Somos habitados por até 10 mil espécies de bactérias, e essas células excedem as que consideramos nossas numa proporção de dez para um ILUSTRAÇÃO: FOTOGRAMA DO VÍDEO SCIENCE BULLETINS: OUR MICROBIOME - IDENTIFYING THE WORLDS WITHIN, DO ACERVO DO MUSEU AMERICANO DE HISTÓRIA NATURAL DE NOVA YORK (AMNH)
Os micróbios somos nós
As bactérias causam doenças. Será que também podem defender a vida?
Michael Specter | Edição 80, Maio 2013
A Helicobacter pylori pode ser o agente patogênico mais bem-sucedido da história da humanidade. Embora menos letal que as bactérias causadoras da tuberculose, do cólera e da peste, infecta mais gente que todas as outras combinadas. A H. pylori, que emigrou da África junto com nossos ancestrais, tem uma história de pelo menos 200 mil anos de envolvimento com a nossa espécie.
Embora ocupe metade dos estômagos do planeta, seu papel em nossas vidas nunca foi muito claro. Mas em 1982, para grande espanto do mundo científico, dois cientistas australianos, Barry Marshall e J. Robin Warren, descobriram que a H. pylori é a principal causa da gastrite e das úlceras pépticas; em seguida, a bactéria foi associada também ao aumento do risco de câncer no estômago. Até essa descoberta, pela qual os dois pesquisadores dividiram o Prêmio Nobel de Medicina em 2005, o estresse, e não uma infecção, era visto como a causa principal das úlceras pépticas.
A H. pylori tem a forma de um saca-rolha e 3 mícrons de comprimento. (Um grão de areia tem uns 300 mícrons [0,3 milímetros].) É também um dos raros micróbios capazes de viver sem problemas no meio ferozmente ácido do estômago. Os médicos descobriram que podiam eliminar essa bactéria do corpo com antibióticos, curando a doença, e o tratamento obteve tamanho sucesso contra as úlceras que ocorreram discussões periódicas sobre a tentativa de erradicação total da H. pylori. O consenso era claro; como escreveu um eminente gastroenterologista em 1997: “Helicobacter pylori boa é Helicobacter pylori morta.” A erradicação, porém, mostrou-se complicada e cara demais, e o esforço nunca chegou a ser empreendido. Ainda assim, poucos cientistas puseram em dúvida sua finalidade.
“A Helicobacter causava câncer e úlceras”, disse-me recentemente Martin J. Blaser, chefe do departamento de medicina e professor de microbiologia da Escola de Medicina da Universidade de Nova York (NYU). “Fazia mal às pessoas. E a ideia foi eliminá-la dos nossos corpos o mais depressa possível. Não conheço ninguém que tenha dito que talvez fosse melhor avaliar as consequências.”
Ninguém estava mais ansioso para expulsar esse organismo das tripas humanas do que Blaser, cientista que dedicou a maior parte de sua vida profissional ao estudo da H. pylori. Seu laboratório na NYU desenvolveu os primeiros exames de sangue padrão para identificar o micróbio, e a maioria deles continua a ser usada nos dias de hoje. Mas Blaser, um espírito inquieto que, além de seu trabalho médico, foi um dos fundadores da Bellevue Literary Review, queria saber como organismos tão antigos como os dos seres humanos conseguiam sobreviver, considerando que o efeito da bactéria fosse apenas danoso. “Não é assim que a evolução funciona”, comenta ele. “A H. pylori é um componente ancestral da humanidade.” Na década de 90, Blaser começou a estudar mais de perto o comportamento molecular da bactéria e, em 1998, publicou um artigo no British Medical Journal sugerindo que, ao contrário da visão dominante, a H. pylori podia não ser tão perigosa assim. No ano seguinte, criou a Fundação para a Bacteriologia, destinada a chamar a atenção para o papel crítico, e geralmente positivo, que esses micro-organismos desempenham na evolução humana.
“Chegamos a uma certa narrativa”, diz ele, sentado em seu laboratório. Uma placa de automóvel do estado do Tennessee – HPYLORI – está pousada em sua mesa, e na parede há um mapa detalhado do genoma da bactéria. Blaser, com um paletó esporte azul bem cortado e os cabelos grisalhos bem cuidados, projeta um ar animador de confiança; parece mais o principal executivo de algum conglomerado do que o cientista de laboratório que é há décadas. “Os germes causam doenças”, diz ele. “Mas as pessoas só falam do mal que fazem. E não é simples assim, porque sem a maioria desses organismos não conseguiríamos sobreviver.”
Desde 1953, quando James Watson e Francis Crick descreveram a estrutura do DNA, achamos que os genes determinam nosso destino biológico. A dupla hélice nos mostrou a planta da construção da vida, e o processo de criação de um ser humano é ao mesmo tempo extremamente complexo e também direto: os genes produzem proteínas que, por sua vez, criam as várias estruturas de que precisamos. Quando o DNA sofre algum dano ou os genes interagem mal uns com os outros, o resultado, depois de algum tempo, é a doença. Assim, entender em que momento e de que modo nossos genes dão defeito equivaleria a mapear as maneiras de prevenir, tratar e curar tudo, do câncer ao resfriado comum. E essa pesquisa se transformou na preocupação central da biologia molecular. Na última década, porém, com a ajuda de computadores cada vez mais potentes e da mesma revolução na tecnologia do sequenciamento de DNA que tornou possível mapear nosso genoma, uma verdade diferente foi emergindo: nossa saúde é sem dúvida influenciada pelos genes, mas pode ser afetada de modo ainda mais intenso pelas bactérias.
