Verissimo é fã de comida de avião e não se zanga em fila de aeroporto; Zuenir é bom de papo e sempre fatura uma cachacinha; Loyola matou os anões da Branca de Neve e entrou para a fama ILUSTRAÇÃO: MAXIMILIANO BAGNASCO
Os feirantes
No novo cenário das letras nacionais, Loyola Brandão, Verissimo e Zuenir Ventura dão autógrafos, apertam mãos, sorriem e tiram fotos
Tomás Chiaverini | Edição 60, Setembro 2011
Ignácio de Loyola Brandão subiu nas asas da fama aos 8 anos de idade, quando matou os sete anões e libertou Branca de Neve da escravidão doméstica. O crime ocorreu num exercício de redação no qual a criançada imaginava finais alternativos para as histórias que lia. No de Loyola, a heroína liquidou os baixotes com uma sopa de cogumelos venenosos e viveu feliz para sempre.
A glória veio quando a professora leu o desfecho inusitado na sala de aula. Bastou Dunga, Zangado e companhia caírem mortos para que, com uma gargalhada em uníssono, todos voltassem os olhos de admiração para a última fileira, onde o introvertido autor costumava se sentar.
“Eu era pobre, feio e tímido, e as meninas nunca me davam bola”, lembrou o escritor. “Mas naquele momento me senti olhado e, inconscientemente, decidi que a literatura seria o meu caminho. Foi também meu primeiro momento de celebridade, quando a classe saiu no recreio espalhando: ‘O Ignácio matou os anões! O Ignácio matou os anões!’”
Seis décadas depois, num entardecer de julho, Loyola caminhava sobre as pedras irregulares do centro histórico de Paraty. Em meia hora, subiria ao palco da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), o festival de Cannes da literatura brasileira. Aos 74 anos, quase cinquenta como escritor, garantiu que estava tão nervoso quanto naquela manhã em Araraquara, quando a professora leu sua redação em voz alta para os colegas. “Eu sempre fico tenso antes de me apresentar”, gesticulou com os óculos na mão. “E se não fico, sai uma merda.”
O nervosismo tem pouca razão de ser. Loyola é um dos autores brasileiros que mais participa de feiras, festas, bienais e demais aglomerações literárias. Em 2010, esteve em 33 desses eventos pelo país afora. Se enfileirasse todos os dias que passou viajando no ano passado, somaria três meses de estrada. Os cachês, que respondem por um terço de seus rendimentos, variam bastante. Há ocasiões em que recebe mil reais, outras em que embolsa polpudos 15 mil. Pela fala de menos de meia hora na Flip, não ganharia nada além de divulgação e prestígio.
Pouco depois de deixar o casarão colonial da pousada onde estava hospedado, ele topou com o psicanalista e romancista Contardo Calligaris, seu colega de mesa (apesar de não haver mesa, é assim que a organização se refere aos debates). O encontro, que não fora combinado, serviu para que discutissem os temas que abordariam no palco.
Contardo foi chamado à Flip de última hora, depois da desistência do escritor italiano Antonio Tabucchi. Na década de 70, Tabucchi vertera para o italiano a primeira edição de romance de Loyola lançado na Itália dois anos antes de sair a edição brasileira, que acabou censurada aqui pela ditadura. Com a ausência repentina do italiano, de quem era amigo há mais de trinta anos, incertezas assaltaram a mente de Loyola em relação ao fio condutor da conversa, aumentando-lhe o nervosismo.
Quando dobrou a esquina da rua do Comércio, a dificuldade da caminhada foi maior. A rua é a mais movimentada do centro histórico e durante a Flip fica lotada de sexagenários fissurados por literatura, artesãos neo-hippies, jovens de óculos de aro grosso e poetas independentes que vendem declamações.
