Fernando Sabino e Lygia Marina nos anos 1970, no Rio de Janeiro: o escritor pareceu ter criado na velhice discretas barricadas contra escritores principiantes e amores perdidos CRÉDITO: ACERVO PESSOAL
Os claros da vida
“Aqui Fernando Sabino”, anunciou a voz ao telefone, naquela manhã primaveril em Los Angeles
Edgard Telles Ribeiro | Edição 183, Dezembro 2021
O ano era 1974, a cidade Los Angeles. O escândalo Watergate já assumia proporções irreversíveis e, em poucos meses mais, o segundo mandato presidencial de Richard Nixon afundaria em meio à desonra. A guerra no Vietnã vivia seus estertores, provocando mortes inaceitáveis e protestos generalizados. Marchas nem sempre pacíficas se espalhavam pelos Estados Unidos – ateando fogo a causas sociais de todo tipo, do Black Power ao feminismo. Este último, que tivera defensoras aguerridas mundo afora em décadas anteriores, consolidava-se como movimento organizado.
Pelo lado da pujança, a música pop e o rock marcavam época, o cinema hollywoodiano abria espaços para uma nova e inventiva geração, o mundo das artes plásticas mergulhava no conceitual. E a literatura encontrava na proliferação de editoras (e livrarias) nichos alternativos para ecoar uma produção representativa dos mais variados estilos e tendências.
Uma Califórnia em ebulição, em suma, que trazia à mesa internacional todo um cardápio de contribuições, cujo impacto transformador se estenderia aos dias de hoje. Exceto, talvez, pelas questões relacionadas ao meio ambiente, que somente a partir das duas décadas seguintes saltariam do universo acadêmico para dominar as preocupações gerais.
A Guerra Fria, por sua vez, estava longe de arrefecer, o Muro de Berlim ainda tardaria quinze anos para cair. Mas as tensões entre polos políticos opostos tinham pelo menos a vantagem de serem claras, monolíticas e figurativas, em contraste com as forças imprecisas, contraditórias e abstratas que nos espreitam e ameaçam hoje, sem que tenhamos como entender suas implicações – ou enfrentá-las.
Foi contra esse pano de fundo que recebi um curioso telefonema em uma manhã de primavera daquele ano. “Aqui Fernando Sabino”, anunciou a voz. O viajante acabara de aterrissar, e suas palavras chegavam a mim em contraponto à cacofonia dos ruídos produzidos pelo aeroporto.
Do que me disse, a princípio, pouco entendi, salvo que viajava com sua “nova mulher”. Recorreu à linguagem com um orgulho que contribuiu para me despertar de vez. A partir dali suas frases passariam a jorrar sem que, por meu lado, eu lograsse identificar a razão de tamanha euforia. O sol, afinal, apenas começava a entrar pelas brechas de minhas cortinas.
Nesse estilo vibrante, Fernando Sabino citou o nome dos diversos amigos comuns que nos uniam, sem parecer se dar conta de que as figuras evocadas eram ligadas a meu pai e a seu grupo de conhecidos – e não a mim. Por obra do equívoco, porém, logrou eclipsar, de forma simpática e sutil, as distâncias que separavam nossas respectivas idades – ele com 50 anos, eu com 28. Na sequência, deu algumas notícias do Brasil, desancando os militares e debochando dos políticos venais ou adesistas. De tão animado, não deixou muito espaço para minhas raras intervenções.
Conhecia-o apenas de livros. De início, nem entendi a razão daquela ligação feita do aeroporto, sobretudo se o casal, como ele assinalou, já tinha hospedagem reservada em um hotel de Hollywood. Por que não me ligar depois de instalado em seus novos domínios? Era como se ele quisesse, já na chegada, se assegurar de minha presença na cidade. E desejasse contar comigo para algo que ainda revelaria.
Fernando então mencionou que, no Rio de Janeiro, Vinicius de Moraes alertara-o para as peculiaridades da megalópole: “Em Los Angeles, você dirige, dirige e nunca chega a lugar nenhum…” E Vinicius sabia do que falava: fora um de meus predecessores no cargo que, havia dois anos, eu ocupava no consulado. Com isso, descobri o porquê da chamada: convencido por um de nossos amigos comuns que ninguém conhecia Los Angeles como eu, Fernando me elegera para guiá-lo pelo mapa de seus anseios: o mapa do jazz.