Herdamos cada um dos nossos genes, mas deixamos o ventre materno sem um único micróbio. Quando atravessamos o canal vaginal de nossas mães, a caminho do nascimento, começamos a atrair colônias inteiras de bactérias. Quando chega ao momento em que aprende a engatinhar, toda criança já vive rodeada por uma enorme nuvem invisível – 100 trilhões, ou mais, de micro-organismos. Em sua maioria são bactérias, mas também há vírus e fungos (entre eles uma grande variedade de leveduras, responsáveis pela fermentação) que nos chegam de todo lado: por outras pessoas, pelos alimentos, móveis, roupas, carros, prédios, árvores, animais de estimação, até mesmo pelo ar que respiramos. Congregam-se no nosso sistema digestivo e em nossas bocas, preenchem os espaços entre os nossos dentes, cobrem nossa pele e forram nossa garganta. Somos habitados por até 10 mil espécies de bactérias, e essas células excedem as que consideramos nossas numa proporção de dez para um, pesando, no total, em torno de 1,5 quilo – o mesmo que o nosso cérebro. Juntas, são referidas como o nosso microbioma – e desempenham um papel tão crucial em nossas vidas que cientistas como Blaser começaram a reformular sua definição do que constitui um ser humano.
“Adoro a genética”, diz Blaser. “Mas o modelo que situa os nossos genes na base de todo o desenvolvimento humano está errado. Isoladamente, ele não tem como explicar a rapidez do crescimento de muitas doenças.” Enfatiza que os genes são de imensa importância, mas precisamos levar em conta mais do que os meros 23 mil genes que herdamos de nossos pais. Os passageiros do nosso microbioma contêm pelo menos 4 milhões de genes, que funcionam o tempo todo para nós: produzem vitaminas e patrulham nosso intestino para prevenir infecções; ajudam a formar e a reforçar nosso sistema imunológico e a digerir os alimentos. Pesquisas recentes sugerem que as bactérias podem até alterar a química dos nossos cérebros, afetando assim nossos humores e o nosso comportamento.
O processo de mapeamento do nosso microbioma está apenas no início, mas mesmo os resultados mais provisórios já começam a transformar nossa compreensão da saúde humana. Pouco tempo atrás, um grupo da Escola de Medicina da Universidade de Maryland identificou 26 espécies de bactérias que residem no intestino de membros de seita amish da “velha ordem” – uma população isolada, com um patrimônio genético quase idêntico – e parecem explicar anormalidades metabólicas comuns do grupo, como a hipertensão e a resistência à insulina. Pesquisas semelhantes sugerem que a eliminação de bactérias pode contribuir para a doença de Crohn, a obesidade, a asma e muitas outras moléstias crônicas. “As possibilidades, nesses casos, são infinitas”, diz Blaser. “Precisamos de critérios científicos cautelosos, e não podemos exagerar a importância do fenômeno. Mas sou médico praticante e pesquisador há mais de trinta anos, e este é o trabalho mais importante e animador de toda a minha vida.”
As bactérias habitam a Terra há pelo menos 2 bilhões e meio de anos. Nossos ancestrais evolucionários surgiram num mundo dominado por micróbios e, assim como fomos evoluindo, eles também evoluíram. Até pouco tempo atrás, era quase impossível separar as moléculas e determinar o impacto que esses organismos tiveram sobre nós. Primeiro os cientistas precisavam localizar um micróbio no corpo, depois remover uma amostra e fazê-la multiplicar-se numa cultura. Com bilhões de células a examinar, os dados jamais poderiam ser completos, nem mesmo representativos. Foi a tecnologia de sequenciamento do DNA que mudou o quadro, abrindo pela primeira vez o mundo microbiano a um exame mais sofisticado. Depois da conclusão bem-sucedida do Projeto Genoma Humano, os Institutos Nacionais de Saúde [NIH, na sigla em inglês] dos Estados Unidos lançaram um empreendimento similar em 2007 com a finalidade de mapear o microbioma humano. Nos últimos cinco anos, cientistas associados ao Projeto do Microbioma Humano acompanharam 242 indivíduos saudáveis, colhendo amostras periódicas de bactérias de suas bocas, dutos nasais, pele e outros pontos da superfície e do interior de seus corpos. Em 2008, a Comissão Europeia e a China juntaram-se à pesquisa, com o Projeto da Metagenômica do Trato Intestinal Humano, conhecido como MetaHIT na sigla em inglês.