Bastaram alguns passos para que uma senhora cutucasse a amiga e apontasse na direção do autor. Foi a senha: eis uma celebridade. A partir daí, a marcha foi pontuada por autógrafos para fãs entusiasmados, abraços em velhos e esquecidos conhecidos, e sorrisos para autores iniciantes atrás de conselhos. Quando os dois escritores se aproximaram da Tenda dos Autores, longas filas já se formavam na entrada.
Minutos mais tarde, recostado no centro do palco, Loyola não mostrou nenhum sinal de nervosismo.
– O que você vai ler, Loyola? – perguntou o mediador Cadão Volpato.
– Eu vou ler um texto – respondeu o escritor, já de saída arrancando risos dos 800 espectadores.
Depois, contou anedotas que cativaram o público. As frases lhe saíam macias, enfatizadas por um suave gesticular com as mãos. Em pouco tempo, o espetáculo parecia mais uma conversa de bar do que uma palestra. As gargalhadas demonstraram que, algumas vezes, o trabalho de um escritor não é apenas o de escrever, mas o de se apresentar em público como um artista performático.
Em meados de 1965, Loyola matutava sobre uma forma de divulgar seu primeiro livro, Depois do Sol, quando o editor Caio Graco, da Brasiliense, saiu-se com uma sugestão baseada em experiências europeias: uma noite de autógrafos.
Eventos do tipo, que hoje infestam livrarias de canapés murchos, vinho branco tépido e autores com as mãos suadas de nervoso, não faziam parte do mundo literário nacional, e o escritor, então com 29 anos, viu certo disparate na sugestão. “Achei que seria um fracasso, que não iria ninguém”, se recorda. Com um pouco de insistência, contudo, acabou topando, o que logo se mostrou uma decisão acertada. À época Loyola já era um jornalista conhecido. Trabalhava como editor no jornal Última Hora, onde já exercera funções de repórter, colunista e crítico de cinema. Personalidades paulistanas compareceram em peso à Livraria Brasiliense, na rua Barão de Itapetininga, onde autógrafos foram disputados a cotoveladas. Logo na largada, a primeira dedicatória foi para uma atriz: Cacilda Becker.
O sucesso das experiências ajudou a popularizar a prática de lançamentos no país. Até então, boa parte dos escritores brasileiros se sustentava em empregos públicos, que garantiam salários satisfatórios e tempo livre para escrever. A literatura era feita por amor, vocação ou vaidade. Pouco tinha a ver com trabalho diário e remunerado. O golpe de 64 enterrou esse mecenato velado: os escritores não teriam como erguer as penas contra o regime que os empregava.
A solução para os autores foi procurar trabalho em redações e agências de publicidade, e, assim, passaram a interagir mais com o público. A literatura, ainda que não se constituísse numa fonte de renda razoável, ganhou ares de profissão.
Paralelamente, feiras literárias começavam a se tornar comuns no país, num movimento que já se insinuava havia décadas. Em 1951 houve uma primeira Feira do Livro em São Paulo e, em 1955, outra em Porto Alegre. Em 1961 a Câmara Brasileira do Livro (CBL) criou um protótipo da Bienal do Livro de São Paulo, projeto que só se sedimentaria a partir de 1970.
Em 1981, Tânia Rösing, uma professora de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, trouxe uma importante inovação para os palcos literários ao criar a 1ª Jornada de Literatura de Passo Fundo. Como docente de letras, Tânia sabia que boa parte do público acabaria indo ao evento sem de fato conhecer os autores, o que, para ela, não fazia sentido. Era preciso que espectadores tivessem contato com a obra dos escritores antes das palestras.
“Quando não se prepara o público, as perguntas são superficiais. Escreve de dia ou de noite? Se inspira na sua rua ou no mundo? Dá seus livros para alguém ler antes de publicar?”, argumenta Tânia, que ainda hoje, aos 63 anos, está à frente da Jornada.
Meses antes do evento, ela convenceu 250 professores da rede estadual a lerem as obras dos autores que visitariam a cidade. Alguns foram além e promoveram discussões com seus alunos, aprofundando o alcance da experiência.