Chegamos assim ao tema que o interessava: o acesso aos bares onde pudesse, longe dos turistas – e entre aficionados legítimos –, ouvir, pela mão e o sopro dos mestres, a música que venerava. “Eu tocava bateria”, acrescentou a título informativo, antes de engrenar uma conversa sobre os artistas de sua preferência. De minha parte, eu continuava acima de tudo surpreso.
Não que seu pedido de apoio me causasse qualquer problema, ao contrário: eu gostava muito de jazz e seria um prazer acompanhar o casal em suas incursões. Além do mais, eu namorara uma norte-americana fanática por Charlie Parker, que me familiarizara com os melhores bares de jazz da cidade, em geral frequentados pelos próprios músicos. Sob esse aspecto, tinha razão nosso amigo comum – I was the man.
Por sete noites ficamos inseparáveis. Fernando conhecia, de nome (e discos), todos os músicos a quem fomos ver e ouvir. Seu amor pela bateria vinha da juventude, mas havia tempos que não tocava. Seus vizinhos de Copacabana, enlouquecidos com o barulho, tinham feito um abaixo-assinado exigindo que ele doasse o instrumento a dom Hélder Câmara e sua Feira da Providência (“pedido a que acedera”, segundo ele, “apesar de tremendamente contrariado”).
Sua intimidade com o jazz beirava o profissional. Fernando não abria a boca enquanto os músicos se apresentavam, o que, em bares de jazz, separa o entusiasta do ouvinte ocasional. Também sabia beber: não passava de um drinque por set. Estava ali para escutar e não falar ou encher a cara.
A nova mulher a que se referira chamava-se Lygia Marina de Sá Leitão Pires de Moraes. E era, aos 27 anos de idade, um monumento à juventude, energia e beleza. Nos intervalos das apresentações, jamais se deixou relegar aos bastidores das conversas. Amparada por um olhar cheio de vivacidade, que varava a escuridão dos bares tal um farol esverdeado – e desinibida como ela só –, desfiava suas tiradas com graça e humor, em sintonia com o ambiente e o mundo que pulsava lá fora.
Tinham-se conhecido quando ela dava aulas em uma escola secundária do Rio de Janeiro. Lygia organizara uma feira de livros, para a qual Fernando Sabino fora convidado. Na época, eram ambos casados com parceiros distintos – ela, um cineasta; ele, sua segunda mulher.
Em uma de nossas noitadas, Fernando classificou o encontro como “marcante”. “Nunca mais deixei de pensar nela”, disse. E, tempos depois, tendo os casamentos de ambos terminado em divórcio, voltou a procurá-la – levando a tiracolo não mais os exemplares de seus livros para os alunos, mas a obra completa de Fernando Pessoa. E seu gesto foi compreendido: navegar era preciso.
Sem ver o companheiro como um oráculo, Lygia sem dúvida o admirava – e por ele estava apaixonada. Quanto a mim, observando a linguagem verbal e corporal de ambos, sonhava com o dia em que um ser daquela qualidade também viesse a me considerar como uma conquista acima de qualquer outra.
Assim, pelas brechas do amor, Fernando Sabino entrou em minha vida. Amor por Lygia, naturalmente. Mas, por extensão, pela vida e tudo que ela encarnava e oferecia. Sua paixão era daquelas que transfiguram os sentimentos. Fez-me pensar nos versos de Mário de Andrade, a quem Fernando conhecera na juventude: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta /As sensações renascem de si mesmas sem repouso…
De tal forma eletrizante foi a atmosfera que se instalou entre nós três, que acabei sendo levado por ela de roldão. Entre um solo de saxofone e outro de piano, cedi sem reservas ao encantamento que o casal irradiava.
Foi o que mais fiz naquela semana de convívio: viver à sombra da paixão alheia. Com seus livros, Fernando Sabino não me ensinou a escrever. Mas, com Lygia Marina, revelou-me o que seria amar. Chegado aos cinquenta, ele sabia que o tempo era curto e que, como no jazz, cada compasso equivalia a uma concessão da eternidade.
Talvez por isso, de nós três, Fernando fosse de longe quem mais esbanjasse alegria. Pela mulher amada a seu lado, pela cidade feiosa e desconjuntada (que se reinventava à noite), pelos pequenos detalhes do cotidiano ao redor. Como todo bom escritor, sabia abrir espaços para o inusitado e as cenas que brotassem do nada.