O uso do computador possibilitou aos pesquisadores purificar o DNA contido em milhares de amostras, separando genes das bactérias dos genes humanos. (Os cientistas sabem identificar o DNA humano; depois que ele é descartado, o que resta pertence ao microbioma.) Os resultados preliminares, publicados no ano passado, abriram uma janela surpreendente para o corpo humano, detalhando a vasta gama de micróbios que colonizam praticamente todas as superfícies de nossos corpos. A maioria reside em nossas entranhas, mas muitos também ocupam nossas bocas, e uma bactéria em especial, a Streptococcus mutans, foi reconhecida como a principal responsável pela degradação dentária. Quando a pessoa come açúcar, a S. mutans libera um ácido que corrói os dentes. Muitos pesquisadores dedicados ao estudo do microbioma hoje enxergam as cáries como uma doença infecciosa, e vêm testando um desinfetante bucal capaz de matar a S. mutans; se isso funcionar, podemos estar diante do fim das cáries. As comunidades microbianas variam muito de pessoa para pessoa e mesmo dentro de um mesmo indivíduo, mas também são específicas: os micróbios encontrados na sua boca, por exemplo, têm uma probabilidade muito maior de serem iguais às bactérias da boca de outra pessoa do que às bactérias oriundas de outras partes do seu próprio corpo. Mas nosso mundo microbiano é gigantesco e encontra-se em mudança constante: pesquisa recente envolvendo 124 pessoas na Dinamarca e na Espanha encontrou pelo menos mil espécies diferentes de micróbios intestinais, embora cada indivíduo só carregasse, em média, cerca de 160 espécies.
Todos os animais têm seus biomas. Existe um microbioma do gato, um microbioma do cão, um microbioma do crocodilo e um microbioma do golfinho. No ano passado, cientistas do Departamento de Estudos Granjeiros da Universidade Estadual da Carolina do Norte receberam uma dotação do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos para pesquisar o microbioma da galinha. As plantas também precisam de comunidades microbianas para sobreviver. A Rhizobium, uma bactéria que vive em nódulos nas raízes das leguminosas, ajuda suas hospedeiras a completar uma série de operações químicas necessárias para suprir boa parte do nitrogênio do planeta. “Como um explorador do século XV traçando os contornos de um novo continente, os pesquisadores do Projeto do Microbioma Humano empregaram uma nova estratégia tecnológica para definir, pela primeira vez, a composição microbiana normal de um corpo humano”, disse Francis Collins, diretor dos NIH quando os primeiros resultados do projeto foram publicados, no ano passado. Definiu-o como uma formidável base de dados de referência, que haverá de “lançar as bases para acelerar uma pesquisa sobre as doenças infecciosas antes impossível sem esse recurso”.
O Projeto do Microbioma Humano vem ajudando os cientistas na identificação de muitas espécies de micro-organismos e na definição das partes do corpo humano que eles colonizam. Mas, para compreender o que dá errado quando ficamos doentes, os pesquisadores precisarão determinar de que maneira esses organismos interagem uns com os outros, e conosco.
Mal se passa uma semana sem um novo simpósio, um suplemento especial de publicação científica ou o anúncio da subvenção a uma nova pesquisa destinados a decifrar o papel das bactérias em inúmeras doenças. “Estamos naquele período de ouro inicial, marcado pela euforia e o entusiasmo”, afirma David A. Relman, professor de medicina, microbiologia e imunologia na Escola de Medicina da Universidade de Stanford. Relman foi o primeiro a sequenciar os genomas de uma comunidade de bactérias humanas – por acaso, colhidas na sua própria boca. “O mesmo acontece em todas as ciências que começam a emergir. Eu vivo tentando injetar alguma dose de moderação, mas sem querer abafar o entusiasmo de um momento realmente animador. Até aqui, porém, são relativamente raras as circunstâncias em que algum paciente possa se beneficiar de tudo isso.”
Relman afirma que nosso bioma é uma rede complexa e dinâmica que, a despeito de sua importância, permanece mal conhecida. “Precisamos parar de ver a medicina como uma guerra entre os nossos corpos e os agentes patogênicos invasores”, afirmou ele quando nos encontramos em seu gabinete, no Hospital de Veteranos em Palo Alto, onde chefia o departamento de doenças infecciosas. “O tipo de abordagem que propomos tem mais em comum com a administração de um parque do que com a nossa prática atual de tentar matar os micróbios da maneira mais ampla possível.”
Visto dessa maneira, o corpo humano se revela um ecossistema vasto e altamente mutável – cada um de nós lembraria antes uma fazenda que um indivíduo produzido em rigorosa obediência a um manual de instruções genéticas. A medicina se converte numa questão de cultivo, como se nossas células bacterianas fossem lavouras plantadas. Quando essa comunidade é perturbada, pela presença de um excesso de bactérias como a S. mutans, que causa a cárie, ou, como é mais frequente, devido ao uso de algum poderoso antibiótico de amplo espectro, problemas podem surgir. No começo do ano passado, uma equipe chefiada por Susan Lynch, professora-associada de medicina da Universidade da Califórnia em São Francisco (UCFS), concluiu que a bactéria Lactobacillus sakei pode ser singularmente capaz de deter as penosas sinusites que afetam 30 milhões de americanos por ano; a incidência da sinusite é muito menor entre pessoas que conservam esse determinado micro-organismo, normalmente eliminado pelos antibióticos. Em agosto, Ilseung Cho, da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, publicou um estudo mostrando que os antibióticos erradicavam certas bactérias, normalmente encontradas no sistema digestivo dos camundongos, que ajudam esses animais a metabolizar com eficiência as calorias ingeridas; sem os micróbios, os camundongos absorviam mais calorias a partir da mesma quantidade de alimento, e se tornavam obesos em pouco tempo.
Qualquer pessoa que já tenha tido uma horta sabe que os herbicidas podem ajudá-lo a se livrar rapidamente das ervas daninhas; no entanto, se forem usados da maneira errada, também podem destruir os alimentos plantados. Os antibióticos, agora está claro, são como herbicidas para seres humanos. Do ponto de vista médico são absolutamente vitais, mas também podem afetar nosso ecossistema interno de várias maneiras – tanto ligeiras quanto importantes –, as quais uma década atrás eram inimagináveis.