O encontro foi modesto, com público de 750 pessoas. Mas contou com as presenças ilustres de Carlos Nejar, Mario Quintana e Moacyr Scliar, entre outros gaúchos de renome. Foi uma festa despretensiosa, feita na base do improviso, com autores hospedados na casa dos organizadores e participando de jantares de confraternização. Nada indicava que, três décadas depois, a Jornada se tornaria um dos mais importantes acontecimentos literários do país, reunindo cerca de 30 mil pessoas a cada edição, com resultados duradouros que transcenderam o evento: atualmente a média de leitura por habitante na região de Passo Fundo é a maior do Brasil, de 6,5 livros lidos espontaneamente ao ano (excluindo os que a escola obriga a ler). Está próxima à da França, de 7 livros por pessoa, e bem superior à do restante do país, de 1,3 livro.
Em 2004, outra novidade se deu longe das metrópoles, na pequena Paraty. Inspirada no Hay Festival of Literature and Arts, que surgiu no País de Gales em 1988, a Flip nasceu diferente já no nome. Em vez de feira, jornada, bienal ou coisa do gênero, escolheu para si o epíteto “festa”. Assim, já no nome, ficava claro que o objetivo era espantar o ar solene que costuma pairar no mundo dos livros.
Quem esteve em Paraty na nona edição do evento, entre os dias 6 e 10 de julho, pôde, por exemplo, tomar cerveja com peixe frito no mesmo restaurante frequentado pelo escritor e cineasta francês Emmanuel Carrère, pedalar a sua bicicleta pertinho da do músico inglês David Byrne, ou bebericar prosecco rosé ao lado do escritor e jornalista Edney Silvestre numa das várias festas privadas que pipocavam na noite.
A experiência não demorou a se espalhar. Desde 2005, surgiram, entre outras, a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), a Festa Literária de Porto Alegre (FestiPoa), a Festa Literária de Marechal Deodoro (Flimar) e a Festa Literária de Pirenópolis (Flipiri).
Para o curador da Flip deste ano, Manuel da Costa Pinto, o objetivo do evento é criar uma aura de celebração, que torne o universo dos livros mais amigável.
“A literatura é a mais árdua forma de arte para o receptor”, afirma Costa Pinto. “A Sinfonia nº 7 de Mahler, por exemplo, dura uma hora e quinze. Ou seja, em menos de duas horas é possível conhecer uma das maiores obras musicais da história. Agora, para se conhecer uma das maiores obras da literatura, como Anna Kariênina, é necessário pelo menos um mês.”
Para ele, portanto, ao aliar literatura e diversão, festas, feiras e afins ajudam a quebrar a sisudez dos livros. Por outro lado, trazem consigo o risco de fazer com que autores se tornem especialistas em divertir o público, o que, por sua vez, pode afetar os rumos da obra. “Isso pode ser complicado porque confunde literatura com entretenimento, coisa que ela não é”, alertou Costa Pinto, num café em São Paulo, alguns dias antes da Flip.
“Não acredito que Dostoiévski tenha escrito O Idiota para entreter. Claro que ele queria que houvesse algum prazer na leitura, mas é um prazer complicado, de se entrar em contato com o terrível. Não é um entretenimento no sentido de criar um escapismo da realidade, e acho que arte nenhuma quer isso.”
Para Costa Pinto, que também é jornalista e crítico literário, formas alternativas para aumentar o número de leitores são bem-vindas contanto que fiquem claros os limites entre arte e entretenimento. “Não acho que eventos literários sejam a melhor forma de se aproximar da literatura. A melhor forma de se aproximar da literatura é ler um livro.”
Às 19 horas, após quase duas horas no palco da Flip, Loyola e Contardo chegaram ao local dos autógrafos. É um espaço amplo e aberto, estrategicamente posicionado atrás da tenda principal e ao lado de uma livraria montada exclusivamente para a festa. Um vento frio, carregado de maresia, soprava do mar. Mesmo assim, centenas de pessoas esperavam na fila, com livros embaixo do braço. Alguns, mais curiosos, aproximavam-se da mesa pelas laterais e tiravam fotos com celulares e câmeras digitais. Fitas de isolamento mantinham o público à distância, o que acabou por aumentar o clima de tietagem.