Com sua energia, ele a cada instante manipulava a pirâmide etária da qual éramos parte. Nivelados por baixo, regressávamos à infância, conquistando, em troca, espaços para crescer. E crescíamos com o som que nos cercava por toda parte – inclusive no carro, por cortesia dos alto-falantes de meu rádio. Nessas horas, o mar de luzes e faróis em meio à teia de freeways separava a realidade de nossos dias da irrealidade de nossas noites. E a música nos envolvia em uma paisagem única, unindo bares, artistas e figurantes.
Por uma semana, saímos juntos em busca de magia, tal qual a concebíamos. A cada madrugada, quando os deixava de volta ao hotel, Fernando, longe de cansado, rejuvenescia. Quando partiram de Los Angeles rumo a outros destinos, Lygia Marina levava pelas mãos um quase adolescente.
Por anos a fio nos vimos de forma esporádica. A carreira diplomática tornava episódicas minhas vindas ao Rio de Janeiro. Mas nunca perdemos o contato. Falávamos ao telefone, trocávamos cartões-postais, sempre atentos ao próximo abraço.
Uma noite, no entanto, estando eu de passagem pelo Rio, Fernando me telefonou. Em duas frases, contou-me que Lygia o deixara. E, num sopro quase inaudível, me convidou para tomar um uísque. As alternativas eram o Antonio’s ou o Nino, hoje desaparecidos. Por ser mais discreto e nada ruidoso, optamos pelo segundo, em Copacabana, na esquina da Bolívar com a Domingos Ferreira.
A notícia da separação não era nova para mim, pois eu dela tivera conhecimento algumas semanas antes. Mas era nova para ele, como Fernando me explicou, por se renovar a cada despertar. E, dali em diante, por fustigá-lo a cada silêncio prolongado, cada telefonema indesejado, cada esquina que o levasse à seguinte – onde Lygia tampouco estaria.
Para agravar um quadro em si mesmo melancólico, a maioria de seus velhos amigos, de Rubem Braga a Vinicius de Moraes, de Clarice Lispector a Paulo Mendes Campos, tinha falecido. Ele estava isolado e só.
Não foi a solidão, no entanto, que o levou a me telefonar: foi o desejo de resgatar um fragmento soterrado em sua memória. Já não tinha como fazê-lo sozinho, precisava de quem o ajudasse. Assim foi que, juntos, voltamos a nos debruçar sobre os velhos mapas do passado.
Parceiro mais carregado de infortúnios, porém, ele não poderia ter encontrado naquela noite. Pois, por meu lado, eu também andava mal das pernas.
Uma separação mal resolvida, da qual resultara a ida de minha ex-mulher com meus dois filhos para o exterior, privara-me da companhia dos meus filhos – que tinham, respectivamente, 4 e 2 anos. Meu acesso às crianças se complicara e, no curto prazo, escapava a meu controle.
Eram tristezas de certa forma incompatíveis, aquelas nossas… Tanto que, ao ouvir Fernando, optei por me calar. Mas ele, apesar de abalado no que possuía de mais íntimo – um terreno onde orgulho ferido e amor exacerbado se digladiam –, acabou por perceber meu desamparo. Tentar me ajudar foi para ele, em um primeiro momento, um reconforto. Fernando tinha tido sete filhos, só os deuses sabem que gênero de desafios não teria enfrentado com cada um deles ao longo da vida. Seus ensinamentos, no entanto, cotejavam o trivial. “Crianças são como gatos”, ensinou-me, “caem sempre de pé.” E ao me sentir mais desanimado do que nunca: “Tente se mostrar, pouco que seja, não desapareça por completo; as crianças não se esquecerão de você. Preencherão os claros da vida sozinhas.”
Essa última frase me trouxe algum alento, agradava-me a ideia de que meus filhos pudessem preencher os claros da vida – no caso, os de minha ausência. Era, além disso, uma bela imagem. Imaginei-os ocupados em me situar em suas jovens existências, brincando, felizes, de esconde-esconde ou andando de velocípede. Tratava-se, porém, como fui me dando conta à medida que o tempo passava, de uma imagem literária. Dois seres perdidos vagamente alcoolizados, trocando conselhos em busca do caminho das pedras…
Íamos já pelo terceiro uísque quando Fernando se abriu por inteiro para sua tristeza. Mas sem choros, recriminações e, muito menos, ranger de dentes. Para minha surpresa, até sorriu: aterrissava, uma vez mais, na primavera californiana de seu grande amor.