Pelo menos desde a invenção do microscópio, livrar nossos corpos dos micro-organismos nocivos é um dos objetivos da medicina, e a introdução dos antibióticos, conquista médica que marcou o século XX, ajudou a consolidar essa ideia. Drogas como a penicilina e a estreptomicina salvaram milhões de vidas, e acabamos imaginando o mundo como um lugar coalhado de germes que precisam ser destruídos. Essa germofobia gera grandes lucros nos Estados Unidos: o mercado para produtos antibacterianos – desinfetantes, géis de limpeza, tábuas de cortar esterilizáveis e cotonetes – aumenta a cada ano. Até a Disney pôs à venda uma marca própria de lenços pré-umedecidos para limpeza das mãos, assim como o time de beisebol dos New York Yankees.
É difícil questionar o impacto positivo dessa ofensiva. Um americano nascido em 1930 tinha a expectativa de morrer aos 60 anos; hoje, a expectativa de vida de um bebê é de quase 79 anos. São muitos os motivos para esse aumento incrivelmente rápido na longevidade: a derrota de doenças infecciosas como a varíola e a poliomielite; melhores padrões de nutrição; a distribuição de água limpa; e, o que talvez seja o mais importante, o advento dos antibióticos. Quando chega aos 18 anos de idade, o americano médio já terá consumido de 10 a 20 sessões de antibióticos.
Quarenta e três milhões de sessões foram receitadas apenas em 2010, e em todo o mundo desenvolvido as crianças, em média, são submetidas a pelo menos um desses tratamentos a cada dois anos. “Essas drogas já salvaram inúmeras vidas, e é muito importante não perder esse fato de vista”, diz Blaser. “Sempre que antibióticos são usados, porém, produz-se algum dano colateral. E só agora estamos descobrindo o quanto esse dano pode ser grave.”
No começo do século XX, a H. pylori se encontrava no estômago de praticamente todas as pessoas do planeta. E embora a bactéria continue prevalente nos países em desenvolvimento, onde as condições sanitárias são muitas vezes deficientes e o uso de antibióticos é menos comum, só é encontrada em 5% das crianças nascidas nos Estados Unidos – uma guinada dramática, que se repete em muitos outros países ocidentais. A relação entre a H. pylori e doenças é bem documentada, mas é raro que alguém desenvolva uma úlcera ou um câncer no estômago nos primeiros anos de vida. Durante os últimos quinze anos, porém, Blaser e um grupo cada vez maior de seus colegas vêm mostrando que a H. pylori desempenha funções benéficas que começam ainda na primeira infância. Com isso, transformaram essa bactéria em vias de extinção num símbolo da cautela que precisamos tomar quando interferimos com as comunidades ecológicas que trazemos dentro de nós. “E este só é o exemplo que se conhece melhor”, comenta Blaser. A H. pylori é uma residente das nossas entranhas com múltiplas características, e um sinal claro de que o microbioma é dinâmico, com constituintes e efeitos que vão mudando ao longo do tempo.
Para algumas pessoas, especialmente à medida que envelhecem, a H. pylori representa uma séria ameaça. Mas na maioria dos casos é apenas uma comensal, termo que os cientistas empregam para descrever organismos que se beneficiam do fato de viver em seus hospedeiros – no caso, nós – sem produzir qualquer efeito adverso. “Existem circunstâncias específicas em que a Helicobacter pode ser nociva”, diz Blaser, “mas sem ela nossa situação é bem pior.”
E Blaser aponta a incidência da asma, que aumentou rapidamente no mundo desenvolvido depois da Segunda Guerra Mundial, quando os antibióticos se tornaram amplamente disponíveis. Esse aumento parece corresponder a um declínio igualmente agudo na proporção de crianças infectadas com a H. pylori. Coincidências como essa não são raras na biologia. (Campo em que as causas são muitas vezes confundidas com as correlações. Atribui-se erradamente às vacinas a culpa pelo autismo, por exemplo, porque ele costuma se manifestar na época em que a maioria das crianças recebe sua maior concentração de vacinas. Ainda assim, nunca foi demonstrada a existência de qualquer relação de causa e efeito entre as duas coisas.)
Blaser conduziu um estudo mais amplo e mais específico. Em 2007, depois de analisar a Terceira Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, de que participaram mais de 7 500 americanos adultos, Blaser e seu colega da NYU, Yu Chen, constataram que as pessoas que não apresentavam a H. pylori no tubo digestivo tinham uma probabilidade muito maior de ter sofrido de asma na infância. Em 2011, Anne Müller, do Instituto de Pesquisa Molecular sobre o Câncer da Universidade de Zurique, foi ainda além. Infectou metade de um grupo de camundongos com a H. pylori, e depois expôs a totalidade do grupo a ácaros e outros alérgenos poderosos, num esforço para induzir a inflamação celular característica da asma. Em todos os casos, os camundongos sem a bactéria adoeceram, e aqueles que a carregavam não.