Um homem encapotado saiu da livraria, deu uma espiadela na mesa e perguntou ao segurança quem estava autografando. O grandalhão careca, apertado num terno preto de microfibra, pensou um pouco e chutou, “Luís Loyola Brandão”, o que não é lá tão mau.
“Ai, olha que fofo, ele me deu um monte de autógrafos”, exclamou a professora Fátima Resende, sorrindo sobre a pilha de livros que carregava. Ao contrário de celebridades como J. M. Coetzee, que apenas assina o nome, Loyola cria longas dedicatórias, diferentes para cada leitor. “Fico até constrangida por trazer quatro livros, mas ele foi lindo, generoso e amigo”, comemorou Fátima.
Às 19h40, a fila de Contardo terminou. Ele se levantou, vestiu a jaqueta cinza, enrolou um cachecol no pescoço e deixou a mesa. Loyola foi adiante. Assinou, sorriu, apertou mãos, recebeu elogios, ouviu histórias, tirou fotos. Seguiu assim até as 20h40, horário em que devolveu o último dos 150 livros autografados na noite.
Prestes a sair, foi abordado pelo segurança, que quase acertou o seu nome. O homenzarrão perguntou: “O senhor estava num evento em São Francisco Xavier, né?” E completou com um sorriso: “Trabalhei lá também.” O escritor devolveu o sorriso, assentindo com a cabeça.
Quatro dias depois, no escritório de seu apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo, Loyola ainda não tem opinião formada sobre o seu desempenho na Flip. Acha que não houve liga com Contardo. “Ele é um cronista da alma, eu sou um cronista do cotidiano.” Depois explica que, quando está no palco, a literatura dá lugar à dramaturgia, e que tem dois ou três scripts que costuma seguir. “Sou como um ator que apresenta uma peça, um monólogo”, diz.
O escritório dá vista para um terraço com vasos de árvores frutíferas e abriga a maior parte dos 4 mil livros que o autor mantém em São Paulo (há outros 8 mil em Araraquara, sua cidade natal). Os que escreveu, curiosamente, não estão à vista. Ficam numa estante fechada. Não é modéstia, e sim apego. “Não quero que ninguém mexa neles”, confessa com um leve e característico sorriso no canto da boca.
O autor não se furta em falar de seu passado, da carreira, da obra. Mostra fotos meticulosamente organizadas, textos em que está trabalhando e cartazes de alguns de seus 41 livros publicados.
Apesar do orgulho, que sobra também para a jabuticabeira no terraço e para os dois gatos que perambulam pela cozinha, Loyola se diz um homem sem empáfia. Vestindo jeans desbotado, camiseta branca e chinelo de dedo, garante que suas performances públicas não se devem à vaidade.
“Teve uma época em que eu achava interessante aparecer, ser fotografado. Hoje não preciso mais disso”, afirma. Segundo ele, o que o empurra para a peregrinação país afora (em 2011 já tem 26 eventos agendados) é a vontade de promover a literatura e de sentir na pele o retorno do público. Ou, talvez, manter em expansão uma estranha coleção provavelmente inédita. Para facilitar as dedicatórias, é normal que, junto do livro, fãs entreguem um papelzinho com o nome de quem receberá o autógrafo. O autor de Não Verás País Nenhum guarda todos. Ainda não tem ideia do que fará com eles, mas uma instalação de arte conceitual não parece má ideia.
Loyola é um autor consagrado. Já vendeu cerca de 5 milhões de livros (exceção num mercado em que editoras comemoram a marca de mil exemplares vendidos), mantém uma coluna quinzenal no Estado de S. Paulo e vira e mexe atende ao mercado institucional escrevendo livros de encomenda, que respondem pela parte do leão de seus proventos. Leite de Rosas – Uma História e Copag – 100 Anos no Brasil, Sempre Dando as Cartas, respectivamente, sobre a loção feminina e a marca de baralhos, são alguns exemplos dessa produção.
