A polonesa Czesława Kwoka aos 14 anos, fotografada no campo de concentração de Auschwitz: de todas as fotos colorizadas pela mineira Marina Amaral, as da jovem assassinada em 1943 foram as que mais a impactaram. “Essas imagens transformaram minha mente”, disse a artista digital CREDITO: AUSCHWITZ MEMORIAL & MUSEUM _MARINA AMARAL
Os olhos eram azuis
Como Marina Amaral passou a colorizar fotos históricas e descobriu o seu autismo
Filipe Vilicic | Edição 168, Setembro 2020
O judeu polonês Rachmil Hakman foi preso pelos nazistas em maio de 1942 e levado de trem para Auschwitz. Tinha 17 anos. Já havia anoitecido quando ele desembarcou no campo de concentração, com o tio, Yisrael, e centenas de outras pessoas. Todas passaram a noite sentadas no chão de um dos 28 prédios do vasto complexo erguido para o trabalho forçado e o extermínio. Ao raiar do dia, os nazistas começaram a tatuar algarismos no antebraço dos prisioneiros, e Hakman se viu transformado no número 37495. Depois, os presos foram conduzidos a Birkenau, um campo anexo, onde ficavam as quatro maiores câmaras de gás. Mais de 1 milhão de pessoas seriam mortas ali.
Hakman sobreviveu. Em janeiro do ano passado, aos 93 anos, recebeu em sua casa em Beverly Hills, o reduto de milionários na Califórnia, o cinegrafista norte-americano Nick Owen, que queria lhe mostrar uma foto e fazer uma entrevista. O retrato original, em preto e branco, Hakman conhecia: era sua foto de identificação feita a mando da Gestapo, logo depois da chegada ao campo de concentração. Inédito e extraordinário para ele foi o fato de a imagem exibida por Owen ser colorida. Depois de tantas décadas, o sobrevivente de Auschwitz deparou com os seus melancólicos olhos azul-esverdeados da juventude e a camisa azul-clara com a qual viveu o período mais trágico do século XX.
A colorização da foto, com acabamento surpreendente, havia sido feita por uma brasileira, a artista digital Marina Amaral, belo-horizontina de 26 anos, que decidiu sobre as cores depois de analisar, com a ajuda do historiador norte-americano Waitman Wade Beorn, documentos dos arquivos do Museu Auschwitz-Birkenau, memorial construído no local do extermínio.
Hakman conseguiu escapar dos nazistas no dia da rendição da Alemanha, em 8 de maio de 1945. Aos 20 anos, regressou à cidade natal, Radom, a cerca de 100 km de Varsóvia, à procura dos familiares. Descobriu que seus pais e oito dos nove irmãos haviam sido mortos. Restavam vivos apenas sua irmã Sura e o tio Yisrael, o mesmo que estivera ao seu lado em Auschwitz. Em 1949, ele imigrou para os Estados Unidos, onde adotou o prenome Ralph e tornou-se um empresário bem-sucedido. O seu retrato de juventude é uma das imagens restauradas e colorizadas por Amaral para o projeto Faces of Auschwitz, iniciado em 2018. “Um de meus objetivos é devolver a humanidade tirada da história dos sobreviventes”, disse a artista digital à piauí.
Mais conhecida fora do Brasil do que em seu próprio país, Amaral foi chamada pela revista Wired, em 2016, de “mestre da colorização”, por seu “apuro obsessivo” ao colorizar fotos antigas. Seu trabalho também tem chamado a atenção de historiadores e pesquisadores, em especial anglo-saxões. “A preocupação de Marina com os detalhes é o que torna a sua obra muito superior a similares. Ela dedica o tempo necessário a pesquisas sobre cada tema, e isso se reflete no resultado”, afirmou a historiadora Lindsey Fitzharris, doutora em história da medicina pela Universidade de Oxford e autora do livro Medicina dos Horrores, sobre os cirurgiões do século XIX.