Conhecem-se indícios igualmente convincentes de que a destruição da H. pylori poderia afetar o metabolismo de maneiras que aumentam o risco de obesidade. Vários grupos de pesquisa, inclusive o chefiado por Blaser, encontraram uma forte relação nos seres humanos entre essa bactéria e dois hormônios estomacais, a grelina e a leptina, que desempenham um papel central na regulação do nosso apetite. Como ocorre com muitos hormônios, esses dois funcionam em equipe, estimulando-nos a comer quando temos fome e a parar quando enchemos o estômago. Quanto mais grelina a pessoa tiver na corrente sanguínea, mais provável é que coma além da conta. E a leptina funciona no sentido contrário, suprimindo o apetite e aumentando os níveis de energia. Nas pessoas com o estômago infectado com a H. pylori, a grelina se torna muito menos detectável depois de uma refeição. Nas outras, os níveis do hormônio permanecem altos, e os efeitos são evidentes. “Toda uma geração de crianças está crescendo sem a H. pylori para regular seus níveis de grelina”, revelou-me Blaser. E esses resultados sugerem que o estímulo a parar de comer nunca chega ao cérebro. Sem o controle desses hormônios, fica muito mais difícil regular o peso.
Em seguida, uma equipe do laboratório de Blaser forneceu antibióticos a camundongos em dosagens compatíveis com as usadas para o tratamento de infecções de ouvido em crianças. A dieta dos camundongos permaneceu inalterada, mas, em comparação com um grupo de controle, seu ganho de peso foi considerável. E essa descoberta, aliás, não foi uma surpresa completa. Cerca de três quartos dos antibióticos consumidos nos Estados Unidos são dados a frangos, bois e porcos, não para tratar alguma doença, mas como suplemento dietético para promover uma engorda mais rápida do animal, expediente que rende um bom dinheiro à indústria da carne: quanto mais cedo os animais chegam ao peso de mercado, mais depressa são abatidos e vendidos. Até pouco tempo atrás, as razões bioquímicas para esse ganho de peso, com consequências perturbadoras sobre os seres humanos, eram pouco claras. Mas os novos dados sugerem que mesmo uma pequena exposição aos antibióticos já afeta as bactérias do trato digestivo desses animais, o que pode alterar sua capacidade de metabolizar os nutrientes de maneira adequada. Como resultado, concluíram os pesquisadores, tanto sua porcentagem de gordura corpórea quanto seu peso apresentam um aumento significativo.
Em 2009, Blaser se associou ao microbiólogo Stanley Falkow, da Universidade Stanford, para escrever um ensaio intitulado “Quais as consequências do desaparecimento da microbiota humana?”, publicado na revista Nature Reviews Microbiology. Desde então esse estudo vem sendo citado com grande frequência, principalmente porque os dois autores apresentam uma resposta impressionante para sua própria pergunta. Ao longo dos últimos 150 milhões de anos, quase todos os mamíferos sempre adquiriram seus microbiomas na passagem natal pela vagina da mãe, colonizada por uma enorme gama de espécies bacterianas. As crianças nascidas de cesariana carecem de muitos micro-organismos normalmente transferidos de mãe para filho. No ano passado, cerca de um terço das 4 milhões de crianças nascidas nos Estados Unidos veio ao mundo em parto cesariano. Na China, a proporção foi mais próxima de 50%. [No Brasil, foram 52% em 2010, sendo 82% na rede privada e 27% na rede pública.] A incidência de alergias e de asma é muito mais alta entre essas crianças do que entre crianças nascidas de parto vaginal. Além do mais, essa perda da diversidade microbiana parece ser cumulativa. “Da maneira como vivemos hoje, estamos perdendo esses micro-organismos, e cada geração já chega com menos do que a anterior”, diz Blaser.
Ele aponta o caso teórico de uma mulher nascida no início do século XX, possuindo 10 mil espécies de bactérias. A partir da década de 30, com o advento dos antibióticos, a maioria das pessoas passou a receber duas sessões de antibióticos em suas vidas. Depois da guerra, a higiene também melhorou. O resultado foi uma redução do número de espécies bacterianas do nosso microbioma. “Digamos que a mulher tenha passado a ter apenas 9 950 espécies”, continua ele. “E então ela tem uma filha com a probabilidade de tomar muito mais antibióticos do que a mãe tomou. A filha já começa a vida com menos espécies, e perderá um número maior delas ao longo da vida.” Projetando essa tendência adiante em algumas gerações, as implicações são inquietantes. “Há coisas demais acontecendo ao mesmo tempo”, diz ele. “O aumento da obesidade, das doenças celíacas, da asma, das síndromes alérgicas e da diabete tipo 1. Os maus hábitos alimentares não bastam para explicar a explosão da obesidade em escala mundial.”
Blaser me fez percorrer os viveiros de seu laboratório, onde mais de uma dúzia de estudantes, pesquisadores, bolsistas de pós-doutorado e colegas do Japão, do México e da Suécia, entre outros países, trabalham nessa questão. Vi no computador imagens detalhadas de ratos tão grandes que pareciam aqueles balões infláveis nas ruas de Nova York no desfile de Ação de Graças; todos tinham recebido doses baixas mas constantes de antibióticos. “Não estamos falando de doenças que tiveram um aumento de 10%”, diz Blaser. “A incidência delas está duplicando, triplicando, quadruplicando. A cada geração, aumenta o impacto sobre o microbioma dos primeiros anos de vida. E isso nos torna cada vez menos competentes para metabolizar o que comemos.”