Palestras não são tão importantes para ele quanto para boa parte dos escritores contemporâneos. As remunerações do show business variam bastante. Pelo menos uma dezena de escritores consagrados cobra mais de 10 mil reais por aparição; para empresas, o cachê pode chegar a 25 mil. No geral, os valores oscilam entre 800 e 3 mil reais. Longe de deixar alguém milionário, esses cachês garantem o sustento de muitos autores nacionais.
Os royalties pagos pelas editoras brasileiras variam entre 5% e 10% do preço de capa. Um autor que vende mil livros a um preço de 40 reais, por exemplo, terá um rendimento de 4 mil reais. Entretanto, são raros os autores que vendem esse número de exemplares em poucos meses. Atualmente, entre os que se dedicam apenas à literatura, a maioria tem o sustento garantido por palestras, sessões de autógrafos e apertos de mão em coquetéis. Ao que tudo indica, uma tendência que tem ares de se perpetuar. De acordo com um levantamento feito pelo Ministério da Cultura, até o fim de 2011 terão ocorrido 75 feiras literárias no território nacional. Em 2012 espera-se que sejam 100 e, até 2014, 150. Em 2010 o governo federal destinou, por meio de renúncia fiscal, mais de 32 milhões de reais a 66 eventos literários, números que devem crescer este ano e nos próximos.
Em dezembro do ano passado, o governo alterou a Lei Rouanet para estimular o setor de eventos literários. A mudança estabelece que o dinheiro investido em feiras de livro pode ser integralmente descontado do imposto de renda. Antes, a dedução variava de 30% a 100%, segundo avaliação de uma equipe técnica. Em 15 de junho, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, anunciou a criação do Circuito Nacional de Feiras de Livro, com objetivo de estimular novas parcerias entre União, estados, municípios e iniciativa privada.
Segundo o presidente da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Galeno Amorim, o circuito de feiras tem o objetivo inicial de organizar e sistematizar eventos que já existem e, a partir daí, aumentar os investimentos.
“Feiras foram criadas para vender livros. Mas para isso precisam ter uma intensa programação cultural, o que faz com que ganhem importância além dos negócios”, diz Amorim. Para ele, a tendência é que eventos se multipliquem e que cachês aumentem, ajudando na profissionalização dos escritores. Amorim sustenta que a multiplicação de feiras começou por volta de 2005 e foi motivada por uma conjuntura de fatores. “A década passada foi pródiga em políticas públicas federais, estaduais e municipais, e na criação de boas legislações sobre o tema. Os índices de leitura cresceram e mais gente passou a atuar nessa área. Ou seja, é uma conjunção favorável.”
Para o fundador da editora Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, a melhora da economia nos últimos anos faz com que a quantidade de pessoas que se interessam por literatura aumente. Em consequência, o mercado editorial passou a se voltar para classes sociais que antes não compravam livros. “Acho que é algo positivo, mostra que o livro está tendo maior penetração”, refletiu.
“A época em que os autores morriam de tuberculose acabou”, ribomba o escritor Marcelino Freire, no tom levemente teatral que lhe é característico. A seu lado, num café de Paraty, o produtor cultural Claudiney Ferreira e os escritores Lourenço Mutarelli e Marcelo Carneiro da Cunha bebericam expressos e dão pitacos na entrevista. Reunidos em torno de atividades ligadas à Flip, todos concordam com a afirmação de Marcelino, que, afinal, sabe bem do que está falando.