Amaral já publicou dois livros no exterior, sempre em parceria com o historiador e apresentador de tevê Dan Jones. O primeiro, The Colour of Time: A New History of the World, 1850-1960 (A cor do tempo: Uma nova história do mundo, 1850-1960), lançado em 2018, vendeu mais de 100 mil cópias e foi traduzido para doze idiomas, entre eles chinês, japonês, coreano, russo e grego. O êxito comercial abriu para a colorista a possibilidade de se envolver em uma série de empreitadas. Além de estar preparando novos livros, ela tem colorizado imagens antigas para emissoras de tevê como CNN, History e PBS, e também atende algumas encomendas particulares. Em 2018, o conde Charles Spencer, irmão da princesa Diana, a contratou para pintar digitalmente um retrato de seu pai, Edward John Spencer, morto em 1992 (Amaral não quis revelar quanto cobrou pelo trabalho).
A predileção da brasileira, porém, são as imagens que julga ter impacto social e político, como o projeto Faces of Auschwitz, que era de início apenas um site com fotos de prisioneiros do campo de concentração e agora ampliou-se para um documentário de longa-metragem.
Marina Amaral se esquece das horas e do mundo quando está no computador colorizando fotos, no apartamento onde vive desde a infância com a mãe, Érica, de 49 anos, e a avó, Maria Elisa, de 79, em Belo Horizonte. Ela mergulha no passado, sem se preocupar com o resto do mundo. “Já quase não saio, tenho poucos amigos e não tenho problema em ficar o dia inteiro sozinha no escritório”, ela contou. “Não sou espalhafatosa e até tive de aprender a conviver mais com as pessoas conforme meu trabalho teve sucesso e comecei a ganhar seguidores nas redes sociais.” O resultado é uma produção enorme de imagens, sem falar nos posts que escreve para o Twitter (tem quase 220 mil seguidores), Instagram (65 mil) e Facebook (43 mil). “É comum eu passar a noite em claro e esquecer de tarefas simples, como dormir ou comer.” Ela costuma colorizar ao menos uma foto por dia – em quase cinco anos calcula ter feito cerca de 2 mil. A essa perseverança ela dá o nome de “hiperfoco”.
Em 11 de julho último, Amaral revelou no Twitter ter esclarecido a razão desse jeito de ser e de outras peculiaridades de seu comportamento, como a tendência antissocial e as crises de ansiedade. “Descobri recentemente que estou no espectro do autismo”, ela escreveu em um post. “Isso traz algumas explicações e muitas dúvidas. Explica meu hiperfoco, provavelmente a maior razão pela qual desenvolvi a minha técnica de colorização e ouvi muitas vezes que ‘tenho um olho diferente para o detalhe’.”
A descoberta foi feita graças a uma fã de seu trabalho, a jornalista mineira Andréa Werner, uma ativista pelos direitos dos autistas, causa que abraçou desde o nascimento do filho (hoje com 12 anos), que também está no espectro do autismo. O contato entre elas começou no Twitter e evoluiu para uma amizade. “Reparei que Marina não mantinha o olhar fixo nas pessoas, era ansiosa, mas também superdotada, com um talento incrível. Aos poucos apresentei a possibilidade [do autismo] a ela e a convenci a se consultar com uma psiquiatra especializada”, afirmou Werner.
A pandemia do novo coronavírus vitimava mais de mil brasileiros por dia. Amaral persistia na quarentena, zelando também pela avó e pela mãe, sem sair de casa. Por isso resolveu marcar uma consulta por vídeo com a psiquiatra Raquel Del Monde. Elas se falaram por duas horas, e a médica optou inicialmente por rememorar momentos do passado da paciente. “As pessoas que atingem a vida adulta sem um diagnóstico costumam se encaixar na extremidade leve do espectro do autismo”, disse Del Monde à piauí. “Normalmente, foram antes identificadas com condições como TDAH [transtorno de déficit de atenção com hiperatividade], depressão, TOC [transtorno obsessivo-compulsivo] e ansiedade. Descobrir-se é um encontro consigo mesmo, no qual se tem a chance de dar novo significado a vivências passadas, melhorar relacionamentos, buscar por qualidade de vida.”