Assim como, anos antes, eu cedera ao prazer de testemunhar sua paixão e dela comungar, não teria, agora, como deixar de acompanhá-lo em seu calvário. Às voltas com minhas próprias mágoas, coloquei meus infortúnios a suas ordens, transformando-me de novo em seu escudeiro. Se era para tomar o rumo do inferno, iríamos de braços dados.
Fernando gravara na memória o nome de cada um de nossos destinos, bem como a ordem cronológica que seguimos noite após noite, em nosso sinuoso périplo. No Nino, bar no qual nos encontrávamos aboletados, desenhou com o dedo o local exato das mesas nas quais havíamos sentado em cada estabelecimento, incluindo sua distância com relação ao palco.
O uísque ajudava, é claro. A cada gole, regressávamos no tempo. A seleção musical também cooperou, já que Sarah Vaughan e Louis Armstrong se faziam ouvir em surdina (sonoplastia a que o maître daria continuidade por horas a fio). As vozes baixas vindas das mesas vizinhas tampouco destoavam dos murmúrios entreouvidos nos templos de nosso passado.
Tendo delimitado o espaço, Fernando levou o exercício adiante: passou a povoar cada um daqueles cenários com uma infinidade de detalhes, seja mencionando nomes de garçons e lembrando os de vizinhos de mesa, seja descrevendo as fotografias nas paredes. Embalado por ele, eu acrescentava minha lista de pormenores inusitados (boa parte inventados), a tal ponto que criávamos, em parceria, ambientes que teriam sido irreconhecíveis aos olhos dos proprietários dos bares de Los Angeles que revisitávamos com crescente desenvoltura desde nosso balcão no Rio de Janeiro.
Sob essa ótica, os músicos tinham todos tocado como deuses. Ou, dependendo do teor das recordações (em se tratando também, vale lembrar, de jazz), como diabos ensandecidos. Em meio às respectivas desesperanças, abríamos espaço para a euforia.
Entre nós, porém, pairava uma grande ausente, cujo silêncio Fernando não tinha como administrar. Mas que se deixava entrever quando evocada, por força de algum aspecto secundário que pudesse ser citado, sem ser cultivado ou debatido.
“Foi na quarta noite que ela resolveu passar às margaritas…”, dizia ele. Ou: “Na entrada do primeiro bar, o salto do sapato de Lygia quebrou na escada…”, comentava eu, que a impedira de cair ao socorrê-la com meu braço. Ou, ainda, entre risadas: “Mais tarde, no hotel, ela me contou que o bêbado que fizera escala em nossa mesa (apresentando-se como um “falso místico”, lembra?) colara a perna à dela debaixo da toalha, um falso místico bem safado se você quer minha opinião, aberto a bolinações…”
Tinha vida própria, a vida, percebemos à altura do quinto uísque. Em Los Angeles, uma constatação elementar como essa – um capricho, na realidade – nos escapara.
A bem da verdade, bebíamos muito menos naqueles anos.
A meu amigo Ruy Castro é atribuída, entre outras, uma frase extraordinária, vista pela ótica dos escritores: “Quando eu morrer, não quero ir para o céu: quero ir para um sebo.”
Fernando também tinha um fraco por sebos. E eu, que ignorava o fato, jamais poderia supor que aquele seria o cenário de nosso derradeiro encontro – ocorrido logo após um almoço promovido em 2001 pela Record, a editora dos livros de Fernando Sabino e dos meus. Ao me telefonar para fazer o convite, o representante da editora, Sérgio França, me contara que partira de Fernando a ideia de me chamar. Seríamos apenas os três a almoçar.
Como se dera no caso do encontro no Nino, um bom número de anos transcorrera sem que nos revíssemos, Fernando e eu. E foi um senhor magrinho, ligeiramente curvado, que vi entrar no restaurante da Avenida Atlântica onde o aguardávamos – na altura do Posto 6. Se o corpo se fragilizara com o passar do tempo, o porte nada perdera de sua altivez. E a vivacidade do olhar continuava inalterada.
A conversa entre nós correu solta e divertida, com Fernando firme no leme de nosso simpático veleiro. Falamos de livros, dos dele, dos meus, da crise editorial que assolava o país, da escassez de críticos abertos a novos talentos. Falamos também de política, mas sem perder o apetite – e até espetando com vigor renovado as iguarias que nos eram servidas, sempre na companhia dos excelentes vinhos patrocinados pela Record.