Aos 44 anos, ele é um dos autores que mais viaja pelo país. Passa apenas três dias por semana em São Paulo, quando ministra oficinas literárias. No restante do tempo está batendo pernas pelo Brasil, qual um músico sertanejo em turnê eterna. “Antes, o escritor se prendia num casulo porque era ouvido, tinha uma importância. Hoje quem é que vai deixar todos os apelos da tevê, da internet e dos games para entrar numa livraria e ir à estante dos novos autores brasileiros?”, pergunta Marcelino, cuja estratégia de contra-ataque é promover, todos os anos, a Balada Literária – uma espécie de Flip paulistana, com menos badalação e mais boemia.
Com tantas atividades paralelas, o ato de pura e simplesmente escrever acaba perdendo espaço no cotidiano do escritor. Quando na estrada, Marcelino se diz em permanente estado de criação, colhendo impressões, observando o mundo. Mas o tempo em que está efetivamente batendo as teclas do notebook é menor do que o dedicado às novas facetas da profissão.
E onde quer que precisem de um escritor para sorrir e apertar mãos, lá está o midiático autor de Angu de Sangue. Ou quase. Certa vez foi chamado para se apresentar num lançamento imobiliário e achou que seria demais. De resto, está em todas. “Se me convidarem para velório, eu vou. Aliás, adoraria fazer uma leitura num velório. É bom porque já está todo mundo sensível, fica fácil emocionar.”
Dez dias antes da Flip e cerca de 250 quilômetros a nordeste, no prédio da Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio, uma senhora de meia-idade cutuca o ombro de um escritor.
– O senhor é parente do Érico? – pergunta, aproximando-se do rosto dele.
Luis Fernando Verissimo é um dos autores mais conhecidos do país, mantém colunas semanais em três dos maiores jornais brasileiros e tem mais de sessenta títulos publicados, entre romances, contos, crônicas, poemas e quadrinhos. Não sabe quantos livros vendeu, já que os lançou por editoras diversas, mas estima que foram mais de 5 milhões.
Mãos às costas, ele interrompe a caminhada de passos curtos e se vira para a mulher. Exibe algo de melancólico no rosto, as sobrancelhas erguidas no meio da testa.
– Sim, sou o filho – responde com voz grave e calma.
– Muito prazer, eu li toda a obra do seu pai – diz a senhora, apertando forte a mão do escritor, antes de lhe dar as costas e sair andando. Um pouco adiante, sussurra no ouvido da amiga: – Viu, eu disse que ele era parente do Érico.
Verissimo esboça um sorriso triste e continua adiante, ao lado de sua esposa, Lúcia, do escritor e jornalista Zuenir Ventura e de Mary, esposa de Zuenir. Pela resposta lacônica de Verissimo, poder-se-ia supor que a conduta da mulher, tietando o pai falecido num evento do filho, tivesse desagradado o escritor.
Mas não. Verissimo é tímido, calado e nada extrovertido, ao contrário do que se imagina lendo seus textos cheios de humor e simpatia. Antes de se materializarem em páginas de livros e jornais, os pensamentos do cronista são uma incógnita até para a esposa, com quem é casado há 47 anos. “Eu gosto quando ele dá entrevista porque descubro o que está se passando dentro da cabeça dele”, diz Lúcia.
Ainda assim, a exemplo de Zuenir e Loyola, o autor de Comédias da Vida Privada está entre os escritores consagrados que mais participam de reuniões literárias. Em 2010 esteve em oito feiras e perdeu a conta de quantas escolas receberam sua vista.
Mas a timidez é um problema. Fosse ele autor de textos soturnos e violentos, o figurino esconso de um Rubem Fonseca lhe cairia melhor. No seu caso, porém, há um descompasso entre criador e criatura. “O público cria uma expectativa de que vou ser o mesmo que sou no texto, e isso não acontece. Vivo com isso, com essa constante impressão de que as pessoas se decepcionam quando me encontram pessoalmente”, lamenta Verissimo.