Foi o caso de Amaral, como ela mesma conta. “Passei por diversos psicólogos e psiquiatras ao longo da vida e recebi diagnósticos de depressão e ansiedade generalizada. A nova descoberta elucidou muitas situações que antes não faziam sentido para mim. Agora consigo compreender com clareza minha personalidade.” Para a colorista, o “sinal mais gritante” do autismo vem das crises de ansiedade que a afetam desde os 3 anos de idade, nos seus cálculos. “É muitas vezes paralisante.” Ela também contou que não consegue se separar “emocionalmente” dos assuntos das fotos com as quais trabalha. “Tenho contato diário com imagens trágicas. Isso gera crises agudas de ansiedade e depressão, sinto-me inclusive fisicamente mal. Necessito de acompanhamento psicológico constante. Impossível passar imune diante do sentimento de olhar as pessoas nas fotos, sofrendo, e não ter como ajudá-las.”
Em episódios de crise, Amaral sofre com fortes enxaquecas, enjoo e tem a sensação de estar com uma “gripe forte”. “Mesmo não sendo fácil, não vou parar de trabalhar. Além de gostar de fazer o que faço, com o tempo passei a ver um motivo maior.” Ela acredita que, quando coloridas por seu pincel virtual, as fotos em preto e branco “despertam maior atenção e levam as pessoas a querer saber mais dos assuntos tratados pela imagem”. Amaral falou que gostaria de tirar vantagem disso para focar em temas que acha importantes para o Brasil e o mundo, como a discussão sobre o racismo e a memória das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
Depois da descoberta de sua condição psíquica, ela cogitou por um momento não se manifestar publicamente acerca do assunto. Porém, mudou de ideia, convencida por Werner e por Del Monde. “Quando uma figura pública se pronuncia, traz visibilidade para o tema. Isso leva as pessoas a terem maior contato com informações corretas, refletirem e reconsiderarem preconceitos que têm em relação aos autistas”, defendeu a psiquiatra.
Amaral disse que sua família aceitou o diagnóstico de maneira “bem natural”. A mãe e a avó já acompanhavam as crises de ansiedade, desde a infância, além da depressão, originada na adolescência. “Quando fiquei sabendo, não foi um choque, mas um alívio, para mim e os mais próximos.” Nada de substancial mudou na sua rotina, fora trocar alguns remédios. E, feitas as contas, o resultado da descoberta foi, para ela, positivo. “Consigo ver a própria vida com mais clareza”, admitiu.
As muitas horas passadas no computador são parte do cotidiano de Amaral desde a adolescência, quando ela manteve um diário digital em formato de blog. Introvertida e reclusa, gostava de assistir a documentários e ler relatos históricos e biografias, motivada pela mãe, que é formada em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas fez carreira como secretária executiva. Amaral era especialmente fascinada pelo Diário de Anne Frank e por Maus, a história em quadrinhos de Art Spiegelman. “Até hoje acho minha vida enfadonha, sempre tive dificuldade de me encaixar, saio de casa raramente, apenas para eventuais encontros com amigos ou passear com um primo adolescente.”
Aos 12 anos, Amaral resolveu fazer um banner para seu blog e descobriu o Photoshop, software de edição de imagens que passou a explorar com entusiasmo. Seis anos depois, “por puro tédio”, segundo ela, tentou colorizar uma foto do general Ulysses S. Grant, herói da Guerra Civil norte-americana e presidente dos Estados Unidos, como haviam feito pessoas num fórum online do qual ela participava. “Escolhi a imagem pela ótima qualidade, boa para trabalhar no Photoshop. Resolvi imitar, tentei, mas não rendeu algo que enchesse os olhos, o resultado foi sem graça.” Ela desistiu do hobby da colorização.