Andrew Goldberg, diretor de rinologia e cirurgia dos seios da face no Centro Médico da Universidade da Califórnia em São Francisco, gosta de contar uma história sobre a cera dos ouvidos. Certo dia em 1986, quando tinha acabado de começar uma residência na Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh, um homem entrou na clínica. O paciente já tinha estado lá várias vezes, sempre pelo mesmo motivo – uma infecção crônica no ouvido esquerdo. Males persistentes como esse são comuns, embora costumem ocorrer nos dois ouvidos.
“Era um desses casos refratários”, contou-me Goldberg recentemente. “Os médicos tentaram de tudo: vários tipos de antibióticos, gotas fungicidas, o diabo. Eram as medidas recomendadas, e tentamos todas as possibilidades.” Goldberg e eu passamos uma tarde fria de agosto conversando num café próximo ao escritório dele, no prédio de ciências clínicas da UCSF. Ele fala num tom quase pesaroso, como se rememorasse alguma prática antiquada do tipo da sangria. Apesar de todos os tratamentos, o ouvido do homem não melhorava. Mas naquele dia ele entrou na clínica sorrindo, e Goldberg logo pôde ver por quê: o ouvido estava ótimo. “Faz anos que não me sinto tão bem”, comentou o paciente. “Quer saber o que eu fiz?” O médico imaginava que alguma das drogas tivesse finalmente cumprido sua finalidade, mas não: “Tirei um pouco de cera do ouvido bom e pus no ouvido ruim, e em poucos dias fiquei bom”, contou ele.
“Achei que ele era maluco”, comentou Goldberg. E nunca mais se lembrou daquela conversa – até alguns anos atrás, quando começou a investigar as causas das infecções de ouvido mais comuns. Goldberg explicou que a cera do ouvido contém muitas espécies bacterianas, e que os antibióticos podem ter destruído uma ou mais delas no ouvido afetado do paciente. “Na verdade foi um estalo, um momento de eureca”, diz ele, rindo. “E eu percebi que esse paciente era uma experiência perfeita: um ouvido são e outro doente separados por uma cabeça. E o paciente não era louco; ele estava certo. É óbvio que havia alguma coisa protegendo um dos ouvidos, e ele transferiu isso para o outro ouvido. Não foram os remédios os responsáveis pela cura. Ele se curou sozinho.”
Goldberg se preocupa com a dependência dos antibióticos nos tempos modernos. “Adotamos sempre essa política de terra arrasada”, continua ele. Uma de suas especialidades como pesquisador é a sinusite crônica, o quinto motivo mais comum para o consumo de antibióticos pelos seres humanos. “O custo anual para a economia é de mais de 2 bilhões de dólares”, diz ele. Goldberg e seus associados na UCFS descobriram que as passagens sinusais de uma pessoa com sinusite são tipicamente habitadas por cerca de 900 cepas de bactérias. E o impressionante é que as pessoas saudáveis apresentam um número maior – 1 200 espécies. “Acreditamos que outros elementos da comunidade bacteriana mantêm a infecção sob controle”, disse Goldberg. “Esses micro-organismos seriam o equivalente da cera de ouvido boa. E nos últimos oitenta anos, fizemos o possível para eliminar todos eles.”
Mais algum tempo ainda será necessário, além de muitas pesquisas, para que as bactérias possam vir a ser empregadas como remédio. Mas alguns clínicos, como Katherine Lemon, mal podem esperar. Lemon é microbióloga e participa da equipe do Instituto Forsythe, em Cambridge, Massachusetts, além de especialista em doenças infecciosas no Hospital Infantil de Boston e professora-assistente de pediatria na Faculdade de Medicina de Harvard. Ao lado de Michael Fischbach, professor-assistente do Departamento de Bioengenharia e Ciências Terapêuticas da UCSF, e outros, ela vem tentando entender por que as bactérias infectam certas pessoas e não outras. Um dos seus projetos gira em torno de um fato curioso: 30% dos americanos são vulneráveis a uma vasta gama de infecções, ao que tudo indica, por terem colônias da bactéria Staphylococcus aureus em suas narinas. Mas 70% da população não hospeda esse micróbio; a doutora Lemon está tentando descobrir de que maneira as bactérias “boas” conseguem manter de fora o estafilococo.
“Um dia desses – não amanhã, mas espero que num futuro próximo –, iremos colher uma amostra do microbioma de toda criança na primeira vez em que for trazida ao médico pelos pais”, diz ela. A doutora Lemon, de 47 anos, tem um rosto quadrado e cabelos grisalhos que parecem cair o tempo todo nos seus olhos. Conversávamos no seu consultório no Instituto Forsyth, fundado mais de 100 anos atrás como clínica dentária para crianças desfavorecidas, mas que, desde então, expandiu muito o seu raio de ação. “Vamos continuar fazendo o que já é feito hoje: colher sangue, administrar vacinas, pedir os exames costumeiros”, disse ela. “Mas teremos essa valiosa ferramenta a mais, que vai nos possibilitar entender como se desenvolvem as comunidades microbianas das crianças.”
“E já posso imaginar uma conversa com os pais”, continua ela, “em que o pediatra diga: ‘O exame de sangue da sua filha está ótimo. Ela está crescendo de acordo com todos os parâmetros, e tudo parece perfeito. Mas diante do microbioma do intestino dela, e diante da história de doenças intestinais inflamatórias na família, prefiro receitar um probiótico que pode ajudar a povoar o sistema digestivo com a combinação adequada de micróbios.’” Para tanto, é claro, a doutora Lemon e outros cientistas precisarão antes chegar a um acordo quanto ao que seja um microbioma saudável. Como as bactérias contidas em nossos corpos mudam ao longo da nossa vida, essa tarefa não é simples.