O evento na ABL foi promovido pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, que comprou 17 mil exemplares do livro Conversa sobre o Tempo – um bate-papo entre Verissimo e Zuenir, mediado pelo jornalista Arthur Dapieve. Os volumes foram distribuídos a professores da rede municipal, parte deles agora aglomerados ao redor de uma mesa com salgadinhos, bolos, sucos e frutas. Assim que entra no recinto, antes que um enxame de fãs o cerque em busca de apertos de mão, Verissimo vira-se para o amigo e sussurra, gaiato:
– Finalmente entramos para a Academia, hein, Zuenir?
Verissimo fala pouco, mas, quando o faz, não erra o alvo. Aliás, costuma arrancar gargalhadas mesmo quando não é essa a intenção. Após o coquetel, por exemplo, já no palco, ele é chamado ao microfone para iniciar a conversa com as professoras (dos 93 espectadores, apenas oito são homens).
“Antes de mais nada, eu queria pedir desculpas pela minha falta de jeito”, sussurra, involuntariamente provocando risadas esparsas na plateia. “Me sinto um impostor aqui”, continua em tom sério. A intensidade dos risos aumenta ligeiramente. “Inclusive, na escola, não tive muita facilidade com o português”, diz, e logo passa o microfone a Zuenir. Nada indica que a fala tenha sido uma tirada de humor, mas, ainda assim, as professoras caem na gargalhada. Aparentemente sem opção e levemente encabulado, Verissimo também abre um sorrisinho.
Lidar com o público é tarefa para espíritos pacientes. A maioria dos eventos passa longe da atmosfera chique da Flip, em cidades do interior onde há todo o desconforto de hotéis espartanos e estradas poeirentas. O mais pop star dos escritores jamais terá o rosto tão conhecido quanto o galã adolescente da novela das seis, e o brilho da fama dos palcos literários está permanentemente ameaçado pelas nuvens do anonimato.
Quando participou da 2ª Flip, por exemplo, Zuenir mal desceu da van e foi cercado por uma fervorosa multidão de fãs que, em estado de semi-histeria, pediam autógrafos, fotos e beijinhos. “Nossa, estou abafando aqui”, pensou consigo mesmo o autor, que, apesar dos cerca de 1 milhão de exemplares vendidos, segue desacostumado com assédio de tamanha intensidade. Antes que sacasse a caneta do bolso para escrever a primeira dedicatória, contudo, ouviu uma das lítero-tietes gritar, chamando a amiga: “Corre aqui! Corre aqui! Vem ver o Saramago!”
Mas, apesar de tais contratempos, Verissimo, aos 74 anos, e Zuenir, aos 80, seguem na estrada. A motivação para ambos vem, sobretudo, da vontade de estimular o hábito da leitura entre os brasileiros. “Não tenho muito jeito para a coisa, mas gosto de ajudar”, diz Verissimo, com seu olhar tristonho.
Em frente a um anacrônico computador bege, numa pequena sala da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o professor Vladimir Safatle concorda com o valor da divulgação, mas faz suas ressalvas. Segundo ele, há uma tendência de que todo o universo literário passe a girar em torno de feiras e eventos, o que pode afetar o conteúdo final das obras e a relação dos escritores com o público.
“No Brasil, as condições estão postas para que, em cinco ou dez anos, se tenha uma grande espetacularização da literatura e do escritor”, diz. Isso faria com que a literatura ganhasse lógicas de produção e consumo semelhantes às da cultura de massa. Atenção desmesurada com retorno e penetração pública sobrepujaria definitivamente questões ligadas à estética e à inovação. “O fato de haver editores mais preocupados com a rentabilidade do que com os livros que publicam vai acabar interferindo na forma como os autores escrevem”, profetiza.
É pouco provável que esse diagnóstico reativo à cultura de massas venha a tirar o sono de Verissimo e Zuenir. Eles seguem viajando, firmes no propósito de semear literatura. Ao lado do desejo de catequizar novos leitores, contudo, há uma segunda motivação, menos civilizatória, mas de igual importância. Nada de objetivos financeiros – apesar de evitar falar em cachês, os dois garantem que a remuneração não é determinante. A verdade é que eles continuam viajando simplesmente porque têm prazer nisso.
