fraude são justamente os resultados desses exames de ressonância magnética nuclear. Denis Guerra e os cosignatários do trabalho estão sendo acusados de manipular os espectros: haveria a repetição do padrão de ruídos em vários gráficos – algo impossível para uma medida que deveria ser randômica. Quem chamou a atenção da Elsevier para essas irregularidades foi um pesquisador português da Universidade de Aveiro, mantido no anonimato pela editora. O denunciado garante desconhecer a identidade e a motivação do denunciante.
Denis Guerra nega com veemência ter forjado qualquer dado. “Expliquei ao editor da Elsevier que os minerais que caracterizamos não são naturais”, argumentou ele. “Há junto os minerais acessórios, como feldspato, quartzo ou mica. Não sei até que ponto isso influencia o [ruído de] fundo.” Guerra acrescenta ainda que, na apresentação dos dados, usou um filtro que ameniza o ruído. “É normal fazer isso, todo mundo faz para que se tenha uma visão melhor do espectro. Não é um crime, não é uma fraude.”
Às acusações de manipulação gráfica, Guerra reage com números. Num computador, abriu uma tabela que conteria os dados originais que deram origem ao gráfico. “Mesmo que eu estivesse mal-intencionado e quisesse falsificar, são 6 376 campos para preencher”, disse ele, após fazer uma conta numa calculadora. “Daria muito trabalho.”
Segundo o acusado, os dados questionados foram obtidos durante o período que ele passou na Unicamp em 2005, sob a supervisão de Claudio Airoldi. E a química Heloise Pastore, do Spinlab, explica que a medição de ressonância magnética nuclear não é feita pelos autores de pesquisas, mas por técnicos do laboratório. Guerra, como os demais pesquisadores que precisam usar o equipamento, precisou preencher uma ficha na qual é descrita a amostra do material que é submetido para análise e as especificações técnicas do experimento encomendado. O pedido tem que ser assinado pelo orientador – no caso, Claudio Airoldi.
O envolvimento do veterano no episódio é um assunto doloroso para os professores do Instituto de Química da Unicamp. As denúncias foram percebidas como um ataque à honra da instituição, e o interesse da imprensa é motivo de consternação. Para explicar o funcionamento do Spinlab e comentar o caso, Heloise Pastore achou prudente registrar a entrevista com a piauí em seu smartphone.
Os espectros usados nos estudos sob suspeita foram gerados num aparelho da marca Bruker com frequência de 300 megahertz. Com aparência de um grande tambor cinzento apoiado sobre três pés, o equipamento fica numa sala ampla do Spinlab, de acesso restrito. Nesse equipamento, um teste típico de ressonância magnética nuclear de um sólido pode levar de algumas horas até um dia inteiro. Ao final do processo, o técnico de laboratório submete o resultado a uma operação matemática e obtém o espectro final, que pode ser acessado pelo pesquisador que encomendou a medida do seu próprio laboratório. “A interação entre o laboratório e o usuário é rápida”, resumiu Pastore.
A mesma técnica de pesquisa é usada por cientistas de muitas áreas. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o bioquímico Fabio Lacerda Almeida recorre a ela para investigar a estrutura de proteínas. Ele é o coordenador do Centro Nacional de Ressonância Magnética Nuclear com sede no campus da UFRJ. Almeida não é especialista na área dos trabalhos acusados e nem leu os artigos com atenção, mas se dispôs a olhar os espectros de alguns dos artigos invalidados, ciente de que estavam sob suspeita de fraude. “O ruído aqui está esquisito, tem uns pulos”, disse ele, apontando para um dos espectros. Noutro artigo, dois gráficos semelhantes chamaram sua atenção. “Olha o ruído desse aqui como se parece com o de baixo”, avaliou. “Mesmo se você fizer dois espectros da mesma molécula, os sinais vão aparecer na mesma frequência, mas os ruídos serão diferentes”, garantiu. Num terceiro paper, Fabio Almeida estranhou uma queda abrupta da curva. “Parece que manipularam no Photoshop.”