Em 2015, descobriu na internet uma coleção de fotos colorizadas da Segunda Guerra Mundial. “Não lembro quem era o autor, mas ficou evidente para mim como a técnica de colorização havia evoluído, em comparação ao que tinha visto em 2012.” No mesmo site, havia, num comentário, a sugestão para que fossem colorizados outros registros da guerra. “Foi o estopim para transformar a minha prática em obsessão”, contou ela. “Eu me senti compelida a resgatar as histórias das pessoas nas fotos em preto e branco com as quais me deparava. Além disso, logo reparei em minha qualidade, em como os resultados do meu trabalho estavam muito acima dos outros que eu via na internet.”
A fim de desenvolver a técnica, ela começou a comprar livros sobre pintura e a se informar a respeito do uso das cores, enquanto avançava no domínio do Photoshop, tanto por meio de tutoriais achados no YouTube quanto pelo treino diário. No processo de autoaprendizado, passou a pesquisar as técnicas de pintura, em especial as de mestres holandeses, como Rembrandt, Vermeer e Jan Steen. “Considero-me perfeccionista na busca pelo realismo”, afirmou. No início, Amaral trabalhava principalmente com fotos que tinham caído em domínio público, como as da Guerra Civil norte-americana, de personalidades do século XIX e das duas guerras mundiais.
Pouco a pouco, a colorização foi roubando o tempo dedicado ao curso de relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – que ela acabou abandonando. Mas Amaral não vislumbrava nenhum futuro profissional nas fotos colorizadas, e para ela bastava compartilhá-las em seu perfil nas redes sociais.
Entre as imagens da Segunda Guerra Mundial que postou, havia uma de tropas do Canadá em combate na comuna italiana de Campochiaro, em novembro de 1943. A imagem chamou a atenção de tuiteiros canadenses, que a compartilharam, irradiando o nome e o trabalho da belo-horizontina nas redes sociais. Em 5 de agosto de 2016, o historiador Dan Jones, na época titular de uma coluna no jornal Evening Standard, a apresentou aos seus leitores em Londres: “Nerds por história vão apreciar minha artista favorita do momento: a colorista digital brasileira Marina Amaral. A especialidade dela é colorir fotos históricas em preto e branco, dando a elas uma vida nova e fulgurante.”
Conhecido na Grã-Bretanha por seu trabalho de divulgação da história em livros populares e na tevê, Jones havia se deparado com o trabalho de Amaral no Twitter. “Vi diversos historiadores retuitando uma imagem de Lewis Powell, um dos conspiradores por trás do assassinato de Abraham Lincoln, colorizada por Marina. Era deslumbrante e claramente havia sensibilizado pessoas que trabalham com história”, contou. Então, Jones enviou uma mensagem para Amaral, perguntando se ela já tinha livros publicados. Espantou-se ao saber que não havia nenhum e resolveu alertar sua agente literária e sua editora. “Avisei para fazerem contato com ela o mais rápido possível, pois eu tinha certeza que Marina logo se tornaria grande.” A editora britânica Head of Zeus acertou a publicação de um livro com Amaral e propôs que Jones fosse coautor.
O primeiro resultado da parceria, The Colour of Time, saiu em 2018, com duzentas fotos feitas entre os anos 1850 e 1960, todas colorizadas por Amaral, distribuídas em onze capítulos em que Jones faz um relato acessível dos fatos e personagens mais relevantes de cada década. O livro foi best-seller na Inglaterra e na Irlanda, e catapultou o nome de Amaral. Em maio último, a dupla lançou The World Aflame: The Long War, 1914-1945 (O mundo em chamas: A longa guerra, 1914-1945), com vendas majoritariamente online, devido à pandemia, mas que, como o primeiro livro, deverá ter um tour de lançamento na Grã-Bretanha assim que possível. Amaral e Jones já assinaram contrato para uma terceira obra, com retratos colorizados de duzentas feministas da história, inclusive brasileiras.