Há dois anos, pesquisadores chefiados por Peer Bork, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular, sediado em Heidelberg, descobriram que as pessoas podem ser classificadas pelo tipo de espécies bacterianas que dominam suas tripas. O grupo descobriu que os seres humanos se dividem em três categorias – chamadas enterótipos – sem qualquer correlação com idade, raça ou gênero. O achado, análogo à descoberta, 100 anos atrás, de que existem quatro tipos de sangue, poderá mais adiante levar à criação de tratamentos. “Algumas coisas já ficaram bastante óbvias”, declarou Bork ao New York Times quando a pesquisa foi publicada. “Os médicos poderão adequar as dietas ou as drogas receitadas ao enterótipo do paciente.” E acrescentou ainda que, em vez de prescrever antibióticos, o médico poderá, com base nessas categorias, restaurar as bactérias que tenham sido eliminadas de seus organismos. Até 40% das crianças tratadas com antibióticos de largo espectro desenvolvem uma condição conhecida como diarreia pediátrica associada ao uso de antibióticos. Vários estudos clínicos mostraram que o uso de probióticos durante o tratamento com antibióticos pode evitar esse mal.
“O trabalho ainda está no começo, mas é muito promissor”, disse-me a doutora Lemon. “E a pesquisa promete ainda mais em outras áreas.” Cerca de 10% das pessoas carregam uma bactéria chamada Clostridium difficile. Normalmente, essa população é mantida sob controle por outros residentes dos intestinos. Quando essas outras bactérias são eliminadas por antibióticos, porém, a C. difficile pode ter uma proliferação explosiva, causando diarreia grave e uma inflamação letal do cólon. Quase toda infecção por C. difficile surge em decorrência de um tratamento com antibióticos, e a incidência aumentou muito nos Estados Unidos nos últimos anos. A infecção provoca dezenas de milhares de mortes no mundo, e centenas de milhares de casos entre pacientes hospitalares. A maioria deles se recupera; muitos ainda demandam sessões adicionais de antibióticos. Em alguns casos, a destruição do microbioma é tão devastadora que nenhum tratamento parece dar jeito. “Esses pacientes enfrentam um sofrimento terrível”, disse-me a doutora Lemon. “A dor é intensa e, na verdade, a única coisa a fazer é tentar tratar a doença a cada vez que ela venha a ocorrer.”
Há pouco tempo, seja por desespero ou qualquer outro motivo, alguns pesquisadores recorreram a um tratamento extremo: o transplante fecal. Os médicos colhem bactérias fecais em doadores saudáveis – geralmente membros da família – e as depositam no intestino do paciente, habitualmente durante uma colonoscopia. Até hoje as experiências foram poucas, mas com resultados espetaculares. Num dos estudos, todos os 34 receptores foram curados; eram casos em que todas as demais abordagens tinham fracassado. Outras experiências relatam taxas de sucesso superiores a 80%. “Há obviamente outras doenças que poderiam ser suscetíveis a esse tipo de terapia microbiana”, diz a doutora Lemon; entre elas, menciona a doença inflamatória do intestino, alergias e as infecções recorrentes do ouvido. A esperança é de que um dia os pesquisadores venham a tratar as infecções bacterianas com antibióticos altamente específicos, recompondo depois nosso ecossistema danificado com probióticos – cepas de bactérias que poderiam figurar como substitutas no equilíbrio de nosso ecossistema interno. Um estudo, feito com ratos, mostrou que os efeitos colaterais tóxicos de uma droga usada para tratar o câncer do cólon são atenuados pelo bloqueio de uma determinada enzima bacteriana. “É muito promissor”, contou-me a doutora Lemon. “Mas precisamos tomar todo o cuidado para confirmar os resultados, sempre que parecem tão bons assim.”
No meio de uma noite, já tarde, enquanto zapeava por canais de tevê, deparei-me com o anúncio de um probiótico chamado Culturelle. Depois de uma frase preliminar – Bacteria is beautiful –, o anúncio mostra fregueses satisfeitos que atestam o alívio “incrível” que obtiveram da diarreia, da constipação e de outros problemas digestivos. E isso, sugere o fabricante, porque Culturelle contém “Lactobacillus GG, a bactéria do bem: testes clínicos demonstram que ela melhora sua saúde digestiva.”
As promessas da pesquisa do microbioma residem em grande parte no futuro dos probióticos, mas até aqui esses tratamentos são mais úteis como ferramenta de pesquisa do que como prática médica. Mas isso não impede a ação do comércio oportunista. As vendas de alimentos e suplementos probióticos quadruplicaram entre 1998 e 2012, e estima-se que vão crescer ainda mais depressa nos próximos anos. Hoje, é quase impossível entrar num mercado americano sem esbarrar em algum produto descrito como “probiótico”. (Na loja próxima à minha casa, por exemplo, encontram-se a Ultimate Flora Plus Fiber, do fabricante Renew Life, para alívio da digestão, cuja caixa afirma conter 10 bilhões de culturas vivas em cada cápsula; a Ultimate Flora Adult Formula, com 15 bilhões de culturas vivas por cápsula; e a Ultimate Flora Critical Care, com 50 bilhões de culturas numa única pílula.) “Tenho muita esperança no futuro dos probióticos”, disse-me Blaser. “Mas eles precisam ter base científica. Os produtos de hoje são 99% publicidade.”