Eu me perguntava se Fernando não faria alusão a Los Angeles e a Lygia, mas ele se manteve distante desses temas, talvez pela presença de nosso companheiro de mesa. Sérgio França e eu tínhamos acertado que, uma vez tomados os cafés, ele pediria licença para retornar à Record, onde o trabalho da tarde o aguardava – ficando assim a meu cargo acompanhar Fernando no trajeto de volta a sua casa, uma caminhada de uns poucos quarteirões até a vizinha Rua Canning.
Tendo Sérgio se despedido, pedimos mais um café. Isso feito, simplesmente nos deixamos ficar, Fernando e eu, sentados lado a lado diante do mar. Era um dia radioso de verão, com uma visibilidade cristalina, que permitia ao olhar abraçar uma quantidade de embarcações de todos os tipos e tamanhos.
As lembranças que agora nos faziam companhia eram leves. Tanto que Fernando, após saborear seu segundo café com evidente prazer, propôs com um sorriso:
– Um conhaque?
– Por que não? – respondi no ato, já acenando para o garçom.
No lugar de Miles Davis e Thelonious Monk, era Antônio Carlos Jobim quem nos fazia companhia havia algum tempo.
– Essa o Tom escreveu para ela… – disse Fernando em dado momento –… só que grafou com “i”.
– Para quem? – indaguei, distraído, imerso que estava nas águas do Atlântico.
– Lygia… – ele respondeu com tranquilidade, enquanto do alto-falante Tom ecoava: Esqueci no piano as bobagens do amor/Que eu iria dizer/não, /Ligia, Ligia…
Ignoro quanto tempo transcorreu sem que abríssemos a boca, a música se esgueirando entre nós dois, como se ela própria nos espreitasse.
Até que, bem a sua maneira, Fernando acusou o golpe:
– Às vezes eu sinto uma falta danada de um cigarrinho. Você não?
– Sinto, claro.
Seguiu-se outra pausa, ao longo da qual os conhaques felizmente chegaram. Se em algum momento ele sentiu saudades de Lygia, terá sido naquele fascinante instante, quando o músico, à falta do escritor, chamara a si o dever de tornar presente a mulher ausente.
Brindamos então. O olhar de Fernando, brilhando de malícia, proclamava: Sobrevivi a tudo. O meu, aberto a interpretações, sugeria: Se é você quem diz…
Enquanto isso a música terminava e, com ela, Lygia nos deixava. Sem mágoas ou alegrias, mas celebrada por um duo digno de todos os bares, desse e de outros mundos. Senti que, ali, Fernando se despedia dela. Sem perdas ou rancores.
Mas estava escrito – e ainda bem – que a tarde não cederia espaço à melancolia. Tanto que, como se nada fosse, Fernando indagou após um novo gole em seu conhaque:
– Você gosta de sebos?
E a conversa outra vez mudou de rumo.
Meu companheiro de mesa parecia motivado – e bem interessado em desenvolver seu tema. Um pouco como se, na velhice, tivesse fatiado sua vida em pequenos compartimentos, criando discretas barricadas que o protegessem contra assaltos à mão armada, escritores principiantes, pragas de gafanhotos ou amores perdidos em um passado remoto.
No compartimento “sebos”, caberia a mim escutá-lo discorrer sobre o rumo de livros que haviam trocado de mãos:
– É o destino deles… E no sebo, com sorte, renascem. Ao contrário de nós, autores, eles têm sempre uma segunda chance. Por vezes, uma terceira.
Fernando conhecia, com rara intimidade, aqueles casulos nos quais os livros viviam suas segundas, quem sabe terceiras ou quartas vidas. Falou-me, primeiro, dos sebos localizados no Centro, que ainda resistiam à pressão imobiliária – ao contrário do que sucedia nos bairros valorizados da Zona Sul, onde a cada ano eles se faziam mais raros.
Conversamos por meia hora mais, o tempo que duram os bons conhaques. Até que, como fizera comigo ao telefone em Los Angeles tantas décadas antes, ele chegou ao ponto que o interessava:
– Aqui atrás tem um.
– Um sebo?
– Na Nossa Senhora de Copacabana. Não longe da Francisco de Sá.
E depois de uma ligeira pausa:
– Quer ir até lá comigo?
Mais do que de um convite, tratava-se de um chamado. Simpático, naturalmente, mas chamado assim mesmo: meu companheiro de mesa trocava de cenários.
Para o sebo nos dirigimos então, caminhando bem devagar. Na banca da esquina, não resisti à tentação e comprei um cigarro que acendi ali mesmo com o isqueiro do jornaleiro. Fernando arregalou os olhos, mas pediu um também – que, no entanto, colocou no bolso superior do paletó, como se charuto fosse. Em Los Angeles, o casal fumava bastante. Não ficava difícil imaginar na companhia de quem, chegada a noite, ele acenderia aquele seu cigarrinho.