Coube à comissão independente montada pela própria Elsevier o veredito de fraude mais taxativo. “Ficou claro que os resultados de ressonância magnética nuclear haviam sido manipulados e que os espectros não eram autênticos”, afirmou a nota divulgada pela editora quando o caso veio a público no fim de março, noticiado pelo blog Retraction Watch. A editora preferiu não fornecer mais detalhes da investigação. “Seria inapropriado discutir o caso publicamente na imprensa”, escreveu Tom Reller, diretor de relações corporativas da editora. Fundada em Amsterdã em 1880, a Elsevier é a líder do mercado editorial científico e responde pela publicação de cerca de 2 mil periódicos. Em 2010, teve lucro de 847 milhões de euros.
Embora os autores tenham negado a manipulação, a editora tomou a decisão unilateral de anular os onze artigos denunciados. A ação tomada – chamada em inglês de retraction e frequentemente traduzida como “retratação” ou “retirada” – equivale à desqualificação dos estudos e invalida os resultados publicados. Quem tenta acessar os trabalhos pela internet é informado do seu cancelamento numa nota que lista os outros dez artigos anulados. “A Elsevier leva extremamente a sério seu dever de proteção do registro acadêmico”, afirma o texto. A editora continua oferecendo ao internauta a opção de comprar os textos por 41,95 dólares cada. Só que eles vêm assinalados com uma marca-d’água em cada página na qual se lê RETRACTED, em grandes tipos vermelhos na diagonal.
Para a UFMT, o caso é espinhoso e mereceu a criação de uma comissão investigadora presidida pelo vice-reitor Francisco José Dutra Souto. “Os trabalhos de fato têm muitos problemas e a retratação dos artigos pela Elsevier procede”, admitiu ele numa conversa telefônica. “Acontece a duplicação de gráficos e algumas imagens parecem adulteradas. Os professores envolvidos admitem que pode ter havido confusão ao remeter trabalhos para as revistas e podem ter trocado algum gráfico, mas negam enfaticamente qualquer manipulação”, completou. Quando falou à piauí sobre o caso, Denis Guerra não mencionou a hipótese de confusão no envio dos trabalhos.
O regimento da UFMT não prevê qualquer forma de punição para um professor acusado de má conduta científica. Por isso, foi aberto um processo administrativo disciplinar para determinar que medidas serão tomadas contra Denis Guerra, que pode se tornar o primeiro pesquisador da instituição afastado por fraude. Na Unicamp também corre um processo administrativo disciplinar contra Claudio Airoldi, depois que uma sindicância aberta pela universidade concluiu que houve, sim, irregularidade nos trabalhos.
O decano do Instituto de Química da Unicamp tem 43 anos de casa e está com 68 anos de idade. Primeiro doutor formado pela instituição, em 1970, traz no currículo 418 artigos científicos publicados e meia centena de alunos formados por ele – dezoito de mestrado e 34 de doutorado. Em 2006, Claudio Airoldi recebeu da Elsevier Brasil o Prêmio Scopus pela produção de excelência ao longo de sua carreira acadêmica. A dois anos da aposentadoria compulsória, Airoldi se vê diante da perspectiva de encerrar a vida acadêmica de forma melancólica.
O caso abateu o celebrado químico e deixou-o sem a habitual fagulha de ânimo nos olhos claros. Procurado pela reportagem da piauí no começo de julho, Airoldi manifestou por e-mail sua disposição para “uma conversa franca” sobre o caso, depois de concluído o processo administrativo movido pela Unicamp. Na segunda quinzena de agosto, ao ser informado de que eu me encontrava em Campinas, aceitou me receber em seu gabinete, onde discutia um trabalho com um aluno. Mas manteve a determinação de não falar do caso antes de uma decisão da universidade. Apenas negou de forma peremptória seu envolvimento. “Tenho plena certeza de que não participei dessa fraude”, disse.