O “hiperfoco” de Amaral foi um instrumento-chave na criação dos livros. Para escolher as imagens que iria colorizar, ela recorreu ao acervo da Getty Images, sua parceira nos projetos, onde consultou 10 mil fotos do período histórico visado pela dupla de autores. “Antes de chegar às duzentas imagens publicadas em cada obra, colori dezenas e dezenas de outras que foram descartadas por não chegarem ao resultado esperado. Trocamos imagens até na última semana da edição”, disse a colorista.
The World Aflame traz cenas épicas de batalhas da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, como a do Marne (em 1914), Dunquerque (1940), e do Dia D (1944), retratos de figuras históricas, como Charles de Gaulle e Lawrence da Arábia, e de cientistas e artistas, como Alan Turing e Ernest Hemingway. Numa das imagens aparece Carmen Miranda – cabelos pretos presos por um laço branco, salto-alto marrom e um flamejante tomara que caia florido – dançando no teto de um carro conversível azul, cercada pela multidão que comemorava em Los Angeles a rendição do Japão, em 1945.
Uma das fotos que mais exigiu de Amaral foi a imagem terrível de uma fileira de cadáveres de soldados, dispostos em uma vala comum, depois de uma batalha ocorrida durante a Primeira Guerra Mundial, em Cividale del Friuli, na Itália, em 27 de outubro de 1917. “Foram horas ininterruptas de trabalho nessa colorização. Enquanto pincelava as cores, imaginava como era a vida desses soldados antes de eclodir a guerra, como as famílias receberam a notícia das mortes. É possível ver até o violão de um deles na foto, quebrado, no chão”, descreveu.
A decisão de Amaral e Jones de trazer para mais perto do leitor as imagens de atrocidades do passado tem um objetivo, que é o de ligar um alarme sobre a possibilidade de ocorrerem coisas similares em nossa época. “Faço muitos paralelos”, disse ela. “A ascensão do nazismo apresenta elementos identificados ao mundo de hoje, inclusive à atual situação política do Brasil, onde Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura bolsonarista, reproduziu um discurso de Joseph Goebbels [ministro da Propaganda de Hitler] na maior naturalidade. Não dá para ignorar os sinais atuais.”
Desde a eleição de Jair Bolsonaro, a artista digital, que redige a maioria de seus tuítes em inglês, resolveu opinar com maior frequência nas redes sociais sobre questões brasileiras. “Também queria que um Queiroz brotasse aqui do nada pra cuidar da casa e pagar meus boletos”, escreveu, em junho, nesse caso em franco português, aludindo a Fabrício Queiroz, ex-assessor do hoje senador Flavio Bolsonaro, acusado de administrar as “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. “Embora fosse mais confortável manter neutralidade, não seria o correto, nem o honesto”, disse. “Hoje vejo tanto discurso de ódio, descaso com o próximo, falta de diálogo, de compreensão, de civilidade, além da proliferação de movimentos negacionistas e revisionistas. Trabalho todos os dias com temas históricos e sei o quanto essas distorções são perigosas.”
Amaral demonstra certo incômodo por ser ainda pouco conhecida em seu país. Talvez isso ocorra, entretanto, porque só recentemente ela se dedicou a fazer um trabalho mais sólido a partir de imagens brasileiras. Em 2016, colorizou a primeira fotografia com tema nacional – um retrato do imperador Dom Pedro ii no fim de sua vida. Mas sua pesquisa com imagens nacionais não prosperou. Ela afirma que é difícil achar “boas referências na internet” de imagens antigas e que quando as encontra, não estão em domínio público. “E é insuportavelmente burocrático conseguir qualquer coisa com a maioria dos museus e dos arquivos nacionais”, justificou.