O gosto de Verissimo pela estrada chega ao ponto de ele afirmar – aí, sim, com uma ponta de humor – que é fã de comida de avião e até se diverte nas longas esperas pelos aeroportos do mundo. Há outro ponto gastronômico em favor das viagens. Nelas, a rígida dieta a que o escritor se submete devido ao diabete é afrouxada por Lúcia.
“É um danado, um comilão. Quando você vê, ele está comendo doce e tudo o que não devia”, reclama a esposa, que além de controlar a alimentação, cuida da agenda e dos telefonemas do marido. Verissimo, assim como Loyola e Zuenir, se recusa a usar celular. Só é possível falar com os três por intermédio das esposas, que filtram as demandas que realmente merecem atenção.
E se Verissimo, com toda a timidez, é um entusiasta das peregrinações literárias, o que dirá Zuenir. Nascido em Além Paraíba, Minas Gerais, e radicado no Rio de Janeiro, é simpático como um mineiro e descontraído feito um carioca. Em 2010, participou de mais de trinta eventos, que o levaram a cidades como Arujá, Valinhos e Várzea Paulista. Como é atirado, não tem dificuldade em fazer amigos.
Há alguns meses, após uma palestra em Américo Brasiliense, no interior de São Paulo, Zuenir foi abordado por um sujeito que, depois de jogar um pouco de conversa fora, o convidou para jantar. O escritor aceitou com tamanha rapidez que o próprio fã desacreditou. Sacou na mesma hora o celular e ligou para a mãe, contando, feliz da vida, que estava indo jantar com o autor de 1968: O Ano que Não Terminou. Do outro lado da linha, a boa senhora não acreditou na história do filho. Para pôr fim ao impasse, e como estivesse com fome, o escritor foi forçado a tomar o telefone das mãos do novo amigo.
– Sim senhora, aqui quem fala é mesmo o Zuenir. A senhora pode ficar tranquila que seu filho está em boas mãos.
A astúcia também costuma render presentes. “Durante as palestras, ele sempre dá um jeito de dizer que gosta de cachaça”, diz Mary. “Então não tem lugar que a gente vá que não saia com um litro embaixo do braço.” Isso sem falar nos queijos, doces, panos bordados e todo tipo de mimos e badulaques.
Terminada a palestra na ABL, lá vão os autores para uma sessão de fotos e autógrafos. Eliete, Elizabete, Odete, Edila, Otila, Maria Alice… Uma após a outra, as professoras vão recebendo dedicatórias de Zuenir, que também distribui abraços, apertos de mão, beijinhos na testa, sorri e posa para fotos. Verissimo se posiciona estrategicamente de forma a ser sempre o segundo a assinar os livros. Embaixo das dedicatórias do colega, terminadas com “um abraço do Zuenir” ou “um beijo do Zuenir”, ele acrescenta um lacônico: “E outro do Luis Fernando Verissimo.”
Por volta das 16h30, terminados os afazeres, os dois escritores e suas respectivas esposas caminham lentamente pelas ruas do Centro. Um vento frio de inverno joga para os lados os dezessete fios de cabelo que Verissimo afirma conservar. Por causa do diabetes, ele não pode passar muito tempo sem comer, então sugere continuar a conversa em um restaurante perto dali.
Algumas quadras adiante, na tradicional Casa Villarino, os garçons nem se comovem com a presença dos clientes ilustres. Também não os privam da má notícia de que a cozinha está fechada. Para comer, só há sanduíches.
Lúcia Verissimo, vestida de bata grafite, olha para os dois escritores, que dão de ombros. É o suficiente para que ela assuma a liderança. Vira-se para o garçom e pede que ele enumere todas as alternativas que a casa oferece com a cozinha fechada. O rapaz não precisa chegar ao fim da lista. Quando pronuncia “salaminho”, Lúcia estica um olho em direção ao marido.
– Salaminho tá bom – diz Verissimo.