É comum que orientadores assinem artigos com os alunos. Eles atuam muitas vezes como fiadores do trabalho de seus orientandos, abrindo-lhes as portas de congressos e revistas científicas no começo da carreira. Denis Guerra alegou que é o único responsável pelos onze trabalhos invalidados e isentou seu orientador de qualquer participação. “Eu já era professor e já tinha certa autonomia para fazer e enviar os trabalhos. Ele nem lia os artigos que eu mandava”, disse o pesquisador da UFMT. Segundo Guerra, Airoldi participou dos estudos na condição de colaborador, por ter cedido o laboratório e supervisionado a condução dos trabalhos práticos.
Aflito com as consequências que o episódio pode ter para os outros pesquisadores envolvidos, Guerra também registrou no 1º Serviço Notarial e Registral de Cuiabá uma declaração de três páginas na qual sustenta ser o único responsável pela “interpretação, apresentação, submissão e correção desses trabalhos”.
O paulista Airoldi, por seu lado, confirmou que os trabalhos não passaram por ele. “Esses artigos eu nem li”, declarou. “Guerra fez e mandou, e quando vi já estavam publicados.” Não consta, no entanto, que o professor da Unicamp tenha contestado os resultados junto ao ex-aluno ou à Elsevier. Até a invalidação dos trabalhos pela editora, os textos apareciam citados entre as publicações de seu currículo. Mesmo que Airoldi tenha sido vítima da má-fé de um ex-aluno, o episódio deixa no ar a dúvida sobre se ele pode ter sido descuidado em outros trabalhos.
Guerra também eximiu de culpa a geólogaRúbia Ribeiro Viana, professora da UFMT e coautora de dez dos onze trabalhos retirados de circulação. Coube à sua colega coletar em campo muitas das argilas que o engenheiro químico modificou em laboratório. Numa entrevista por telefone, Rúbia afirmou não ter participado da redação dos artigos. “Minha função era ceder amostras de material geológico e o uso do laboratório que coordeno para a preparação inicial dessas amostras”, explicou. “Honestamente, eu não lia todos os trabalhos, mesmo porque eu não entendia muitos detalhes, são coisas muito específicas de química. Quando a gente trabalha multidisciplinarmente, espera-se que cada um faça a sua parte.”
Não há registro de qualquer benefício econômico direto auferido por Denis Guerra e coautores com a publicação dos onze artigos. Os estudos mostram o potencial de certos materiais para o uso no tratamento de resíduos industriais, mas daí até o seu aproveitamento de fato vai uma distância grande. Os resultados precisariam apontar para uma relação custo-benefício atraente e despertar o interesse de alguma empresa, o que nem sempre é automático. Os investimentos da iniciativa privada brasileira em 2009 somam 46% dos gastos com ciência no país. Guerra garantiu nunca ter sido procurado pela indústria.
Ganhos houve para os três pesquisadores, mas de outra natureza. No Brasil, como no resto do mundo, a publicação de artigos é um dos principais indicadores usados para medir a produtividade dos cientistas. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, por exemplo, oferece uma bolsa a seus pesquisadores mais prolíficos. Tanto Denis Guerra como Rúbia Viana são bolsistas de nível 2 e recebem, além do salário, um complemento de 1 100 reais ao fim do mês. Como pesquisador 1A, Claudio Airoldi recebe 1 500 reais mensais, mais uma taxa de bancada de 1 300 reais para a compra de equipamentos e material de laboratório.
Também na avaliação dos programas de pós-graduação feita pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes, é levado em conta o número de artigos publicados por instituição. De três em três anos, os programas de mestrado e doutorado recebem uma nota que vai de 1 até 7, da qual dependem os recursos destinados a cada um pelo governo. Na avaliação de 2010, o mestrado em geociências da UFMT recebeu a nota 3. Para que cresça e receba mais verbas, seus professores precisam publicar mais. “Havia esse sentimento pela nossa nota na Capes”, admitiu Denis Guerra. “Não temos doutorado ainda por causa dela. Já que eu tinha os dados, por que não publicar?”, questionou com convicção, fornecendo munição aos detratores das avaliações quantitativas de produtividade.