Nenhum dos seus dois livros teve até agora uma edição brasileira. “Não acho uma editora aqui com dinheiro para investir no projeto, que é caro para o padrão do mercado, por ser um livro com quase quinhentas páginas, papel grosso, todo colorido. Efeito da crise que atinge o setor no país”, disse a artista digital, cujo principal rendimento vem hoje das vendas dos livros no exterior e do trabalho de colorização de arquivos particulares.
Em setembro de 2019, ela lançou a coletânea online Escravidão no Brasil, 1869, com fotos colorizadas de escravos e ex-escravos feitas por Alberto Henschel, alemão que se radicou no Brasil no fim do século XIX. “Soube dessa série por intermédio de uma funcionária de uma biblioteca alemã que conheceu meu trabalho pelo Twitter.” Como a coleção estava em domínio público, ela escolheu doze fotos para fazer o seu trabalho. Também coloriu imagens do Carnaval carioca fornecidas pelo Arquivo Nacional.
Recentemente, Amaral aproximou-se do jornalista Laurentino Gomes, autor de best-sellers sobre a história brasileira, como Escravidão e a trilogia 1808, 1822 e 1889. Como quase sempre ocorre com ela, o primeiro contato foi pelo Twitter. Quando Gomes lançou Escravidão em Belo Horizonte, em outubro do ano passado, os dois se conheceram pessoalmente. Em dezembro, voltaram a se encontrar na capital mineira. Tomaram café no saguão do hotel e conversaram longamente. “Observo o trabalho de Marina como similar ao meu, pois nós dois queremos apresentar a história por meio de uma linguagem moderna”, disse Gomes. Agora, eles cogitam lançar um livro em coautoria. “Ainda não temos nada concreto, mas o natural seria que fosse em torno do tema escravidão, que é do interesse de nós dois.”
Como Amaral gosta de repetir, seu trabalho também se apoia em certa “licença artística”. Todavia, seu objetivo é obter na colorização a maior exatidão histórica possível. Por isso, a pesquisa que ela faz em arquivos, registros familiares e até certidões de óbitos pode ser mais demorada do que o próprio processo de colorização. “Começo tentando encontrar informações sobre a foto – como, onde e quando foi tirada, o nome do fotógrafo –, todos os detalhes necessários para a reprodução das cores, de forma que se assemelhem ao máximo às verdadeiras. Só depois de montar esse quebra-cabeças é que inicio a colorização em si.” É quando ela ativa também a sua arte. “Em algumas decisões, recorro à licença artística, como ao escolher a tonalidade exata de uma camisa, um vestido ou uma árvore. São informações impossíveis de identificar na escala do cinza, do preto e branco.”
Uma vez obtidas todas as informações, ela usualmente consegue concluir a colorização de uma imagem mais simples em um dia. Cenários complexos, em especial fotografias de guerras, cheios de elementos diferentes, costumam exigir mais tempo. “Se o resultado não fica a contento, como quando não consigo ter certeza sobre a melhor cor para o uniforme de um soldado, ou mesmo se acho que esteticamente o retrato não funcionou em cores, eu descarto de vez o trabalho.”
A arte de colorizar imagens não é novidade. A fotografia foi inventada nas primeiras décadas do século XIX – a data consagrada é 7 de janeiro de 1839, quando foi apresentado à Academia de Ciências da França o aparelho chamado daguerreótipo, criado por Louis Daguerre, a cristalização de todas as tentativas anteriores de se reproduzir a realidade. Desde então, usaram-se os mais variados recursos para colorir as imagens em preto e branco. “Hábeis miniaturistas aplicavam cores sobre a superfície metálica do daguerreótipo”, exemplificou o historiador da fotografia Boris Kossoy, professor da Universidade de São Paulo.
Os avanços na computação favoreceram exponencialmente essa prática. Para o curador Thyago Nogueira, editor-chefe da revista de fotografia Zum, o uso da tecnologia para manipular as fotos é parte de uma evolução tradicional das “imagens técnicas”. “A colorização é fruto da ansiedade em criar formas novas de ver, como se assim se conseguisse esclarecer também novas coisas sobre o que se vê. Hoje, se quer reinterpretar o passado por meio da aplicação de cores, talvez daqui a pouco as pessoas queiram ver em 3D, e depois em realidade virtual”, explicou Nogueira, que é também diretor do departamento de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles.