No sebo, impossível deixar de notar o afeto da recepção acordada a ele. O dono o conhecia de muitos anos. Alguns dos funcionários também se aproximaram sorrindo, enquanto um jovem casal nos espreitava a meia distância.
Sua obra tinha uma prateleira inteira só para ela, com direito a etiquetas.
– Gosto de reler as dedicatórias… – ele me disse. – E descobrir quais foram os bandidos que se desfizeram de meus livros. Vamos ver?
E foi abrindo os exemplares, um a um, cujas dedicatórias lia em voz baixa – mas alta o suficiente para que eu ouvisse. Algumas vezes resmungava ao final: “Que idiota!” Ou “quem diria, esse só pode ter morrido, gostava de mim…”. A maior parte do tempo, porém, ria das dedicatórias e de si mesmo, o que me levou a rir com ele. E Fernando ia empilhando os livros nos braços, até que precisou colocá-los sobre uma cadeira. “Veja só quantas linhas escrevi para esse cretino!”
E me vendo às gargalhadas:
– Está rindo de quê!?
Antes que eu pudesse me refazer, contudo, ele disse:
– Será que você não tem livro aqui também? Vendido por algum ingrato? Por uns trocados?
A ideia jamais me teria passado pela cabeça. Tanto que cheguei a esboçar um início de frase, alegando que não tinha obra para…
– Para o quê? – ele me interrompeu. – Para estar aqui? Entre os traídos e renegados?
Com um prazer quase infantil, e auxiliado pelo dono, ele se pôs à cata de meus livros. E, para minha perplexidade, encontrou dois. O primeiro sem dedicatória alguma.
– Revendido pela própria Record! – registrou Fernando com visível prazer, um conhecido golpe da editora para se desfazer de estoques encalhados.
Pior sorte, porém, tive com o segundo, que ele me passou sem comentários. Trazia uma dedicatória que ocupava os dois primeiros terços da página. Fiquei lívido, e Fernando, encantado.
“Para Thereza Maria…”, fui recitando a meia-voz sem acreditar no que lia.
– Mas que bandida! – interrompi quase sem ar, para o deleite supremo de Fernando e do casal jovem, agora integrado a nosso grupo.
O curioso é que eu estava genuinamente indignado. Tratava-se de uma prima querida, que costumava celebrar pelos tetos de sua vizinhança meu discreto talento, e cujo marido despachara todos os livros dela para o sebo na sequência de um divórcio. Minha estupefação, que não tinha limites, só aumentou quando Fernando de repente gritou na direção do dono:
– Quanto é!? Eu compro! Eu compro!!
E, como eu ainda segurasse o exemplar cuja dedicatória nem conseguira ler até o fim, ele acrescentou:
– Mas quero umas palavras suas logo abaixo da dedicatória a sua prima querida!
Sem pestanejar então, e já refeito da afronta, rabisquei às pressas: “Para Fernando, na esperança de que me seja mais fiel do que Thereza Maria.”
Enquanto eu lhe entregava o exemplar, Fernando, sempre às gargalhadas, fazia questão de pagar os 2 ou 3 reais cobrados pelo proprietário.
Dali em diante, nunca deixei de visitar sebos, movido em parte pela curiosidade sobre o destino de meus livros, mas em busca, também, de leitores que me haviam abandonado, quem sabe entre dois endereços ou, pior, a meio caminho de uma leitura.
É a maneira carinhosa que tenho de evocar o singular amigo que, poucos meses depois desse último encontro, e na esteira de inúmeros livros repletos de encantos variados – histórias inesquecíveis que por gerações haviam alegrado tantos leitores –, iria parar no mais rico e belo sebo da vida, ao abrigo do qual dom Hélder Câmara não terá deixado de lhe devolver sua amada bateria…
Ignoro se minha amiga Lygia Marina, de cuja memória me vali ao enveredar por essa crônica, concordaria comigo – ela, afinal, conviveu com o homem por duas décadas, ao passo que eu acabei tendo mais acesso ao personagem. Mas tenho para mim que a melhor maneira de homenagear certas figuras que nos são caras ainda é celebrar determinados momentos de que nos tornamos herdeiros por cortesia delas.
Seja porque os fragmentos iluminam o todo, seja porque, por meio deles, os claros da vida são preenchidos.
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