Um conhecido trocadilho em inglês sintetiza o ambiente competitivo que impera tanto na literatura como na ciência: publish or perish, publique ou pereça. Para vitaminar seus currículos, não é incomum que pesquisadores publiquem seus resultados de forma fracionada, por mais que fosse mais lógico apresentá-los num único artigo. Outro pecadilho corrente é a autoria honorária, em que pesquisadores que não tiveram participação num estudo são incluídos entre os autores (e retribuem a cortesia mais tarde). Nos corredores da UFRJ, não é difícil encontrar quem insinue que um dos mais citados pesquisadores do país deve muitas das suas centenas de publicações a um escambo pouco enaltecedor: cede o uso de seu requisitado laboratório em troca de figurar entre os autores do trabalho.
Em dezembro de 2009, o periódico Acta Crystallographica Section E anunciou com pesar a identificação de um caso de fraude em escala industrial. Dois grupos de químicos chineses da Universidade Jinggangshan haviam forjado nada menos que setenta trabalhos publicados em 2007. Tão logo flagrados, foram invalidados. Pouco mais de um ano depois, mais onze trabalhos da mesma leva foram retirados. Outro caso notório envolveu o do sul-coreano Hwang Woo Suk, que forjou resultados de estudos com células-tronco e chegou a anunciar que havia obtido por clonagem uma linhagem de células embrionárias humanas. Seus trabalhos foram anulados e Hwang chegou a ser condenado a dois anos de prisão. A foto do pesquisador preso, de jaleco, correu o mundo e envergonhou o sentimento nacional do país.
China e Coreia do Sul, entre outros, oferecem remuneração financeira para seus pesquisadores pela publicação de artigos. Talvez por isso os países asiáticos respondam por quase um terço dos artigos “despublicados”, segundo levantamento feito no ano passado. Mas a má conduta em grande escala também afeta os países ocidentais. Um caso recente de grande repercussão foi o do físico alemão Jan Hendrik Schön, que teve invalidados mais de vinte trabalhos publicados nas revistas científicas mais prestigiadas do mundo.
Antes da denúncia dirigida a Guerra e seus colegas, nenhuma outra acusação de fraude em grande escala havia sido feita a cientistas brasileiros. “O Brasil está chegando lá”, ironizou o físico Silvio Salinas, pesquisador da USP que já lidou com casos de fraude como editor de uma publicação da sua área. “É a globalização, por que ficaríamos de fora?” Salinas acredita que, com o aumento da participação nacional na ciência mundial, é de se esperar que mais casos venham à tona. Em 2008, o Brasil se tornou o 13º país com maior número de artigos publicados em revistas científicas – pouco mais de 30 mil trabalhos naquele ano, ou 2% de toda a ciência mundial.
Como o Brasil não tem um órgão regulador da conduta dos profissionais da ciência, o único embrião de iniciativa concreta partiu do CNPq. Ao tomar conhecimento do caso Guerra, a entidade anunciou no início de abril a criação de uma comissão extraordinária para orientar a ação de uma futura agência permanente. A equipe foi formada por cinco especialistas de várias áreas, mas não chegou a se reunir – as deliberações foram feitas por e-mail. Estava prometida para este mês uma lista de diretrizes a serem seguidas pelos pesquisadores vinculados ao CNPq. O médico Paulo Sérgio Lacerda Beirão, coordenador da comissão, adiantou que o texto será curto, de pouco mais de duas páginas, e constará de 20 a 25 diretrizes. É difícil dizer até que ponto um código de conduta pode frear um cientista decidido a forjar resultados.
O engenheiro eletrônico Glaucius Oliva, presidente do CNPq, adiantou que a futura comissão permanente atuará sobretudo em caráter educativo, como distribuição de cartilhas e realização de cursos sobre ética e integridade científica. “Não se trata de um tribunal para fazer o julgamento ou de um departamento de investigação dos casos de fraude”, afirmou ele. “Mas o CNPq poderá agir nos casos em que não houver investigação pelas instituições dos pesquisadores envolvidos.” A intenção do órgão soa um tanto tardia em relação ao que ocorre em países desenvolvidos, onde a questão institucional de fraudes na ciência é vivíssima. E os abusos também.