Kossoy, entretanto, tem reparos à colorização de fotos antigas, que ele considera “um desvio grave” das fontes históricas. “Um documento fotográfico representando determinado aspecto da vida social de uma época, uma vez colorizado, se torna uma ilustração gráfica a partir de uma fotografia. Não é mais um documento fidedigno”, disse. Para o historiador, a introdução de cores altera profundamente o estatuto do registro visual. “Se a fotografia obtida diretamente do objeto já é, em si, uma segunda realidade, ou seja, a realidade da representação, a manipulação profunda exercida sobre esse documento iconográfico o transforma num produto gráfico idealizado destituído de seu valor documental de origem.”
Amaral destaca que a intenção de seu trabalho não é “substituir o material original, muito menos em seu valor documental”, e que sua proposta é “sugerir um ângulo diferente para a interpretação do passado”, no intuito de provocar reflexões sobre temas caros a ela. Mas confusões por causa da colorização podem ocorrer. Em julho de 2017, a equipe de jornalismo televisivo da BBC mostrou a transeuntes em Londres a foto colorizada por Amaral de um jovem bonito, de fartos cabelos louros escuros, vestido com uma camiseta preta de mangas longas – e perguntou a eles: “Quando essa foto foi feita?” Os entrevistados apostaram em anos situados entre 1960 e 2007. Enganaram-se: a foto era de Lewis Powell, que participou da conspiração que matou Lincoln, em 1865, mesmo ano em que foi clicada a imagem.
Laurentino Gomes disse que ficaria feliz em ter, num livro dele, trabalhos de Amaral, como as colorizações das fotos do alemão Henschel. Ressaltou, porém, que acha “importante sempre destacar ao leitor que se trata de uma releitura artística, não um documento original”. Na opinião do jornalista, o mérito da colorista é trazer para perto uma história remota, utilizando uma linguagem familiar a uma geração acostumada ao universo visual, a uma cultura de fotos e vídeos em cores. “Essa mistura dela de artista dos livros com o perfil de tuiteira, instagrammer, somado ao profissionalismo e apuro do trabalho, concede um grande poder de conscientização da história à juventude.”
Aos olhos de Thyago Nogueira, o problema não está em definir se fotos colorizadas são documento ou arte. “Imagens não são estáticas, o passado não é fixo, o valor documental é móvel e pode ser reinterpretado com o passar do tempo, levantando novas discussões”, afirmou. “O interessante é tentar compreender como as camadas acrescentadas à fotografia pelo trabalho de Marina Amaral nos possibilita entender melhor e revelar mais sobre aquela imagem.”
De todas as fotos colorizadas por Amaral, as que mais a impactaram foram os três retratos da polonesa Czesława Kwoka, de 14 anos, feitos possivelmente entre fins de 1942 e começo de 1943. “Essas imagens transformaram minha mente”, disse ela. “Senti imediatamente a necessidade de levar a história dela para mais pessoas.” As fotos, parecidas com as de uma ficha de identificação policial, mostram Kwoka com um uniforme de listras do campo de concentração de Auschwitz, a boca com feridas, os cabelos em desalinho e um pedaço de tecido pregado no peito com o número 26947.
Amaral ficou obcecada por esses retratos, que foram feitos por outro prisioneiro, o fotógrafo polonês Wilhelm Brasse, levado para Auschwitz em 1940 e escalado pela Gestapo para registrar em imagens os presos recém-chegados em três poses: uma de frente e duas de cada lado do perfil. Calcula-se que ele tenha fotografado cerca de 50 mil pessoas. Embora grande parte dos arquivos dos campos tenha sido destruída pelos nazistas, muitas imagens sobreviveram, várias delas em esconderijos improvisados pelos prisioneiros, inclusive Brasse.
