ANDRÉS SANDOVAL_2018
Os makanudos
Na boleia rumo a Yokohama
Luigi Mazza | Edição 142, Julho 2018
Na madrugada do último dia 22, o caminhoneiro cearense Rodrigo Okamoto estava cruzando a avenida Kanpachi Dori 311, que atravessa a cidade de Tóquio. Pilotava um Nissan UD azul-marinho, um caminhão bi-truck com capacidade de quase 14 toneladas. Aquela via – uma das principais da capital japonesa, com mais de 44 quilômetros de extensão – estava desimpedida às duas da manhã. “Para onde você quiser ir tem que passar por ela”, disse Okamoto, enquanto falava ao telefone com a piauí. “Esse horário é bom que é bem tranquilo.” Minutos depois, o brasileiro faria a primeira entrega do dia no porto de Yokohama, na região metropolitana de Tóquio: um carregamento de peças para automóveis Nissan, com destino à Europa.
O caminhoneiro interrompeu a conversa para tocar a buzina duas vezes rapidamente. “Estou cruzando com outro brasileiro agora”, explicou. O cumprimento virou ritual sempre que se cruzam dois caminhões com a bandeira do Brasil no para-choque. “Quando comecei era raro, mas hoje em dia a gente vê muitos.” Seus colegas brasileiros no Japão se chamam uns aos outros de makanudos, com um K para dar um ar mais japonês ao termo “macanudo”, que significa “camarada” no código com que os caminhoneiros se comunicam por rádio no Brasil.
Okamoto trabalha para uma empresa de transportes que atende a indústria automobilística da província de Gunma. De segunda a sexta, faz um trajeto de cerca de 100 quilômetros entre Yokohama e a pequena cidade de Oizumi, onde mora com a esposa e dois filhos, de 4 e 7 anos. Concluída a entrega, dorme por seis horas dentro do caminhão e faz o mesmo trajeto de volta, descarregado. Completa o dia com uma entrega na cidade de Ageo, mais perto de casa. “Mal vejo minha família de segunda a sexta”, disse o caminhoneiro. “Faço isso porque gosto. Já viajei para lugares que muito japonês não conhece.”
Filho de uma brasileira com um nikkei (descendente de japoneses nascido no exterior), Okamoto tem 36 anos. Foi criado em São Paulo e vive no Japão desde os 11 – veio com os pais e tios que deixaram o país durante a crise econômica do governo Collor. Com o boom das montadoras japonesas e uma reforma no controle de imigração que facilitou a concessão de visto de trabalho a descendentes de japoneses, a população de brasileiros no país saltou de 2 mil para 120 mil pessoas entre 1987 e 1991.
Na empresa em que Okamoto trabalha, oito dos vinte caminhões são dirigidos por imigrantes – sete brasileiros e um peruano. A presença de estrangeiros na profissão aumentou depois que foram aprovadas regras mais rígidas para conseguir a habilitação. “Se você tirar a carteira hoje, consegue emprego na hora”, afirmou o brasileiro. “Para quem não gosta de ficar preso dentro de fábrica, caminhão é a melhor coisa.” Okamoto recebe um salário de aproximadamente 400 mil ienes por mês, ou pouco mais de 14 mil reais. “Era bom há uns anos, mas não houve aumento desde a crise de 2008, enquanto o custo de vida subiu.”
Já no Brasil os caminhoneiros ganham em média 3,9 mil reais por mês, e são na maioria autônomos que não recebem um salário como Okamoto. A erosão dos ganhos da categoria – com os aumentos sucessivos do diesel – foi o estopim da paralisação que bloqueou rodovias em quase todo o território brasileiro no fim de maio e por pouco não levou o país ao colapso.
Foi pelo Facebook que Okamoto ficou sabendo da greve. A reivindicação que paralisou as estradas brasileiras parecia distante da sua realidade: o preço do diesel também tinha aumentado no Japão, mas não houve impacto sobre seus rendimentos. “Quem está preocupado é o meu patrão.”
O movimento agitou o grupo de caminhoneiros brasileiros criado por Robson de Freitas, um paulista de Votuporanga de 51 anos que vive no Japão desde 1991. Há mais de duas décadas, Freitas trocou o trabalho numa montadora pela vida na boleia, e hoje transporta carros da Subaru a bordo de uma cegonha Hino Profia 410 com capacidade para sete veículos. Criou a comunidade para trocar experiências e ajudar os novatos a tirar a carteira de habilitação. Ele estima que haja de 5 mil a 10 mil makanudos. Seu grupo tem 8 mil participantes, 2 mil deles inscritos durante a paralisação.
Já no segundo dia Freitas endossou o movimento e motivou uma enxurrada de vídeos e mensagens de estímulo. “Tenho orgulho dos senhores motoristas e eu apoio a paralisação!”, declarou em caixa alta o administrador da página. “Justo será prender o Temer e todos os políticos”, acrescentou um gaiato. Dias depois, alguém sugeriu uma paralisação no Japão para reduzir o preço do combustível. Um colega desaconselhou: “É kubi só de falar em ストライキ” – em outras palavras, é demissão na certa para quem falar em greve. Freitas não vê no horizonte a perspectiva de um movimento parecido no Japão. “Aqui as leis são mais rígidas, e as empresas não abusam do funcionário”, disse. “Tem sindicatos e pessoas entregando panfletos, mas nunca vi paralisação da categoria.”
Filho e irmão de caminhoneiros no Brasil, no fim de 2013 Freitas voltou ao país para rever a família e fazer um serviço. Foi contratado para levar equipamentos de Atibaia, em São Paulo, ao Parque Eólico do Chuí, no Rio Grande do Sul. Na madrugada de 27 de dezembro, dormia com a esposa no caminhão num posto de gasolina na Rodovia Régis Bittencourt, no interior de São Paulo, quando o veículo foi abordado por quatro assaltantes armados com facas. Levaram dinheiro, celulares e o rádio do caminhão. “Não tenho essa esperteza do brasileiro de saber onde não pode parar”, lamentou Freitas. Frustrado com a insegurança, concluiu que melhor era ser makanudo. Voltou ao Japão em fevereiro de 2014.