O número de casos de fraude na ciência mundial parece estar crescendo, embora nenhum especialista afirme isso sem reticência. Como nem todos os casos vêm à tona e nem todos têm o mesmo entendimento do que configure má conduta, é complicado medir a evolução do fenômeno. “O único índice que poderíamos usar como indicador de fraude é o cancelamento de publicações”, disse Sonia Vasconcellos, pesquisadora da UFRJ que estuda a ética na ciência. Conduzido pela Thomson Reuters por encomenda do Wall Street Journal, um levantamento feito com base em 11 600 periódicos mostra que o número de retractions saltou de 22 em 2001 para 339 no ano passado – um aumento de 1 540%. No mesmo período, o número de artigos publicados aumentou 44%.
Cabe frisar, contudo, que a retirada de circulação de um artigo científico não é necessariamente um sinal de fraude. “Trata-se de um recurso legítimo para corrigir a literatura científica e para evitar que dados não muito bem trabalhados estejam disponíveis para outros grupos”, ponderou Vasconcellos. Num estudo feito numa base de dados mais limitada, o pesquisador Grant Steen concluiu que a fraude foi o motivo de apenas 27% das retractions registradas entre 2000 e 2010.
O aumento do número de relatos pode, também, ser reflexo de um policiamento mais rigoroso por parte das editoras e institutos de pesquisa. Por um lado, nunca foi tão simples copiar, forjar e inventar resultados, diante do volume crescente de trabalhos científicos disponíveis on-line e da facilidade de manipulação eletrônica de dados. Em contrapartida, a mesma tecnologia digital tornou mais fácil a detecção de dados plagiados ou falsificados.
Nos Estados Unidos, considera-se que são três os tipos mais graves de fraude na ciência: a fabricação, quando um pesquisador inventa um resultado; a falsificação, na qual ocorre a manipulação de dados; e o plágio, a cópia do trabalho de outra pessoa. Esta última modalidade é a mais fácil de ser identificada.
Cada vez mais editoras e universidades recorrem a softwares de identificação de plágio. Um exemplo desses programas é o Turnitin, que coteja os textos submetidos com uma base de dados de 90 mil livros e periódicos, dezenas de milhões de trabalhos acadêmicos e 14 bilhões de páginas da web. O programa começou a ser usado este ano pela Universidade Estadual Paulista, Unesp, que pagou 55 mil dólares para oferecer a seus professores o acesso à ferramenta.
O programa leva cerca de quinze minutos para comparar um texto a ser submetido com a base de dados. Ao final da varredura, o sistema mostra uma porcentagem de coincidências encontradas entre aquele texto e a base de dados e aponta as páginas em que ocorrem as passagens análogas. Um analista precisa então intervir e avaliar se de fato as coincidências listadas pelo programa correspondem a plágio. Um software semelhante que vasculhasse licitações e prestações de contas do governo não faria mal às contas públicas.
Ao analisar um artigo publicado por físicos da Unesp, o Turnitin exibiu uma bandeira vermelha à guisa de sinal de alerta e apontou uma coincidência de 100%. A ferramenta marcou de rosa todo o texto submetido e mostrou, na coluna da direita, as diferentes fontes em que aquelas passagens haviam sido identificadas, a começar pelo próprio site da Unesp. Quando um outro artigo científico inédito foi carregado, o programa acusou 33% de coincidências, dignos de uma bandeira amarela. Não se tratava de plágio: a ferramenta detectara apenas outros artigos em que apareciam o nome dos autores e seu endereço institucional.
Por vasculhar apenas o conteúdo textual de artigos e teses, o Turnitin não teria sido capaz de flagrar um notório caso recente de plágio na ciência brasileira, encerrado no início deste ano com a punição de dois pesquisadores. Num trabalho publicado em 2008 na revista Biochemical Pharmacology, o biólogo Andreimar Martins Soares, então professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, e outros dez autores usaram uma imagem de microscopia eletrônica obtida por um grupo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e publicada cinco anos antes na revista Antimicrobial Agents and Chemotherapy. Não deram o crédito e fizeram-se passar por autores da figura. Mas não era só plágio. No trabalho original, a imagem mostrava como ficava o microrganismo causador da leishmaniose sob a ação de uma substância extraída de uma planta amazônica. No estudo da USP, houve uma transfiguração de substância e de parasita: a figura passou a designar o micróbio da doença de Chagas sob efeito do veneno da jararaca.