Kwoka nasceu em Wólka Złojecka, em uma família católica e foi levada com a mãe para o campo de concentração, durante a ocupação da Polônia. A mãe, de 46 anos, cuja foto Amaral também colorizou, foi assassinada em 18 de fevereiro de 1943. A filha, quase um mês depois, com uma injeção letal.
As pesquisas de Amaral nos registros de óbito do Museu de Auschwitz levaram-na a concluir que os olhos de Kwoka eram azuis e os cabelos, castanho-claros. Em setembro de 2016, ela publicou a foto colorizada no Twitter. Nos 75 anos da morte de Kwoka, em 12 de março de 2018, o Auschwitz Memorial, instalado no campo de extermínio, compartilhou a imagem. A repostagem ultrapassou 40 mil curtidas e 10 mil compartilhamentos, e o rosto de Kwoka ganhou destaque na imprensa mundial.
O empresário e investidor nova-iorquino Michael Frank, descendente de judeus, se deparou com o retrato colorizado no jornal New York Post. “Todas as fotos que eu tinha visto do Holocausto eram em preto e branco. Olhar o azul dos olhos de Czesława me aproximou daquela realidade, como se tivesse ocorrido mais próximo dos dias de hoje”, afirmou. “As cores de alguma forma deram vida à vítima, ao também lhe dar uma história.”
Frank enviou uma mensagem para a brasileira, perguntando se ela planejava colorir outros retratos de sobreviventes. Amaral disse que sim e falou de seus planos para o projeto Faces of Auschwitz. Ela já havia conseguido acesso ao catálogo do Auschwitz Memorial, com 38 916 retratos, e Frank resolveu arcar com os custos de um site, com as histórias das vítimas e suas fotos. Após uma visita conjunta ao campo de concentração, a dupla decidiu que valeria a pena fazer um filme sobre Auschwitz.
Durante três dias, Amaral, o cinegrafista Nick Owen e o historiador Waitman Wade Beorn, colaborador do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos e professor da Universidade Northumbria, na Inglaterra, trabalharam no antigo campo de concentração, tendo acesso inclusive a áreas restritas. Para a colorista, o choque emocional foi forte. “Pisar no local em que as pessoas retratadas nas fotos tanto sofreram – sendo que a maioria morreu – foi certamente a experiência mais marcante da minha vida”, contou. Ao voltar a Belo Horizonte, Amaral não conseguiu mais trabalhar e ficou uma semana em reclusão. Encarou fortes crises de ansiedade e permaneceu isolada, sem nada fazer. Resolveu praticar meditação com mais frequência e se “medicou” assistindo a filmes leves, como musicais.
De início, a ideia de Amaral e Frank era criar um documentário de curta-metragem para exibição online. Mas ele decidiu produzir algo maior e já está em negociações com serviços de streaming para o lançamento de um documentário de longa-metragem. Uma das sequências previstas mostraria Amaral percorrendo Auschwitz ao lado do empresário Ralph Hakman, o sobrevivente do campo de concentração a quem Owen mostrou a foto colorizada feita na época de sua prisão, aos 17 anos. “Seria o clímax da narrativa”, contou o cinegrafista e diretor do longa. As filmagens estavam programadas para outubro de 2019, mas o empresário contraiu uma pneumonia e não pôde viajar. Tudo foi adiado, e então aconteceu outra reviravolta: Hakman foi contaminado pela Covid-19 e morreu em 22 de março último, aos 95 anos.
Agora, Amaral deverá viajar a Auschwitz acompanhada de um outro sobrevivente ou da mulher do empresário, Barbara. Faces of Auschwitz deverá estrear em 2021, e a última cena prevista será filmada durante uma celebração que deve ocorrer em Los Angeles em homenagem a Hakman – o rapaz de olhos azul-esverdeados.