O anúncio de Culturelle afirma ter sido demonstrado que seu ingrediente ativo, o Lactobacillus GG, “sobrevive aos ácidos estomacais que destroem as bactérias boas e consegue aderir com sucesso à parede intestinal, onde é mais necessário”. Estudos indicam que o Lactobacillus GG é uma bactéria “boa” – quase sempre. Mas a relação entre os seres humanos e nossos inquilinos microbianos nunca é simples. A Academia Americana de Microbiologia, por exemplo, informa que o Lactobacillus GG parece reduzir o risco de eczema em bebês, mas também pode agravar a situação de pessoas afetadas pela doença de Crohn e, em casos raros, provocar a endocardite, uma inflamação potencialmente letal das paredes internas do coração.
Mais adiante, pode vir a ser possível restaurar a saúde de um microbioma devastado com o simples gesto de engolir uma cápsula abarrotada de bilhões de células bacterianas, ou tomando iogurte. No momento, porém, nenhum dos probióticos à venda nos Estados Unidos foi aprovado como medicamento; em lugar disso, os probióticos são comercializados como suplementos dietéticos ou alimentos, como alguns iogurtes. Isso permite aos fabricantes de suplementos afirmarem praticamente qualquer coisa sobre os benefícios de seus produtos, contanto que a embalagem contenha, geralmente em letras mínimas, a advertência: “As afirmações aqui contidas não foram avaliadas pela Food and Drug Administration. Este produto não pretende diagnosticar, tratar, curar ou evitar qualquer enfermidade.”
Essa ampla tolerância resulta numa escassa orientação para os consumidores. Joseph Mercola mantém um dos sites mais populares da internet sobre saúde alternativa, e é especialmente obstinado em sua defesa dos probióticos. Sem apresentar qualquer prova científica, seu site afirma aos clientes em potencial que, comprando seu Complete Probiotics e tomando duas cápsulas “de quinze a trinta minutos antes do café da manhã”, você dará a “mais de 70 bilhões de unidades formadoras de colônias o tempo de preparar seu sistema digestivo para o que irá comer”. O Complete Probiotics contém dez cepas de bactérias, e a lógica de Mercola, dominante no caso de muitos outros produtores, parece ser a de que, se cada uma das cepas é benéfica em si, o benefício será muito mais poderoso se vierem combinadas com outras.
“Este argumento é falacioso, e potencialmente muito problemático”, disse-me Michael Fischbach, da UCFS. Ele assinala que, embora alguns antibióticos, quando associados, possam realçar a eficácia uns dos outros, o contrário também acontece: alguns remédios comuns tornam-se letais quando combinados entre si. “A terapia baseada nas células bacterianas só pode decolar quando os médicos tiverem certeza de poder prescrevê-las, sem problema, como medicamentos”, diz Fischbach. “Por enquanto, os padrões observados nos testes são lamentavelmente baixos. Se esperamos que o conhecimento adquirido sobre o microbioma transforme a saúde humana, esses resultados precisam mudar. Caso contrário, os probióticos irão se reduzir ao óleo de cobra vendido pelos vigaristas.”
Em outubro de 2012, Martin Blaser dirigiu-se a uma sessão plenária da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas, organização que já comandou. O título de sua conferência, “A ameaça dos antibióticos”, teria provocado gargalhadas e espanto vinte anos antes. Ainda hoje, é fácil interpretar mal sua mensagem. “Somos um caldo interminavelmente variável de micróbios essenciais”, diz-me ele. “E eles funcionam de maneiras que ainda não entendemos. Os antibióticos são tão milagrosos que fomos induzidos ao erro de crer que não têm contraindicação. Mas têm: matam as bactérias boas junto com as más.” A implicação é de que as bactérias boas atuam na verdade como antibióticos – e muitas vezes são mais eficazes do que os que compramos na farmácia. Mas o microbioma nunca é estático nem simples; muitas vezes, consiste num verdadeiro campo de batalha entre espécies. A difícil tarefa da medicina é mapear e controlar esse campo de batalha.
Se um micróbio como a H. pylori é perigoso ou benéfico, isso vai sempre depender do contexto ecológico em que é encontrado. Em 1998, o British Medical Journal pediu a Blaser que mandasse sua contribuição para uma série especial dedicada ao futuro da medicina. Em seu artigo, ele diz que um dia os médicos começariam a ministrar de novo a Helicobacter pylori às crianças – para que elas a contivessem, como ocorria com nossos ancestrais. “Hoje, estou mais convencido disso do que nunca”, diz ele. “Precisaremos cuidar para que as mulheres grávidas abriguem as comunidades bacterianas adequadas para transmiti-las aos filhos. Se isso não ocorrer, precisaremos ministrá-las aos bebês depois do nascimento. E mais tarde, no caso de certas bactérias, como a Helicobacter, quando chegarem à idade de 30 ou 40 anos poderão ir a uma clínica e providenciar sua erradicação.” Assim, as pessoas poderão gozar dos benefícios desses micro-organismos no começo da vida sem precisar pagar um preço por isso com o avanço da idade. “Isso há de ser uma parte importante do futuro da medicina”, diz ele. “É só o que faz sentido.”
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