A fraude foi descoberta em outubro de 2009 pela microscopista responsável pela obtenção da imagem indevidamente reapropriada (“Toda mãe reconhece o próprio filho”, disse ela, explicando como identificou sua imagem reenquadrada e virada de ponta-cabeça). Pouco depois de escrever para o editor da revista que publicara o trabalho de Soares, a líder do grupo carioca recebeu mensagem do professor de Ribeirão Preto. Ele se disse disposto a se retratar por causa daquele “erro absurdo”, que atribuiu a uma aluna de doutorado. O artigo com a imagem plagiada foi cancelado em julho de 2010, mas a USP demorou um pouco mais para se posicionar formalmente. Foi somente em fevereiro deste ano que a universidade decidiu exonerar o professor Andreimar Soares e cassar o título de doutora de sua aluna (ambos podem recorrer).
Continuam em curso os processos administrativos disciplinares abertos na UFMT e na Unicamp contra Denis Guerra e Claudio Airoldi. Como o caso é delicado e envolve a reputação e a carreira dos pesquisadores, não há pressa na condução dos trabalhos. A Unicamp, que abriu antes o seu processo, se recusou a comentar o andamento do caso. Na UFMT, a julgar pelo depoimento do vice-reitor Francisco Souto, a coisa anda a passos de tartaruga. Segundo ele, dois dos três membros da comissão montada pela instituição são de outra cidade, e tem sido difícil conciliar as agendas. “Além disso, as partes envolvidas constituíram advogados, com todas as medidas protelatórias que isso acarreta”, informou.
Caso haja punição, é razoável supor que seja diferenciada em função do grau de responsabilidade de cada um. A geóloga Rúbia Viana provavelmente será poupada de uma sanção mais extrema. Como lição do episódio, ela passou a encarar com mais cautela a participação em estudos nos quais não tem envolvimento direto. “Não tenho interesse em participar de artigos em que eu não entenda do assunto”, afirmou. “É melhor trabalhar simplesmente com uma ou outra pessoa e você mesma fazer o artigo com responsabilidade por tudo, da coleta de amostras à análise e discussão de resultados. Depois disso, fica complicado pensar até em orientar alunos.”
No caso de Claudio Airoldi, a comissão processante da Unicamp vai avaliar quão grave foi seu erro pela participação – ou omissão – nos trabalhos. Seu histórico de serviços prestados à universidade deve pesar em seu favor. Se os peritos entenderem que ele foi vítima da fraude, talvez não seja punido ou receba uma pena mais branda, como uma advertência ou suspensão. Seja qual for o desdobramento, o estrago está feito, como se depreende de seu olhar amargurado. Airoldi disse que sua vida mudou muito desde a eclosão do episódio, sem entrar em detalhes.
Já Denis Guerra alterna momentos de ansiedade com outros de descontração, como se estivesse anestesiado, sem reação diante do abismo que se projeta à sua frente. Quase um ano e meio depois do e-mail que desencadeou o pesadelo, ele continua como orientador de dissertações de mestrado e a produzir textos acadêmicos. Assegura continuar sendo solicitado para a revisão de artigos. “Recebi agora há pouco a comunicação de que um artigo que corrigi passou”, festejou na entrevista feita em julho. “Por incrível que pareça, continuo tendo essa relação forte com os editores, isso não foi abalado.”
Ao final da manhã em que falou sobre o caso, ele admitiu estar apreensivo quanto ao seu desfecho. Disse preparar-se para o pior. No cenário mais pessimista, vê-se exonerado da UFMT, tendo que mudar de carreira e sem qualquer experiência que não seja com ensino ou pesquisa. Ele não consegue vislumbrar um final favorável. Ainda que continue na universidade, teme ficar desacreditado e ter dificuldades para obter financiamento para suas pesquisas. Quando as denúncias vieram à tona, estava prestes a dar entrada para comprar um apartamento. Preferiu esperar. “Minha vida pessoal está completamente parada.”